Painel I

Examinando casos particulares


Fabiano F. t. dos Santos

Augusto C. de O. Morgado

O objetivo deste artigo é apresentar uma técnica para a resolução de problemas, que consiste em examinar casos particulares. A história da Matemática nos presenteia com um exemplo clássico de que afirmar algo baseado apenas em algumas observações iniciais pode-nos levar a cometer erros. Fermat (1601-1655) conjecturou que os números da forma Fn = 2 +1(números de Fermat) seriam primos para todo natural.
De fato, F1 =5; F2 = 17; F3 = 257 e F4 = 2 +1
são primos. Porém Leonhard Euler (1707-1783) mostrou que F5 é um número composto, contrariando assim o que Fermat havia pensado.
Podemos fazer conjecturas por meio de observações iniciais visando descobrir padrões, mas depois é necessário provar os resultados valendo-nos de ferramentas matemáticas rigorosas como, por exemplo a indução.

     Problema 1


Qual o último dígito do número 34798?

Inicialmente observemos a tabela a seguir, com as primeiras potências de 3. Podemos ver que as únicas possibilidades para o último dígito de 3n, são 1, 3, 7 ou 9, qualquer que seja o natural n .
Além disso o número 34p com p N, sempre termina em 1.

De fato, 34p = (34)p = 81p
Para resolvermos o problema, basta então, descobrirmos qual é o resto da divisão do expoente 4798 por quatro. Segue que

34798 = 34 x 1199 + 2 = (34)1199 x 3 2 = 811199 x 9.

Como qualquer potência de 81 é um número natural que termina em 1, concluímos que o último algarismo do número 34798 é nove.

 

 

 

     Problema 2

Decompor o número 2004 em uma soma de inteiros positivos cujo produto seja o maior possível.

Vamos ver, inicialmente, o que acontece com números menores que 2004. Comecemos com o número 4. As decomposições possíveis são:

2 + 2, 3 + 1, 2 + 1 + 1 e 1 + 1 + 1 + 1.

A decomposição que denominaremos ótima, ou seja, aquela em que o produto das parcelas é máximo é 2 + 2.

Experimentando com outros números pequenos, obtemos as seguintes decomposições ótimas:

5 = 3 + 2; 8 = 3 + 3 + 2;
6 = 3 + 3; 9 = 3 + 3 + 3;
7 = 4 + 3 = 2 + 2 +3; 10 = 3 + 3 + 4 = 3 + 3 + 2 + 2.

Isso nos leva a conjecturar que a decomposição ótima de um natural maior que 3 seja formada apenas por parcelas iguais a 2, 3 ou 4.

Vejamos se nossa conjectura é verdadeira.

É fácil ver que o número 1 não deve aparecer em uma decomposição ótima. Com efeito se houver uma parcela igual a 1 e outra igual a   p,   se as trocarmos por uma parcela única igual a p + 1, conservaremos a soma e aumentaremos o produto, pois p + 1 >  p  x 1.

Tampouco numa decomposição ótima pode aparecer uma parcela q > 4, pois se a trocarmos por duas parcelas 2    e   q - 2,   conservaremos  a  soma e aumentaremos o produto, já que 2(q - 2) > q, se q > 4.

Finalmente, observamos que 4 pode ser trocado por 2 + 2 sem alterar a soma nem o produto. Portanto, sempre existe uma decomposição ótima formada apenas por parcelas iguais a 2 e 3.

Como 2 + 2 + 2 = 3 + 3 e 3 x 3 > 2 x 2 x 2, é mais vantajoso substituir três parcelas iguais a 2 por duas parcelas iguais a 3. Ou seja, quanto mais parcelas iguais a 3, melhor.
Como 2004 = 3 x 668, a decomposição ótima de 2004 é
2004 = 3 + 3 + ... + 3 (668 parcelas).

 

Conclusão

Examinar casos particulares é apenas uma dentre as muitas técnicas existentes utilizadas para “atacar” um problema. Adotar uma notação eficiente, o princípio do elemento extremo, adotar um sistema de coordenadas adequado entre outras, são exemplos de técnicas usadas na resolução de problemas. O leitor interessado poderá consultar as seguintes referências: POLYA, G. A arte de resolver problemas. Interciência, 1977; ORTEGA, J.R. O princípio do elemento extremo. Eureka! no 8, 33-42, 2000 e WAGNER, E. Paridade. Eureka! no2, 32-38, 1998.

 

 

 

Painel II

Geometria analítica

Aguinaldo H. de Oliveira

O objetivo deste artigo é mostrar que o estudo da geometria analítica é uma boa oportunidade de recuperar, ao menos um pouquinho, o estudo da geometria euclidiana plana, uma vez que o estudo dessa parte da Matemática foi negligenciado. Serve também para dar sentido de praticidade ao seu estudo, pois os problemas geralmente apresentados são, por exemplo, achar as coordenadas de um ponto ou a equação de uma reta, dando a impressão de que a “geometria analítica é um instrumento que serve apenas para resolver problemas de geometria analítica”.

