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José
Paulo Carneiro
Os números complexos ocupam uma posição singular no ensino de Matemática. Não merecem grande atenção nos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Matemática, por serem considerados como “assunto elementar” de nível médio. Já no Ensino Médio, são evitados, sendo taxados de estranhos, de compreensão difícil e, sobretudo, inúteis. De fato, que utilidade poderiam ter objetos cuja existência é motivada, logo no primeiro contato, pela capacidade que possuem de fornecer uma solução “imaginária” para uma equação que “sabemos” que não tem solução, como nos foi antes demonstrado várias vezes? Pois é assim que quase sempre aprendemos e ensinamos os números complexos. Quem consultar os livros do Ensino Médio ou ouvir os testemunhos de professores e alunos, vai constatar que a maneira mais comum de introduzir os números complexos é por meio da seguinte definição: “Um número complexo é um objeto da forma , onde a e b são reais, e permanecem válidas as leis da álgebra” (esta última parte significando que são válidas as propriedades comutativa e associativa da adição e da multiplicação, etc., etc.). Logo em seguida, passamos a fazer lotes de exercícios do tipo: “calcule (2 + i)(3 + 4i)”, “calcule ”, etc. E a maioria das questões de provas sobre complexos - inclusive em concursos - não passam de variantes mais ou menos complicadas destes exercícios. Dois comentários sobre a definição citada. Em primeiro lugar, depois que nós realmente entendermos o que é um número complexo, sabemos que esta definição não contém nada de errado. Todavia, introduzir os complexos por esta definição é análogo a introduzir as frações, para um estudante que conheça números inteiros, do seguinte modo: “uma fração é um objeto da forma , onde a e b são inteiros (sendo b 0), com , e que seguem as seguintes leis da álgebra: e ”. Em seguida, passamos aos exercícios: “calcule ”, etc. Também não haveria absolutamente nada de errado com esta definição e ela também permitiria resolver todas as contas usuais com frações. Mas, pergunto: alguém, em plena posse do seu bom senso e com um mínimo de compaixão com seus alunos, faria esta barbaridade? Pois é mais ou menos isto que fazemos com os números complexos. O segundo comentário é a respeito do trecho da definição em que se decreta que , às vezes acompanhado pela “esclarecedora” frase: “onde i é a unidade imaginária”. Este é um outro ponto desta definição que tende a desconcertar o iniciante. Durante anos, convencemos e fomos convencidos de que o quadrado de um número não pode ser negativo, e agora “cai do céu” um novo número cujo quadrado é -1. E se alguém pensa que está delirando, nós professores garantimos que sim, pois este é um número “imaginário”! Como podemos querer, depois disto, que o principiante ache que os números complexos são úteis na Matemática e na Física, ou pelo menos, ache que eles existem? Nada mais natural que o aluno pense que os complexos foram inventados apenas para resolver exercícios sobre números complexos.
