Raymundo Alencar
Zara Abud

Desde muito cedo aprendemos a contar. Tão logo as crianças se familiarizam com os próprios dedos, são ensinadas a responder quantos anos têm.

Acredita-se que, desde a Pré-História, o homem tenha percebido relações entre grupos de objetos: em algum momento, os gravetos (ou pedrinhas) podem ter sido usados para identificar animais que saíam a pastar pela manhã, de maneira que, a cada graveto (ou pedrinha), correspondia um animal. No final do dia, se sobravam gravetos (ou pedrinhas), ficava evidente que alguns animais tinham se perdido. Se faltasse, algum cordeiro desgarrado viera juntar-se aos demais. Uma jornada sem problemas implicaria quantidades iguais de gravetos (pedrinhas) e de animais quando estes voltassem ao lugar de pernoite: ambos os conjuntos deveriam ter a mesma quantidade de elementos.

A Matemática registra essa idéia por meio de funções:

dados dois conjuntos A e B, dizemos que A e B possuem a mesma cardinalidade ou a mesma quantidade de elementos ou que A é eqüipotente a B - e indicamos A B - se existe uma função bijetora (isto é, uma função que é, ao mesmo tempo, injetora e sobrejetora) entre A e B.

No caso de A ser um conjunto finito e não vazio, existe um único número natural n ³1 tal que A é eqüipotente a {0, 1, ..., n - 1} (aliás, essa é a definição aritmética de conjunto finito). Denotamos | A | = n e dizemos que n é o número de elementos de A. Se A é vazio, o número de elementos de A é zero.

Muitas propriedades de conjuntos finitos nos são familiares. Eis algumas delas:

(1) Dois conjuntos finitos eqüipotentes possuem o mesmo número de elementos.

(2) Se dois conjuntos finitos são disjuntos, o número de elementos da reunião deles é igual à soma dos números de elementos de cada um.

(3) Se A e B são conjuntos finitos e A é subconjunto próprio de B, então a cardinalidade de A é estritamente menor do que a de B. (Nenhum conjunto finito é eqüipotente a um seu subconjunto próprio.)

Do ponto de vista intuitivo, tais propriedades são evidentes. A última delas é parte integrante do nosso dia-a-dia. É claro que uma comunidade passa a ter menor número de pessoas se uma delas vai embora. Se sabemos que um conjunto A é subconjunto de um conjunto finito B e B possui elementos que não estão em A, concluímos imediatamente que o número de elementos de A é menor do que o de B.

Tudo muda de figura quando lidamos com conjuntos infinitos (definimos um conjunto como infinito se ele não é finito!). Basta considerar A = N* = {1, 2, 3, ..., n, ...} e B = N = {0, 1, 2, 3, ..., n, ...}. A função f : N* N definida por , é bijetora, o que significa que A B. No entanto, A B e A B: o fato de B possuir um elemento que A não possui (o número 0) não implicou que A tivesse número de elementos menor do que B. Agora, a propriedade (3) enunciada acima não vale mais: B é eqüipotente a um seu subconjunto próprio!

Afinal, que propriedades possuem os conjuntos infinitos no que se refere à eqüipotência de conjuntos?

Acabamos de verificar que N* N, embora tenhamos N* N e N* N. É fácil encontrar outras situações "estranhas" à nossa intuição.

Considere, por exemplo, o conjunto P = {0, 2, 4, ..., 2n, ...} dos números pares. É  claro  que P N e P N. No entanto, a função f : N P, definida por , é bijetora, e N P.

E o que dizer do conjunto dos números primos? Vamos indicá-lo por Pr. Em Pr não há nenhum número par, a não ser o número 2. Além disso, muitos números ímpares deixam de figurar em Pr. Dessa forma, bem podia ser possível que tivéssemos que Pr, embora infinito, não fosse eqüipotente a N.

Pois bem: tal não acontece: Pr é eqüipotente a N, e o seguinte teorema garante essa afirmação:

     Teorema

Se A N é um conjunto infinito, então A N. Portanto, todo subconjunto de N ou é finito ou é eqüipotente a N.

De maneira geral, os conjuntos finitos ou eqüipotentes a N são chamados de enumeráveis.Vamos verificar que Z e Q são enumeráveis.

