João Bosco Pitombeira
PUC - Rio de Janeiro

     Introdução

Os triângulos sempre fascinaram não só os matemáticos, mas também as pessoas em geral. Eles estão presentes na Matemática, na arte, na arquitetura, na mecânica e no misticismo, entre outros. Em Matemática, eles sempre foram fonte de belos resultados, alguns deles inesperados. Por exemplo, em 1899, o matemático inglês Morley descobriu o resultado surpreendente: os três pontos de intersecção dos trissectores adjacentes dos ângulos de qualquer triângulo formam um triângulo eqüilátero.

Neste artigo, veremos um pouco da história do triângulo de lados 13, 14 e 15. Ele é de fato um triângulo bem interessante e tem sido um exemplo favorito desde os matemáticos gregos até hoje.

 

     A fórmula de Herão

É bem conhecido que os lados de um triângulo o determinam completamente. Isso quer dizer que, se tivermos três segmentos de reta, a, b e c, com um deles menor do que a soma dos outros dois, existe, a menos de congruência, um único triângulo cujos lados são a, b e c.

Já que um triângulo fica determinado por seus lados, conhecendo-os é possível calcular, entre outros, sua área, suas alturas, os raios dos círculos inscrito e circunscrito. Por exemplo, a conhecida fórmula de Herão permite calcular a área do triângulo de lados a, b e c. Chamando de p o semi-perímetro do triângulo, , então sua área é dada por

. (1)

Uma vez conhecida a área do triângulo, é fácil calcular suas três alturas utilizando a fórmula bem conhecida , que permite calcular a altura relativa ao lado a. Analogamente, podemos calcular as alturas relativas aos lados b e c.

 

     O triângulo de lados, 13, 14 e 15

Em geral, mesmo quando os lados a, b e c são números inteiros, a área e as alturas não são necessariamente números inteiros.

Podem mesmo ser números irracionais.

Façamos agora a = 14, b = 15 e c = 13. Segue-se então que

É então imediato ver que a altura relativa ao lado a é igual a 12. Assim, a área do triângulo de lados 13, 14, 15 é um número inteiro e a altura relativa ao lado a também é um número inteiro. É também fácil verificar que o raio do círculo inscrito no triângulo é 4 [Apêndice, expressão (10)].

Vemos também, utilizando o teorema de Pitágoras aplicado respectivamente aos triângulos ADC e ADB (figura acima), que CD = 9 e DB = 5. Isso nos mostra que os dois triângulos retângulos BDA e ADC têm lados cujos comprimentos são números inteiros. O triângulo retângulo ADB é semelhante ao triângulo retângulo de lados 3, 4 e 5. Já o triângulo ADC é um triângulo pitagórico primitivo (ou seja, os comprimentos de seus lados não têm um fator comum). Seus lados são 5, 12 e 13.

Pode-se ver também que o raio r da circunferência inscrita será um número inteiro e, embora o raio r' da circunferência circunscrita não seja um número inteiro, será um número racional. Por quê? [Apêndice, expressão (10).]

Vimos assim que esse triângulo tem a propriedade de que muitos dos cálculos efetuados utilizando os comprimentos de seus lados dão como resultado números inteiros, o que o torna interessante. Isso fez com que fosse um favorito ao longo da História, em exemplos e exercícios, devido à facilidade das contas.

 

     A história do triângulo de lados, 13, 14 e 15

Convém inicialmente lembrar que a apresentação de resultados matemáticos gerais usando símbolos e fórmulas algébricas é nova. Durante muitos séculos, começando na Babilônia e no Egito antigos, os algoritmos e procedimentos de cálculo foram sempre apresentados por meio de exemplos específicos que permitiam inferir o resultado geral. Daí a preferência por casos em que as contas não fossem complicadas, pois o que se visava era à compreensão do procedimento e não à destreza nos cálculos.

Encontramos o triângulo de lados 13, 14 e 15 pela primeira vez na Métrica de Herão de Alexandria (viveu durante o século I d.C.) [CANTOR, M., 1965, pp.374-376]. Para calcular a área desse triângulo, Herão utiliza a Proposição II-131, dos Elementos de Euclides. Esse resultado, que é equivalente à nossa bem conhecida lei dos cossenos, afirma que, no triângulo ABC, acutângulo,

AB2 = AC2 + BC2 - 2.CB.CD             .

Dessa expressão, podemos imediatamente calcular CD. Uma vez conhecido CD, o teorema de Pitágoras nos permite calcular AD, a altura relativamente ao lado a, e então a área do triângulo.

Herão não apresenta esse resultado como nós o fazemos hoje, em toda sua generalidade. Ele calcula a área no caso do triângulo 7, 8, 9, demonstrando nesse caso a fórmula de Herão, já apresentada

.

Os matemáticos árabes e hindus [al-Kwarizmi (árabe, viveu em torno de 780-850), Mahavira (hindu, viveu no século IX) e Báskara (hindu, 1114-1185)] apresentam como problema calcular a área do triângulo de lados 13, 14 e 15, e o resolvem usando o procedimento de Hierão.

