Daniel Cordeiro de Morais Filho


Quem ensinou os astros a andar sobre elipses?
                                                               João Pedro (4 anos, filho do autor)

     Introdução

Encontramos na Matemática várias curvas encantadoras e interessantes, tanto pela beleza de sua forma estética, quanto por suas várias aplicações. Em geral, no ensino médio, os alunos são apresentados às únicas curvas dessa natureza a que eles têm acesso nessa fase, as cônicas: círculo, elipse, parábola e hipérbole. Nosso objetivo neste artigo é, utilizando as mesmas idéias das cônicas, apresentar outras curvas de notável interesse que não fazem parte do currículo tradicional, mas que podem cativar o interesse do alunado. O tema pode ser utilizado em sala de aula como assunto complementar após se estudarem as cônicas, além de ser uma oportunidade para se treinar a visão geométrica e introduzir a idéia de superfícies no R3.

     Postulando o problema

Poupando-nos de detalhes, consideremos dois pontos fixos F1 e F2 e um ponto genérico P do plano cartesiano. Representemos por PF1 e PF2 as respectivas distâncias do ponto P ao ponto F1 e do ponto P ao ponto F2. Define-se a elipse como o conjunto  dos  pontos P  tais  que PF1 + PF2 é constante.

Semelhantemente, define-se a hipérbole como o conjunto dos pontos P tais que é constante.

Na definição dessas curvas, consideramos a soma e o módulo da diferença de distâncias como sendo constantes. Seria natural perguntar-se: que curvas (se é que há alguma) surgiriam se considerássemos o produto e o quociente dessas mesmas distâncias constantes? Nosso trabalho a seguir será responder a essa pergunta, o que trará agradáveis surpresas e uma oportunidade de se trabalhar mais com a Geometria Analítica em problemas interessantes ligados à Matemática.

     O caso do produto das distâncias constantes

Para simplificar, consideremos, no plano cartesiano:

P = (x, y), F1 = (a, 0), F1 = (-a, 0) e que ,

sendo a e b números reais positivos. Usando a fórmula da distância entre dois pontos, a equação anterior fica na forma

Desenvolvendo essa equação e fazendo as devidas simplificações, encontramos

(x2 + y2 + a2)2 - 4a2x2 = b4.                                              (1)

Temos agora uma equação que é uma quártica, ou seja, um polinômio de quarto grau em duas variáveis. É natural as perguntas: que formato tem essa curva? Como ela é?

Com o advento dos computadores e a facilidade do uso de programas computacionais, atribuindo certos valores às constantes a e b, pode-se rapidamente ver a “cara” dessa curva. Mas essa é uma solução simplista demais para adotá-la agora. A equação acima merece ser mais bem estudada; ela tem muito o que dizer sobre o formato da curva:

Percebe-se, da equação, que a curva tem o mesmo valor nos pontos

(x, y), (-x, y), (-x, -y) e (x, -y).

Logo, concluímos  que  ela é  bastante simétrica,  por  ter  simetria  em  relação  ao  eixo  dos x e dos y.

Analisemos os pontos onde a curva corta os eixos cartesianos:

i) se b > a, a curva corta o eixo das ordenadas nos pontos
ii) o único caso em que a curva passa pela origem é quando b = a;
iii) se b < a, a curva não corta o eixo das ordenadas;
iv) a curva corta o eixo das abscissas nos pontos no caso em que o radicando é positivo.

Com um pouco mais de trabalho e de boa-vontade, poderíamos fazer um esboço da curva, mas uma ajuda computacional nesse momento é bem- vinda, como também um confrontamento do desenho obtido com as observações anteriores.


figura 1

Observando os desenhos que aparecem na figura 1, se b > a, a curva tem uma aparência de uma elipse, às vezes meio deformada. Quando b < a, a curva é constituída por duas partes parecidas com dois círculos. No caso em que b = a, a curva tem aparência de um laço de fita ou de um 8 deitado.

As curvas obtidas na figura 1 são chamadas de Ovais de Cassini. Esse nome é devido ao matemático e astrônomo ítalo-francês Giovanni Domenico Cassini (1625-1712), que estudou essas curvas no ano de 1680.

As ovais de Cassini quase que tinham seu papel de destaque gravado eternamente na história da Ciência.

Na tentativa de descrever os movimentos do Sol e da Terra, Cassini propôs que o Sol deslocava-se em torno da Terra com trajetória descrita por uma dessas ovais, com a Terra num dos focos (chamaremos os pontos F1 e F2 de focos das ovais).

Entretanto, o modelo de sistema solar proposto por Kepler estava correto e comprovou que, na realidade, os planetas giram em trajetórias elípticas em torno do Sol (veja [1]).

Entre as muitas contribuições de Cassini, constam a descoberta de quatro luas e a chamada divisão de Cassini, todas no planeta Saturno. Em 1997, numa missão entre as agências espaciais norte-americana, européia e italiana foi lançada a sonda Cassini, batizada em sua homenagem e de seus descendentes.

Retornando às equações que definem as Ovais de Cassini, quando b = a, a curva tem uma equação especial da forma:

(x2 + y2)2 = 2a2(x2- y2)                                                         (2)

e recebe o nome de lemniscata, termo que vem da palavra latina lemniscus, que significa fita com laço. A lemniscata foi descrita pelo matemático suíço Jacob Bernoulli (1654-1705) num artigo escrito em 1694 e por isso, às vezes, ela também é conhecida como lemniscata de Bernoulli. As principais propriedades dessa curva foram encontradas pelo italiano G. C. Fagnano (1682-1766).