(1) Z = {..., -2, -1, 0, 1, 2, ...} denota o conjunto dos números inteiros. É  claro  que   N Z  e N Z, mas N º Z: basta considerar a função h: Z N definida por

Observe que h(0) = 0, h(-1) = 1, h(1) = 2, h(-2) =3 e assim por diante. A função h estabelece correspondência entre os inteiros positivos e os números pares, e entre os inteiros estritamente negativos e os números ímpares. Não é difícil provar que h é bijetora.

(2) Q indica o conjunto dos números racionais, e é menos evidente que N º Q. (Ver uma outra demonstração mais "intuitiva" desse resultado no artigo de Geraldo Ávila na RPM 4, p. 4.)

Vamos denotar e começaremos provando que

Dado, pois, , existem m N, n N, m, n 0 com m e n primos entre si, de maneira que

Sabemos que, pelo Teorema Fundamental da Aritmética, todo número natural maior do que 1 pode ser escrito, de maneira única (a menos da ordem dos fatores), como produto de números primos. Assim, se m, n N, m, n > 1, existem p1, ..., ps, q1, ..., qt, números primos, distintos dois a dois, e números naturais não nulos u1, ..., us, v1, ..., vt, tais que

Considere a função definida por:

  f é injetora, já que todo número natural maior do que 1 se decompõe de uma única maneira em fatores primos.

  f é sobrejetora. Façamos antes a experiência com um exemplo: determine o número racional r tal que f(r) = 2.631. Temos que, para z = 2.631,

z = 2.631 = 2.231.331 = 232.331 = 22´16.32´16-1.

Sejam m = 216, n = 316 e Então, f(r) = z.

Passemos à demonstração de que f é sobrejetora.

Seja z N*. Se z = 1, então 1 = f(1). Considere z 1. Neste caso, z se decompõe num produto de fatores primos distintos dois a dois l1, ..., lt :

e vamos supor que d1, ..., ds sejam expoentes pares (não nulos) e ds+1, ..., dt sejam expoentes ímpares.

Assim, existem u1, ..., us, us+1, ..., ut N * tais que

Tomando-se obtemos que

Provamos assim que

Analogamente, construímos uma função bijetora ( é o conjunto das frações estritamente negativas).

Tomemos finalmente h: Q* N*, definida por

É fácil provar que h é bijetora e, portanto, Q* N*. Acrescentando o número 0 a ambos os conjuntos, obtemos Q N.

É impossível falar sobre conjuntos infinitos sem citar o nome do matemático Cantor.

Georg Cantor nasceu em 3 de março de 1845, em São Petersburgo. Em 1856, por motivos ligados à saúde de seu pai, mudou-se para Frankfurt, na Alemanha, onde passou a maior parte de sua vida.

Cantor começou seus estudos na Universidade de Zurich, em 1862. No ano seguinte, foi para a Universidade de Berlim, onde estudou com Kummer, Weierstrass e seu futuro inimigo Kronecker.

Com Kummer e Kronecker em Berlim, a atmosfera matemática estava altamente envolvida com a Aritmética. Em 1867, Cantor recebeu o título de doutor, e sua tese versava sobre um difícil ponto que Gauss havia deixado de estudar no problema das soluções inteiras x, y e z da equação ax2 + by2 + cz2 = 0, onde a, b, c são inteiros dados.

A partir de então, e sob influência de Weierstrass, ele se interessou pela análise rigorosa, particularmente a teoria das séries trigonométricas (ou séries de Fourier). As questões delicadas a respeito da convergência dessas séries levaram Cantor à abordagem do infinito na Matemática e na Filosofia. Antes dos trinta anos, em 1874, publicou seu primeiro artigo revolucionário na teoria dos conjuntos infinitos: tratava-se da prova de que o conjunto dos números algébricos, isto é, aqueles que são raízes de um polinômio com coeficientes inteiros (ver RPM 1, p.14), é eqüipotente ao conjunto dos números naturais. Se pararmos para pensar um pouquinho, veremos como esse resultado é surpreendente.

Veja só: todo número natural n é algébrico, pois é raiz de x - n = 0. Os números racionais, da forma p/q, também o são, pois cada um deles é raiz da equação qx - p = 0. Os números da forma , onde p é primo, são irracionais, mas são raízes da equação xm - p = 0. Somos capazes de conseguir diversos exemplos de números algébricos que não estão em N, de maneira que parece evidente que haja muito mais números algébricos do que naturais. Essa tese era reforçada pela dificuldade de conseguirmos exemplos de números não algébricos (denominados transcendentes).