Para tentar entender por que fazemos isto, vamos rever um pouco da história. Alguns livros costumam motivar a introdução dos números complexos, dizendo que eles nasceram para dar uma solução para equações do segundo grau (com coeficientes reais, é claro) cujo discriminante é negativo. O próprio i teria nascido para resolver a particular equação x2 + 1 = 0. Isto é menos que uma meia verdade. Na vida real, não ocorreu a nenhum matemático inventar um número com quadrado negativo, simplesmente para que certas equações passassem a ter raízes ou para “completar algebricamente o corpo dos reais”. Durante séculos, quando encontravam uma equação do segundo grau com discriminante negativo, simplesmente diziam: “esta equação não tem solução”, e pronto. É significativo - e diz muito sobre a evolução dos conceitos matemáticos - que esta necessidade só surgiu em meio à resolução de outro problema, a saber, a questão de encontrar uma fórmula para a equação do terceiro grau. Contrariamente ao que muitas vezes acontece na história da ciência, esta história está muito bem documentada e aparece claramente no primeiro livro de Álgebra importante impresso, a Ars Magna de Cardano (1545). As peripécias, recheadas de detalhes pitorescos, podem ser encontrados em livros de História da Matemática, como Eves (1995), Boyer (1974) ou Bekken (1994), ou em livros de divulgação, como Garbi (1997), Lima (1991) ou Nahin (1998), ou ainda em artigos, como Milies (1994). O que nos importa aqui é que, no início do sec.XVI, um grupo de matemáticos italianos procurava, para as equações algébricas de 3o grau, uma fórmula que desse as suas raízes em função dos coeficientes, de forma análoga à já então conhecida e célebre fórmula da equação do 2o grau. Durante esta busca, para testar suas tentativas, eles formavam equações que tinham raízes conhecidas. Por exemplo: a equação x3 + 4 = 6x tem raiz 2, como se pode verificar por substituição. Seguindo então uma idéia essencialmente de Scipione dal Ferro, a substituição x = u + 2/u transforma esta equação em u6 + 4u3 + 8 = 0. Se encontrassem uma solução u para esta última equação, o correspondente x seria solução para a equação original. Porém, para isto era necessário resolver a equação quadrática v2 + 4v + 8 = 0 (onde v = u3), cujo discriminante é negativo. A aplicação “mecânica” da fórmula tradicional levaria a Um impasse. O “pulo do gato” consistiu em ir em frente assim mesmo, apesar de “não fazer sentido”. E se supuséssemos que esta “coisa imaginária” satisfizesse às leis usuais da Álgebra? Constataríamos então que seria uma solução, pois as leis usuais da Álgebra acarretam que . Por outro lado, estas mesmas leis garantem também que a substituição reproduz a raiz que já se conhecia. De fato, ,
de modo que . Este sucesso levantou a suspeita de que talvez estes monstros existissem mesmo. Que eram úteis, já se começava a perceber. Mas fariam sentido? Durante muito tempo, trabalhou-se com números complexos, permanecendo sobre eles esta nuvem de obscuridade. Os complexos eram usados de forma envergonhada, e acompanhados de nomes ofensivos, que permaneceram até hoje na nossa nomenclatura — como “imaginários” — mas ainda assim eram cada vez mais utilizados. Euler (1707-1783), esse grande operário da Matemática, desenvolveu enormemente a álgebra dos complexos, introduziu o símbolo i para e a fórmula , mas não fez muito para esclarecer o “significado” desses números aparentemente absurdos. Na virada do século XVIII para o século XIX, um agrimensor norueguês, Wessel (1798), e um obscuro matemático suíço, Argand (1806), foram, aparentemente, os primeiros a compreender que os complexos não têm nada de “irreal”. São apenas os pontos (ou vetores) do plano, que se somam através da composição de translações, e que se multiplicam através da composição de rotações e dilatações (na nomenclatura atual). Mas essas iniciativas não tiveram grande repercussão, enquanto não foram redescobertas, quase simultaneamente, por Gauss (1777-1855), e apadrinhadas pela grande autoridade daquele que, já em vida, era reconhecido como um dos maiores matemáticos de todos os tempos. Foi Gauss que outorgou aos complexos o “direito de cidadania”, não só explorando a identificação do conjunto dos números complexos com o plano, mas principalmente usando os complexos para obter diversos resultados sobre Geometria plana e sobre os números reais, e até sobre os números inteiros. Foi com a ajuda dos complexos que Gauss decidiu quais eram os polígonos regulares construtíveis com régua e compasso, ou que números inteiros podiam ser escritos como soma de dois quadrados. Foi utilizando o plano complexo que Gauss deu sua demonstração geométrica de que todo polinômio de coeficientes reais pode ser decomposto em fatores de grau máximo dois, o que equivale ao Teorema Fundamental da Álgebra. Hoje em dia, é bastante claro, para todos os que trabalham com Matemática, o papel central que exercem os números complexos, e de suas inúmeras utilidades. O “segredo” está na multiplicação dos complexos, que é essencialmente uma composição de rotações. É por isto que os complexos aparecem inevitavelmente em muitos problemas que envolvem rotação, círculo, funções “circulares” (trigonométricas), movimentos periódicos, etc. E é por isto também que encontramos números complexos no estudo de circuitos elétricos, corrente alternada, astronomia, motores e mecânica quântica.