Na verdade, Jacob Bernoulli desconhecia o fato de uma lemniscata já ter sido descrita por Cassini 14 anos antes dele, o que só foi percebido no final do século XVIII ( [2]). As famílias Cassini e Bernoulli tiveram algo em comum além da lemniscata: destacaram-se por produzirem ao longo dos anos, em suas gerações, eminentes cientistas.

Onde a lemniscata aparece?

Dependendo do caso, sabemos que elipses, parábolas e hipérboles surgem quando se intersectam cones por planos. O matemático grego Menaecmus (Menecmo ou Menaecmo), que viveu por volta de 350 a.C., parece ter sido o primeiro a descrever essas curvas dessa forma, que foram estudadas posteriormente, em detalhes, por Apolônio de Perga (c. 262-190 a.C.).

Fato semelhante ocorreu com as ovais de Cassini. Vejamos de que maneira.

Um toro é uma superfície que tem a forma de uma câmara de ar de pneu e é gerada pela rotação de um círculo de raio r no plano zy cujo centro se desloca ao longo de um outro círculo centrado na origem do plano xy.

Se o centro do primeiro círculo dista R ( r r > 0) do eixo dos z, a equação de um toro, como desenhado na figura 2, tem a forma

                                                (3)

Que ligação têm toros com as ovais de Cassini e, em particular, com lemniscatas?

As ovais de Cassini são secções de planos paralelos ao eixo z com toros, tais como as cônicas são secções de planos com cones. Da mesma maneira que Menaecmus e Apolônio fizeram com o cone, o grego Perseu (c. 150 a.C.) descreveu as curvas geradas pelas intersecções de planos com toros.

Essas seções são chamadas de secções espíricas, visto que os gregos chamam o toro de spira. Essas curvas, que naquela época não foram estudadas em detalhes como as cônicas, reapareceriam com a ajuda da recém-criada Geometria Analítica, no século XVII, como descrevemos anteriormente.

Vamos verificar que as ovais de Cassini são casos especiais de secções espíricas.

Desenvolvendo a equação (3) que descreve o toro, obtemos

(x2 + y2 + z2 + R2 - r2)2 - 4R2x2 =  4R2y2.                                   (4)

Para visualizarmos melhor, se considerarmos a intersecção desse toro com o plano y = r, resulta na seguinte equação, na qual, para compararmos com a equação (1), trocamos z por y:

(x2 + y2 + R2) - 4R2x2 = 4R2 r2.

Usando essa última equação, vamos agora escolher três toros especiais para fazermos as secções, como a seguir.

Caso 1: Se considerarmos o toro com , a seção dele com o plano y = r será uma oval de Cassini formada por duas partes, sendo a = R e .


figura 2

Caso 2: Se considerarmos o toro com , a seção dele com o plano y = r será uma lemniscata, sendo a = b = R.


figura 3

Caso 3: Se considerarmos o toro com a seção dele com o plano y = r será uma oval de Cassini formada por um único pedaço, sendo a = R e


figura 4

Neste ponto propomos uma tarefa cuja resposta é uma curva bem especial: descrever a curva da interseção do toro obtido considerando R = r, com o plano y = 0.

As ovais de Cassini possuem várias outras propriedades interessantes. Embora essa primeira parte do nosso trabalho encerre-se aqui, esperemos que os leitores possam ter gostado dessas curvas e continuem o estudo delas.

     O caso do quociente das distâncias constantes

Seguindo o que propomos inicialmente, estudemos agora o caso em que (5) , para algum b > 0 e considerando que

Para simplificação, escrevamos , c um número real positivo.

As curvas neste caso trarão surpresas, pois elas são curvas conhecidas, apesar de não ser tão evidente que elas satisfaçam a propriedade anterior.

Em coordenadas cartesianas, essa propriedade é descrita como

                                         (6)

Para prosseguirmos nossa análise, consideremos os dois casos a seguir.

Caso 1: c = 1

Neste caso, desenvolvendo a equação (6) encontramos que x = 0 e que o y pode ser qualquer. Ou seja, a curva em questão nada mais é do que o eixo das ordenadas. Uma análise mais geométrica já poderia nos ter levado a essa mesma conclusão, pois, nesse caso, e o conjunto dos pontos P que satisfazem essa propriedade é a mediatriz do segmento que liga os pontos F1 e F2.

Caso 2: c 1

Como feito no caso anterior, o desenvolvimento da equação (6) nos leva à seguinte equação

                                               (7)

que só faz sentido para 0 < c < 1.

Note que, surpreendentemente, essa é a equação de uma circunferência de centro e raio !!

Finalizamos esta parte, ressaltando que, dada qualquer reta ou qualquer circunferência, é sempre possível determinar pontos F1, F2 e uma constante c de modo que, mesmo não sendo natural, essas curvas possam ser definidas pela propriedade (5). Quem desejar, entenda essa observação como um exercício. Mas não o deixe guardado!

 

Referências bibliográficas
[1] ÁVILA, Geraldo. Kepler e a órbita elíptica. RPM 15.
[2] EVES, Howard. Introdução à história da Matemática. Editora Unicamp, 2004.