Mas não termina aí a história do triângulo de lados 13, 14 e 15.

É bem conhecido que o nível dos conhecimentos de Matemática na Europa Ocidental caiu muito após o colapso do mundo antigo. O pouco de Matemática que se preservou foi devido à necessidade de a Igreja calcular corretamente as datas do calendário litúrgico.

Aos poucos, o aquecimento das atividades sociais, técnicas e econômicas na Europa da Idade Média forçou o emprego da Matemática, por exemplo, em topografia, em arquitetura, nos cálculos bancários e pelos artesãos. Assim, utilizavam-se resultados de geometria euclidiana (a trigonometria somente começou a ser utilizada em topografia a partir do Renascimento!) e eram ensinadas as quatro operações aritméticas.

A expansão e importância das atividades bancárias deu grande ímpeto à necessidade de conhecimentos de Matemática prática, principalmente de aritmética comercial. A partir dos fins do século XII, foi crescentemente reconhecida a importância e a aplicabilidade cada vez mais ampla desses conhecimentos2. Eles eram ensinados nas escolas de ábaco. A existência dessas escolas, freqüentadas por números crescentes de alunos, exigiu a elaboração de livros com problemas de Matemática comercial e prática. São os chamados livros de ábaco, como o Liber abbaci, de Leonardo de Pisa3, cujo título passou a designar as publicações desse tipo.

Em geral esses livros começam ensinando como escrever os algarismos arábicos _ introduzidos no Ocidente, entre outros, também no Liber abbaci, já mencionado, publicado em 1202. Embora a maior parte dos problemas desses livros fosse de aritmética, eles também apresentavam problemas de geometria, baseados nas proposições de Euclides, mas considerando sempre exemplos numéricos. Por exemplo, enquanto em Euclides a Proposição II-13 é apresentada em toda sua generalidade, em um livro d'ábaco seria dado um triângulo específico, por meio dos comprimentos de seus lados e exemplificando o cálculo de sua área.

O triângulo de lados 13, 14 e 15 era muito utilizado pelos autores desses livros, uma vez que ele permite achar resultados sem fazer contas complicadas. Isso era importante porque então, quando os algarismos hindu-arábicos se impunham aos poucos na Europa, com algoritmos correspondentes para as operações fundamentais, as pessoas tinham dificuldades para fazer cálculos aritméticos, particularmente se envolviam frações e raízes quadradas.

Na Idade Média ocidental, o primeiro registro que temos do triângulo de lados 13, 14 e 15 é no livro Practica Geometriae de Fibonacci [FIBONACCI, 1966]. Nesse livro, primeiramente publicado em 1220, ele calcula CD e h.

Encontramos novamente o triângulo de lados 13, 14 e 15 no libro d'abaco de Piero della Francesca (viveu em torno de 1412-1492).

Piero della Francesca foi um importante pintor italiano, com lugar garantido na história da arte no Renascimento. O que é menos conhecido é que ele foi um bom matemático. Era filho de um próspero comerciante e recebeu boa educação para suceder seu pai nos negócios. Assim, certamente freqüentou uma escola de ábaco. Conhecemos três de suas obras matemáticas, embora se diga que della Francesca escreveu muitas outras.

Pouco sabemos sobre quando e como esses livros foram escritos, e ignoramos mesmo como della Francesca os intitulou. Hoje são conhecidos como Tratado do ábaco (Trattato d'abaco), Pequeno livro sobre os cinco sólidos regulares, do qual se conhece somente um exemplar, e Sobre a perspectiva para a pintura.

O Tratado do ábaco distingue-se de muitas das outras obras semelhantes que sobreviveram até hoje pelo fato de que contém inúmeros problemas de geometria. Um deles é exatamente o do triângulo de lados 13, 14 e 15.

A fim de vermos como se escrevia Matemática no Renascimento, vejamos como o autor aborda este problema. Em primeiro lugar, ele resolve o problema de achar a altura e a área de um triângulo eqüilátero. Em seguida, ataca nosso problema da seguinte maneira:

Mas quando eles [os lados] não são iguais, o que acontece no triângulo AB 15, BC 14, AC 13 e a base é 14, multiplique [esse número] por ele mesmo, obtendo 196, multiplique AB por ele mesmo [o que] dá 225, junte com 196 [o que ]421, multiplique AC que é 13 por ele mesmo [o que] dá 169, tire isso de 421, o resto é 252; divida o dobro da base BC que é 14 [duplicado essa maneira] será 28, o resultado é 9: e 9 é [a distância] de B ao ponto em que a altura cai [o pé da perpendicular à base]. Multiplique por ele mesmo, [o que é] igual a 81, e multiplique AB que é 15 por ele mesmo [o que] dá 225; subtraia 81, resta 144: sua raiz é a altura, [que é] 12. E esse método pode ser usado para todos os triângulos.4

Tente analisar essa solução, exprimindo-a em notação moderna. Você certamente verificará que ela é exatamente a solução apresentada atualmente para o problema, dada no Apêndice [compare com as expressões (5) e (7) do Apêndice].