O que foi que Wessel e Argand perceberam? Vamos resumi-lo, usando a linguagem e o simbolismo atuais (para os detalhes, ver Carneiro (1998)). Deixando de lado, por enquanto, a intrigante raiz quadrada de -1, o número complexo z = a + bi fica perfeitamente determinado pelo par ordenado de números reais (a ; b)e este, por sua vez, pode ser visto como um ponto P no plano cartesiano (uma vez fixados os eixos), ou como o vetor determinado pela seta (ou “segmento orientado”) . Com esta identificação, o seu módulo é a distância de P à origem, ou o módulo do vetor , enquanto o conjugado de z é o simétrico de P em relação ao eixo das abcissas (Figura 1). O produto de z pelo número real t, ou seja (ta ; tb), é a imagem de P pela homotetia de centro na origem e razão t (Figura 2).
O unitário z / | z |do complexo não nulo z é o vetor unitário de , igual a (cos ; sen ), onde é o “argumento” de z (Figura 3).
Daí se vê que cada complexo pode ser escrito
na sua “forma trigonométrica”: A soma traduz-se na soma vetorial , e pode ser visualizada pelo clássico paralelogramo (Figura 4).
O produto, “pelas leis usuais da Álgebra”, é . Se escrevermos os complexos e na sua forma trigonométrica e desenvolvermos, veremos que isto se traduz na multiplicação dos módulos e na soma dos argumentos, ilustrada pela pouco explorada Figura 5, onde se vê que zw faz para w o mesmo que z faz para 1, ou seja, multiplicar seu módulo pelo de z (uma homotetia de razão | z |) e somar o argumento de z a seu argumento (uma rotação de amplitude e sentido iguais ao argumento de z).
Nesta maneira de encarar, o antes problemático i nada mais é do que o ponto P = (0; 1), ou o vetor definido pela seta que vai da origem a este ponto, ou ainda, o unitário que tem argumento p/2 (ou 90º). Mais importante: seu papel na multiplicação é somar 90º ao argumento do outro fator, ou seja, girar este fator de um ângulo reto positivo, como se vê também pela álgebra: iz = (-b; a) = -b + ai (Figura 6a). Figura 6aFigura
6b Por este motivo, multiplicar um complexo z = (a; b) = a + bi por i2 = i.i é girá-lo duas vezes de um ângulo reto positivo, o que equivale a girá-lo de meia volta, obtendo i2z = (-a; -b) = -z = (-1)z, ou seja, o simétrico de z em relação à origem, o mesmo que seria obtido se multiplicássemos z por -1 (Figura 6b). Agora, fica claro que i2 = -1, longe de ser uma monstruosidade incompreensível, traduz apenas um fato geométrico bastante simples: aplicar duas vezes uma rotação de 90º em torno da origem é o mesmo que efetuar uma simetria de centro na origem (ou uma reflexão em torno da origem).
