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Neste artigo não pretendemos apresentar nenhum tipo de defesa da reintrodução do estudo da teoria dos conjuntos nos ensinos médio e fundamental, em que tal assunto talvez tenha trazido mais malefícios que vantagens, como disse o Professor Geraldo Ávila no seu artigo Cantor e a teoria dos conjuntos, publicados na RPM 43. Queremos aqui apenas apresentar uma abordagem que permite modelar matematicamente “conjuntos” cuja fronteira pode ser considerada incerta, como é o caso do conjunto dos fios da barba do imperador D. Pedro II, mencionado pelo professor Geraldo Ávila, que escreveu: Não queira, pois, falar no conjunto de fios da barba do imperador D. Pedro II, pois não há como saber, ao certo, onde termina a barba e onde começam os fios do pescoço... ou os cabelos da cabeça! Uma proposta para formalizar matematicamente tal conjunto poderia ter pelo menos duas abordagens. A primeira, mais clássica, distinguindo a partir de onde começa o pescoço e, neste caso o conjunto, que indica a barba do Imperador, estaria bem definido. A segunda, menos convencional, isto é, menos clássica, seria dada de maneira que os fios da barba não pertenceriam ao conjunto com mesma intensidade, ou seja, haveria fios que pertenceriam mais à barba que outros. Quanto mais fora do rosto do Imperador estivesse um fio, menor o grau com que este fio pertence à barba. Poderíamos dizer que todos os pelos do Imperador pertenceriam à sua barba, com mais ou menos intensidade. Pois bem, esta segunda abordagem é a que pretendemos falar um pouco mais aqui. Foi a partir de desafios simples como esse, cuja propriedade que define o conjunto é incerta, que surgiu a Teoria dos Conjuntos Fuzzy, que tem crescido consideravelmente em nossos dias, tanto na teoria como nas aplicações em diversas áreas de estudo, sobretudo em tecnologia. A teoria de conjuntos fuzzy foi introduzida por Lofti Asker Zadeh em 1965 com a principal intenção de dar um tratamento matemático a certos termos lingüísticos subjetivos, como “aproximadamente”, “em torno de”, dentre outros. Esse seria um primeiro passo no sentido de se programar e armazenar conceitos vagos em computadores, tornando possível a produção de cálculos com informações imprecisas, a exemplo do que faz o ser humano. Por exemplo, todos somos unânimes em dizer que o dobro de uma quantidade “em torno de 3” resulta em outra “em torno de 6”. Pois bem, para obter a formalização matemática de um conjunto fuzzy, Zadeh baseou-se no fato de que qualquer conjunto clássico pode ser caracterizado por uma função: sua função característica, cuja definição é dada a seguir. Seja U um conjunto e A um subconjunto de U. A função característica de A é dada por . Dessa forma, CA é uma função cujo domínio é U e a imagem está contida no conjunto {0, 1}, com CA(x) = 1 indicando que o elemento x está em A, enquanto CA(x) = 0 indica que x não é elemento de A. Assim, a função característica descreve completamente o conjunto A já que indica quais elementos do conjunto universo U são elementos também de A. Permitindo uma espécie de relaxamento no conjunto imagem da função característica de um conjunto foi que Zadeh formalizou matematicamente um subconjunto fuzzy.
Seja U um conjunto (clássico). Um subconjunto fuzzy F de U é caracterizado por uma função F: U[0,1], chamada função de pertinência do conjunto fuzzy F. O valor F(x) [0, 1] indica o grau com que o elemento x de U está no conjunto fuzzy F, em que F (x) = 0 e F (x) = 1 indicam, respectivamente, a não pertinência e a pertinência completa de x ao conjunto fuzzy F. Do ponto de vista formal, a definição de um subconjunto fuzzy foi obtida simplesmente ampliando-se o contra-domínio da função característica, que é o conjunto {0, 1}, para intervalo [0, 1]. Nesse sentido, podemos dizer que um conjunto clássico é um caso particular de conjunto fuzzy. Por exemplo, o conjunto P, dos números pares, tem função característica CP(n) = 1 se n é par e CP(n) = 0 se n é ímpar. Portanto, o conjunto dos números pares é um particular subconjunto fuzzy dos naturais já que CP(n)[0,1]. Nesse caso foi possível descrever todos os elementos de P pela função característica porque todo número natural ou é par ou é ímpar. O mesmo não pode ser dito para outros conjuntos com fronteiras imprecisas como a seguir.