Deve ser enfatizado aos alunos que a geometria analítica é uma boa técnica de resolver alguns problemas quando não conseguimos resolvê-los usando os conhecimento de geometria plana ou espacial. Sugerimos a leitura do artigo Sobre o ensino de Geometria Analítica, na RPM 41. Seguem abaixo dois exemplos.

 

     Problema 1

Demonstre a recíproca do teorema de Pitágoras, isto é, se num triângulo o quadrado de um lado é igual à soma dos quadrados dos outros dois, então o triângulo é retângulo.

Hipótese: a2 = b2 + c2
Tese: Â = 90°

Solução
A = (0, 0)
B = (b, 0)
C = (c1, c2)

a2 = b2 + c2 d2(B, C) = d2(A, C) + d2(A, B)
(c1 - b)2 + (c2 - 0)2 = (c1 - 0)2 + (c2 - 0)2 + (b - 0)2 + (0 - 0)2
c22 - 2c1b + b2 + c22 = c12 + c22 + b2 -2c1b = 0.

Considerando que b > 0, vem que c1 = 0 . Portanto, o ponto C está sobre o eixo y. Segue que  = 90º. Este problema exige apenas a fórmula da distância entre dois pontos (obtida da implicação direta do teorema de Pitágoras), e permite abordar o conceito de recíproca.

     Problema 2


Considere um trapézio retângulo de bases b e B, tal que as diagonais são perpendiculares. Calcule, em função de b e B a altura do trapézio.

Solução
Este é um problema que o leitor pode encontrar dificuldade em resolver por geometria sintética e tem uma solução muito fácil usando Geometria Analítica.

A equação das retas perpendiculares r e s são

Como o ponto (0, B) pertence a reta   s   temos e, então, h2 = Bb ou

 

Painel III

Um jeito diferente de multiplicar

Lúcia Resende Pereira Bonfim
UFU - MG

Certo dia, folheando o livro Elementary Theory of Numbers, de William J. Leveque, deparei-me com a seguinte “receita” de multiplicar números naturais, proposta no livro como exercício:

para multiplicar dois números naturais m e n construa uma tabela com duas colunas de números seguindo os passos 1 e 2 abaixo, e depois some conforme indicado no passo 3.

Passo 1: a primeira coluna começa com m, e os demais elementos dessa coluna são obtidos do elemento imediatamente acima mediante divisões sucessivas por 2, desprezando-se a parte fracionária quando houver, até que o número 1 seja atingido;

Passo 2: a segunda coluna começa com n, e os demais elementos dessa coluna são obtidos do elemento imediatamente acima mediante sucessivas duplicações, tantas vezes quantos forem os elementos da primeira coluna;

Passo 3: some os elementos da segunda coluna que estão ao lado de números ímpares da primeira coluna.

O resultado encontrado no passo 3 é o produto m.n .

Os exemplos abaixo ilustram melhor a receita.

Exemplo 1
Exemplo 2
m . n = 14 + 28 + 112 + 224 = 378.
m . n = 15 + 120 + 240 + 480 = 855

É claro que a regra acima não é prática, e “perde feio” para o algoritmo de multiplicação usualmente ensinado nos primeiros anos escolares.

Entretanto é instigante o fato dela funcionar sempre, e o objetivo deste artigo é dar uma explicação a qual julgo ser perfeitamente compreensível para alunos do ensino médio que gostam de desvendar, ou verem desvendadas, algumas “receitas mágicas”.

    A explicação da receita

Utilizaremos o seguinte fato da aritmética:

todo número natural admite uma decomposição binária.

Isto é, dado , existem e tais que

Por exemplo, .

No que segue denotaremos a parte inteira do número real   x   por   [x]. Dessa forma temos que [ 4/3 ] = 1 , [ ½ ] = 0 , e assim por diante.
Observe que, sendo

,

então

,

mais ainda, como é inteiro, e é zero ou meio, então , e a Linha 1 da nossa tabela será

1
2n

Analogamente, na segunda divisão obtemos e a Linha 2 será

2
2.2n = 22n

Continuando o processo concluiremos que a Linha j da tabela será

j
2jn

Dessa forma,

,

e é claro que na soma acima basta considerar as parcelas cujos coeficientes aj são diferentes de zero. Ou seja, chamando então

,

e lembrando que , então , donde obtemos

Para concluir, basta observar agora que o fato do índice “j ” pertencer ao conjunto A significa que “”, que por sua vez significa que o número na primeira coluna da linha “j” é ímpar.

Isso explica a receita, que manda somar apenas os elementos da segunda coluna que estão ao lado de números ímpares da primeira coluna.

Nota
Na RPM 49, página 54, foi publicada uma justificativa para um caso particular de multiplicação do tipo apresentado neste artigo e o método, que foi chamado de "multiplicação russa', está publicado na RPM 8, p.43, item c.