Poderia ser dito que toda esta abordagem geométrica já está incorporada ao ensino tradicional, pois nada mais é do que a “forma trigonométrica ou polar” dos complexos. Mas não é o que se vê por aí. A verdade é que o ensino dos números complexos permanece ainda excessivamente preso à sua origem histórica e até hoje ainda não se beneficiou como poderia e deveria da revolução iniciada há 200 anos por Wessel, Argand e Gauss. O enfoque algébrico permite começar logo a operar com complexos sem dificuldade, mas a experiência tem mostrado que quando se perde a chance de apresentar os complexos imediatamente como entes geométricos, em geral esta oportunidade não se recupera, mesmo quando, mais tarde, aparece (quando aparece) a “forma trigonométrica”. Duas conseqüências nocivas advêm daí: 1a) O iniciante permanece com uma visão demasiado formal e algebrizante, não se beneficiando da riqueza da visualização e não emprestando um “significado” aos números complexos. Sobre a importância da visualização em Matemática, ver Guzmán (1996) e, especificamente sobre números complexos, Needham (2001). 2a) Dificilmente ocorrerá ao estudante aplicar números complexos a problemas de Geometria (ver Motta (1999)). Sobre este ponto, a experiência didática tem sido muito ilustrativa. Um exemplo típico é o célebre “problema da ilha do tesouro” (ver Carneiro (1999) e Carneiro et al. (2001), várias vezes apresentado para alunos de licenciatura ou em cursos de formação continuada para professores. Não somente não ocorre aos cursistas usar complexos para resolver este problema, como os mesmos ficam extremamente surpreendidos em saber que números complexos tenham alguma aplicação a um problema “real”.
A adoção de uma abordagem geométrica dos números complexos não exclui, é claro, o uso algébrico dos complexos, que continuam sendo importantes por motivos algébricos. À primeira vista, pode parecer que se os complexos forem apresentados como pares ordenados de reais, como se faz na abordagem geométrica, então não se vê como o corpo dos complexos estende o dos reais. Na realidade, o corpo dos complexos contém uma cópia perfeita dos reais, que é o eixo das abcissas do plano cartesiano, ou seja, o conjunto dos complexos da forma (a; 0), que são identificados com o respectivo real a. E é esta identificação que permite compreender, do ponto de vista da abordagem geométrica, por que “todo complexo pode ser escrito na forma a + bi”. De fato: (a; b) = a(1; 0) + b(0; 1) = a + bi, já que (1; 0) se identifica com 1, e (1; 0) = i. Aqui reencontramos o caminho da História, pois os números complexos, inicialmente procurados para resolver equações, de fato estendem os reais de uma maneira “algebricamente perfeita”, no sentido de que toda equação algébrica (mesmo que só tenha coeficientes reais) passa a ter solução, sendo este o conteúdo do famoso Teorema Fundamental da Álgebra. Esta propriedade “conserta” uma série de imperfeições do sistema dos números reais, permitindo explicar muitas coisas aparentemente estranhas que ocorrem nos reais. Como dizia Hadamard (1865-1963): “O caminho mais curto entre duas verdades no campo real [muitas vezes] passa pelo campo complexo”. Por exemplo, é mais fácil perceber através dos complexos porque um polinômio de grau ímpar, com coeficientes reais, tem sempre uma raiz real.
Ultimamente, os programas de Geometria Dinâmica abriram novos caminhos para o ensino da Geometria e, portanto, dos números complexos. Um exemplo significativo destas novas possibilidades é dado pelo Teorema Fundamental da Álgebra, que sempre foi considerado um tema que só podia ser abordado em cursos universitários, já que sua demonstração exige conhecimentos e técnicas não triviais de análise real e complexa. No entanto, a Geometria Dinâmica permite ilustrar, por meio da visualização, alguns dos argumentos usados pelo próprio Gauss na demonstração deste belo e importante teorema (Wanderley et al. (2002a) e Wanderley et al. (2002b)).
A humanidade levou milhares de anos para descobrir os números complexos, mas somente 200 anos após começou a perceber o verdadeiro significado e as potencialidades de aplicação desta descoberta. Passados outros 200 anos, o ensino dos números complexos necessita beber mais nesta fonte que é a abordagem geométrica dos números complexos, ainda mais agora que possuímos o recurso dos programas de computador para a Geometria.
BEKKEN, O., Equações de Ahmes até
Abel, trad. José Paulo Carneiro, Rio de Janeiro, Ed. Universidade
Santa Úrsula, 1994.
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