Considere o subconjunto fuzzy F dos números inteiros inteiros não negativos: F = {n N: n é pequeno}. O número 0 pertence a esse conjunto? E o número 1.000? Dentro do espírito da teoria fuzzy, poderíamos dizer que ambos pertencem a F porém com diferentes graus de pertinência, de acordo com a propriedade que o caracteriza. Ou seja, a função de pertinência de F deve ser “construída” de forma coerente com o termo “pequeno” que caracteriza seus elementos no conjunto universo dos números naturais. Uma possibilidade para a função de pertinência de F é . Se esse for o caso, poderíamos dizer que o número 0 pertence a F com grau de pertinência F(0) = 1, enquanto 1000 pertence a F com grau de pertinência FF(1.000) = 0,00099. A função F , nesse caso, foi escolhida de maneira totalmente arbitrária, levando-se em conta apenas o significado da palavra “pequeno”. Isto é, tratando-se de modelar este conjunto fuzzy F, alguém poderia escolher outra função para modelar matematicamente o conceito de “números inteiros não negativos pequenos” como, por exemplo, Claro que a escolha da função a ser adotada para representar o conjunto fuzzy em questão depende de fatores que estão relacionados com o contexto do problema a ser modelado. Do ponto de vista apenas da teoria fuzzy, qualquer uma
das duas funções de pertinência acima podem ser representantes
do nosso conjunto fuzzy F. Porém, o que deve ser notado
é que cada uma destas funções produzem conjuntos
fuzzy distintos. Dessa forma, é comum representar tanto
o conjunto fuzzy F como a sua função de pertinência
pelo mesmo símbolo, que aqui optamos por ser a letra que designa
o conjunto fuzzy. Assim, tanto o conjunto fuzzy F como sua
função de pertinência
serão indicados por F.
Sejam A e B dois subconjuntos fuzzy de U, com funções de pertinências indicadas também por A e B. Dizemos que A é subconjunto fuzzy de B, e escrevemos AB, se A(x)B(x) para todo xU. Note que o conjunto vaziotem
função de pertinência ?(x)
= 0 enquanto o conjunto universo U tem função de
pertinência U(x) = 1 para todo xU.
Assim, podemos dizer que A
e que AU
para todo A.
A união entre A e B é o conjunto fuzzy cuja função de pertinência é dada por (AB)(x) = máximo {A(x), B(x)}, xU. A intersecção entre A e B
é o conjunto fuzzy cuja função de pertinência
é dada por AB)(x) = mínimo {A(x), B(x)}, xU. O complemento de A é o conjunto fuzzy cuja função de pertinência é dada por Particularmente, se A e B forem conjuntos clássicos, então as funções características das respectivas operações definidas acima satisfazem essas igualdades, mostrando a coerência das definições acima. Por exemplo, se A é um subconjunto (clássico) de U, então a função característica, A, do seu complementar é tal que A(x) = 0 se A(x) = 1 (isto é, x A) e A(x) = 1 se A(x) = 1 (isto é, x A). Nesse caso, ou x A ou x A. Na teoria dos conjuntos fuzzy não temos necessariamente essa dicotomia, não é necessariamente verdade que A A = , assim como não é verdade que A A = U. O exemplo a seguir ilustra tais fatos. Exemplo 2 Suponha que o conjunto universo U seja composto pelos pacientes de uma clínica, identificados pelos números 1, 2, 3, 4 e 5. Sejam A e B os conjuntos fuzzy que representam os pacientes com febre e tosse, respectivamente. A tabela abaixo ilustra a união, intersecção e o complemento dos conjuntos A e B.
Os valores das colunas, exceto os da primeira, indicam os graus com que cada paciente pertence aos conjuntos fuzzy A, B, A B, A B, A, A A respectivamente, onde A e B são supostamente dados. Na coluna A A o valor 0,3 indica que o paciente 1 está tanto no grupo dos febris como no dos não febris. Como dissemos antes, este é um fato inadmissível na teoria clássica de conjuntos na qual tem-se a lei do terceiro excluído ( A A = ). As operações mencionadas acima têm destaque na organização e ilustração didática de alguns problemas. Do ponto de vista de projeção (inferência), a fim de se tomar decisão, uma operação de grande importância é o produto cartesiano. Tecnicamente, tal operação para conjuntos fuzzy é similar à intersecção. A grande diferença está nos conjuntos universos envolvidos nesta operação: enquanto na intersecção temos necessariamente subconjuntos fuzzy de um mesmo universo, no produto cartesiano os universos podem ser distintos. Esta parece ser uma grande vantagem do produto cartesiano no que se refere às aplicações dos conjuntos fuzzy.
Suponha que A e B sejam subconjuntos fuzzy de U e V, respectivamente. O produto cartesiano de A por B é o subconjunto fuzzy do produto cartesiano(clássico) U x V, cuja função de pertinência é dada por (A x B)(x,y)= mínimo{A(x), B(y)}, x U e y V. Isto é, se x pertence a A com grau
A(x) e y a B com grau B(y),
então o par (x,y) pertence ao produto cartesiano fuzzy
A x B,
com grau dado pelo menor dentre os graus A(x) e B(y).