Cantor obteve ainda uma demonstração de que o conjunto dos números reais não é eqüipotente a N. Apresentaremos uma das provas feitas por esse matemático genial.

O intervalo ]0, 1[ não é enumerável (ver o artigo de Geraldo Ávila na RPM 4, p. 4).

Seja uma função qualquer, e indiquemos Vamos verificar que nenhuma tal função é sobrejetora. Em particular, resulta que não é possível acontecer ]0, 1[ N*.

Precisamos do seguinte resultado: todo número real possui uma única expansão decimal infinita. Mais especificamente, todo número x ]0, 1[ pode ser escrito como

.

onde xn {0, 1, ..., 9} de maneira que o conjunto {n: xn 0} seja infinito. Só existe uma (é única!) expansão decimal nessas condições e ela se denomina expansão decimal infinita. Costumamos escrever x = 0, x1x2 ... xn .... Assim, por exemplo, x = 1/2 = 0,5 = 0,4999... (esta última é a infinita).

Consideremos, pois, a representação decimal infinita de cada elemento an = f(n) ]0, 1[:

e assim por diante.

Tomemos o número y = 0, y1 y2 ... yn ... onde

Então, y ]0, 1[ e y f(N*). Tal resultado prova que não existe função bijetora entre N* e ]0,1[ e, portanto, ]0,1[ não é enumerável.

Aliás, comentando sobre a eqüipotência de intervalos em R, vale a pena citar alguns fatos interessantes, e cujas verificações nada mais são do que exercícios sobre funções bijetoras.

Considere a, b R, com a < b. Então:

(i) ]0, 1[ ]a, b[ [0, 1[ [a, b[ ]0, 1] ]a, b] [0, 1] [a, b]

Basta considerar a função f(x) = (b- a)x + a, com domínios ]0, 1[, [0, 1[, ]0, 1] e [0, 1] respectivamente.

(ii) ]0, + [ ]a, + [ e [0, + [ [a, + [

Basta considerar a função f(x) = x + a, com domínios ]0, + [ e [0, + [ respectivamente.

(iii) ]- , 0[ ]- , a[ e ]- , 0] [- , a]

(iv) [0, + [ ]0, 1[

A função f : [0, + [®[0, 1[ definida por é bijetora e verifica a afirmação.

A mesma função mostra que ]0, + [ ]0, 1[.

(v) ]- , 0] ]-1, 0] e a função f : ]- , 0] ]-1, 0], verifica essa eqüipotência, assim como prova que ]- , 0[ ]-1, 0[.

Como a composta de funções bijetoras é bijetora, a propriedade de "ser eqüipotente" é transitiva, isto é: dados conjuntos X, Y, Z, se X Y e Y Z, então X Z. Levando em conta essa transitividade, podemos concluir que, para números reais a, b, com a < b,

[0, 1[ [a, b[ [a, + [

]0, 1[ ]a, b[ ]a, + [

[0, 1] [a, b]

]0, 1] ]a, b[ ]- , a]

Além disso, R ]-1, 1[ (verifique).

Como último resultado de nossa conversa, vamos provar que, na verdade, todos os intervalos não degenerados de R são eqüipotentes. Estamos a um passo dessa conclusão: novamente por conta da transitividade (e tendo em vista os resultados que acabamos de listar), basta verificar que [0, 1] [0, 1[ ]0, 1] ]0, 1[.

(vi) [0, 1] ]0, 1]

Basta considerar a função: h: [0, 1] [0, 1[ definida por

(vii) [0, 1[ ]0, 1] (exercício para o leitor).

Se restringirmos o domínio da função h de (vi) ao intervalo ]0, 1], obtemos uma bijeção entre ]0, 1] e ]0, 1[.

Não deixa de ser surpreendente como o gesto simples de estabelecer correspondências entre coleções de objetos pode vir a se transformar numa técnica poderosa para a descoberta de resultados inesperados. Que o digam os conjuntos infinitos.

Referência bibliográfica

BOYER, C. História da Matemática. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Edgard Blücher, 1996.
EVES, H. Introdução à História da Matemática. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
BELL, E.T. Men of Mathematics. Harmondsworth, England: Penguin Books, 1965.
MIRAGLIA N., F. Teoria dos Conjuntos: um mínimo. São Paulo: Edusp, 1991.
SAGHER, Y. Counting the Rationals. American Mathematical Monthly, 1989.