O Tratado do ábaco nunca foi publicado, sendo conhecido somente em manuscrito. No entanto, quase todos seus problemas aritméticos e geométricos se encontram no livro Sumário de aritmética, geometria, proporções e proporcionalidade, de Luca Pacioli (1445-1514), muito difundido no Renascimento, com inúmeras edições. Nessa obra, do início do século XVI, encontramos mais uma vez o triângulo de lados 13, 14, 15, tratado exatamente segundo uma das maneiras com que Hierão já discutira no século I d.C, ou seja, uns 1400 anos antes!

Em verdade, Fibonacci apresenta outro triângulo de lados inteiros em que as contas são também fáceis. Mas isso é outra história que será contada em outro artigo.

 

1 O enunciado da Proposição II-13 dos Elementos é o seguinte: Nos triângulos acutângulos, o quadrado sobre o lado que subentende o ângulo agudo é menor do que os quadrados sobre os lados que contêm o ângulo agudo de duas vezes o retângulo formado pelo lado do ângulo agudo sobre o qual cai a perpendicular e pela reta determinada no interior pela perpendicular, do lado do ângulo agudo. EUCLIDES de Alexandria, 1990, p. 359.

2 Ver [MURRAY, 1978], Part II _ Arithmetic, pp. 139-210. Ver também [KATZ, 1992], Capítulo 8, Mathematics in Medieval Europe, pp. 266-301, e Capítulo 9, Algebra in the Renaissance, pp. 313-353.

3 Leonardo de Pisa, conhecido também como Fibonacci, viveu entre 1170 e 1240, embora essas datas não sejam confiáveis. Filho de comerciante de Pisa que negociava com o norte da África, Leonardo aí aprendeu árabe e estudou Matemática com professores muçulmanos. Viajou muito pelo Mediterrâneo e embebeu-se nessas viagens da Matemática muçulmana. Foi muito importante para difundir no Ocidente a aritmética e álgebra muçulmanas, por meio de seus livros. Não se deve subestimar suas qualidades matemáticas, que o tornaram provavelmente o primeiro matemático ocidental a superar os matemáticos muçulmanos.

4 Ver [FIELD, 1997], pp. 234-236. A tradução para o português é do autor deste trabalho. Os trechos entre colchetes ([ ]) indicam palavras adicionadas ao texto original de della Francesca.

Referências bibliográficas

EUCLIDE d'Alexandrie, Les Éléments, Volume I _ Introduction générale, Livres I à IV. Traduction de Bernard Vitrac. Paris: PUF, 1990.
FIBONACCI, Leonardo. La pratica di geometria. Volgarizzata da Cristofano di Gherardo di Dino, cittadino pisano. Dal codice 2186 della Biblioteca Riccardiana di Firenze. A cura e con introduzione di Gino Arrighi. Pisa: Domus Galilaeana, 1966.
FIELD, J.V. The invention of infinity _ Mathematics and art in the Renaissance. New York: Oxford University Press, 1997.
KANTOR, Moritz. Vorlesungen über Geschichte der Mathematik. Erster Band. Nachdruck der dritten Auflage von 1907. New York: Johnson Reprint Corporation, 1965.
KATZ, Victor J. A history of mathematics _ an introduction. New York: Harper Collins, 1992.

 

Apêndice

Cálculo direto da altura e da área do triângulo

Hoje, para calcular diretamente a altura h do triângulo ABC, procede-se em sala de aula como segue.

Seja D o pé da altura, chame de x o comprimento do segmento CD e considere os triângulos ADB e ADC.

Aplicando o teorema de Pitágoras ao triângulo ADC, obtemos

b2 = h2 + x2. (2)

Analogamente, no triângulo ADB temos

c2 = h2 + (a - x)2 = h2 + a2 + x2 - 2ax. (3)

Assim, c2 = b2 + a2 - 2ax (4)

e, portanto, . (5)

Temos então que

, (6)

ou seja, . (7)

Uma vez conhecida a altura h, é imediato calcular a área do triângulo, pois .

É também fácil achar o comprimento do raio da circunferência inscrita no triângulo ABC. Chamemos de M o ponto de encontro das bissetrizes dos ângulos internos do triângulo.

Como M é eqüidistante dos três lados do triângulo, M é o centro da circunferência inscrita. Sejam ME, MF e MD as perpendiculares baixadas de M sobre AB, CB e AC respectivamente. Os comprimentos desses segmentos são todos iguais ao raio r da circunferência inscrita.

Comparando as áreas dos triângulos ABC, AMC, AMB e CMB, temos que AABC = AAMC + ACMB + AABM.. (8)

A área do triângulo ABC já foi calculada anteriormente: .

Chamando de r o raio da circunferência inscrita, temos

Assim, ah = (AC + AB + CB)r (9), ou seja, (10).