É interessante notar que se A e B forem subconjuntos
clássicos de U e V, então a função
característica de A x
B satisfaz à definição de produto cartesiano
fuzzy, dada pela equação acima. Exemplo 3 Suponha que se deseja obter um procedimento para diagnosticar certa doença a partir de alguns sintomas e sinais típicos da mesma, segundo um especialista (médico). Para fixar, vamos supor que a doença de interesse seja gripe. Os sintomas e sinais típicos da gripe são febre, tosse, dor de cabeça, dentre outros. Para obter o diagnóstico de um paciente, o especialista deve avaliar objetivamente cada um desses sintomas. Isto é, “medir” os sintomas para, a partir daí, fazer o diagnóstico. Para simplificar o exemplo, vamos aqui supor que os valores da febre e da tosse sejam suficientes para diagnosticar a gripe. A febre pode ser dada por graus, a partir dos valores assumidos pela temperatura do corpo humano. Ou seja, a febre pode ser considerada como um subconjunto fuzzy A do universo que fornece a temperatura do corpo humano: o intervalo [30, 45]. A tosse pode ser avaliada pela sua incidência por unidade de tempo. Dez vezes por hora, por exemplo, pode ser a medida de tosse de um indivíduo. Assim a tosse pode ser considerada como um subconjunto fuzzy B cujo universo é diferente do da febre. Para indicar o quanto um indivíduo está gripado, tomamos seu grau de pertinência ao conjunto fuzzy A e seu grau de pertinência a conjunto fuzzy B. Seu diagnóstico para a gripe é dado pela conjunção desses graus de pertinência. Isto é, este indivíduo está gripado com grau de pertinência dado por (A x B)(x,y)=mínimo{A(x), B(y)}, onde A(x) indica o grau de febre correspondente à temperatura x, e B(y) o grau de tosse correspondente à freqüência de tosse y. Para exemplificar temos o seguinte: o paciente 1 do exemplo 2 tem gripe com grau (A x B)(x,y)=mínimo{A(x), B(y)} = mínimo{0,7;0,6}=0,6; o paciente 2 tem gripe com grau 1, e assim por diante. Esses graus podem dar suporte para, a partir daí, o especialista tomar decisão quanto ao tratamento a ser adotado. É claro que, do ponto de vista teórico, o produto cartesiano clássico também pode produzir diagnóstico, com a diferença de que este apenas indica gripe (grau um) ou não gripe (grau zero). Nesse caso, apenas o paciente 2 da tabela acima seria considerado gripado. A título de curiosidade, a avaliação para a dor de cabeça não é tão simples. Uma que às vezes tem sido praticada é a seguinte: o especialista pede para o indivíduo escolher uma cor, definido pelo cromatismo do verde ao vermelho, para associar com sua dor de cabeça. Ela será tanto maior, quanto mais próxima do vermelho for sua escolha. Essa metodologia poderia fazer parte da composição de nosso procedimento de diagnóstico, relacionando a dor de cabeça com o comprimento de onda (ou freqüência) de cada uma dessas cores. Dessa forma, o diagnóstico da gripe seria dado pelo produto cartesiano de três subconjuntos fuzzy de universos distintos. Para encerrar esse exemplo, queremos ressaltar que existem aplicações de conjuntos fuzzy em diagnóstico médico desde a década de setenta. A idéia geral é a seguinte: alguns sintomas (e/ou sinais) característicos de certas doenças são considerados subconjuntos fuzzy de diversos universos. Esses sintomas são “combinados” por meio de alguns operadores fuzzy, que representam conjunções (não necessariamente o produto cartesiano), para, a partir daí, inferir os possíveis diagnósticos. Esse procedimento auxilia bastante especialistas da área de saúde, já que possibilita a exclusão de alguns diagnóstico considerados inicialmente possíveis. Para finalizar, queremos dizer que, diante das inúmeras aplicações que a teoria dos conjuntos fuzzy tem tido na tecnologia para a produção de bens de consumo, e, de um modo mais geral, em vários ramos da Matemática aplicada, talvez não leve muito tempo para nos depararmos com uma onda envolvendo novamente teoria de conjuntos. Do ponto de vista pedagógico, não acreditamos e também não temos informação se os países mais avançados estão novamente dando ênfase à teoria dos conjuntos no ensino médio. Porém, em cursos mais avançados, esse assunto vem ganhando força substancial nas universidades e institutos de pesquisa, como é o caso dos Estados Unidos e principalmente do Japão, que foi o pioneiro na utilização da teoria dos conjuntos fuzzy em eletrodomésticos, ainda na década de 80.
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