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Geraldo
Ávila
Em artigo
na RPM 54 falamos de Eratóstenes e seu cálculo
do tamanho da Terra. No presente artigo falaremos de Aristarco (±
310 – 230 a.C.), um ilustre astrônomo da Antigüidade,
que nos deixou um livro muito interessante sobre o cálculo das
distâncias do nosso planeta à Lua e ao Sol, bem como o tamanho
desses dois corpos celestes. Como Eratóstenes, Aristarco pertenceu
à escola de Alexandria, mas viveu algumas dezenas de anos antes
de Eratóstenes.
Aristarco encontrou um modo muito simples e ao mesmo tempo bastante engenhoso para comparar as distâncias da Terra ao Sol e da Terra à Lua. Mas antes de explicar seu raciocínio, procuremos entender por que o Sol está mais longe da Terra do que a Lua. O professor tem aqui uma excelente oportunidade de estimular seus alunos a descobrir por conta própria um fato muito significativo na construção do conhecimento. Em primeiro lugar, os alunos devem explicar as razões por que o Sol está mais longe da Terra do que a Lua. Para isso eles devem observar o movimento da Lua ao longo do mês, notando sua passagem por suas várias fases. Eles decerto vão descobrir, por conta própria, que a Lua está mais perto de nós do que o Sol. De fato, começando com lua-cheia, a luminosidade lunar vai diminuindo progressivamente, passando por quarto-minguante até chegar a lua-nova1. Isto significa que a Lua vai se interpondo progressivamente entre o Sol e a Terra, portanto, está mais perto de nós do que o Sol. Às vezes, ao chegar a lua-nova ocorre um eclipse solar, o que é prova cabal de que a Lua está “do lado de cá do Sol”. Outro modo de certificar-se que o Sol está mais distante de nós do que a Lua consiste em supor o contrário. O que veríamos no céu se a Lua estivesse mais longe de nós do que o Sol? Ela estaria então sempre iluminada diretamente pelo Sol, como ilustra a Figura 1. Não haveria nunca lua-nova. E haveria lua cheia duas vezes no ciclo lunar, nas posições 1 e 3, esta última em pleno meio-dia! Ora, isso nunca acontece.
Muitas pessoas pensam que as idéias geniais costumam
ser profundas e complicadas. Freqüentemente elas são é
simples; tanto que muitas vezes nós mesmos, comuns mortais, nos
surpreendemos exclamando “mas como que eu não pensei nisso
antes?!” Aristarco observou a Lua em quarto-crescente ou quarto-minguante, quando ela é vista metade escura e metade iluminada (ver Figura 2). Fazendo a observação exatamente ao nascer ou ao pôr-do-Sol, constatamos que ela está quase na vertical acima de nossas cabeças.
Vamos fazer um desenho, representado o observador terrestre por T, o centro da Lua por L e o centro do Sol por S (ver Figura 3). Obtemos um triângulo LST, que é retângulo em L2, e cujo ângulo a estará muito próximo de 90º. Esta constatação já é suficiente para nos fazer ver que o Sol está muito mais longe de nós do que a Lua. Do contrário, o ângulo a seria bem menor.
Sendo
muito próximo de 90°, o ângulo
será bem mais próximo de zero, pois estes dois ângulos
são complementares. Aristarco achou para a um valor próximo
de 87°. Desenhando então um triângulo semelhante ao triângulo
TSL, podemos constatar que o lado TS é aproximadamente
20 vezes o lado TL3.
Ou seja, a distância da Terra ao Sol é aproximadamente 20
vezes a distância da Terra à Lua.
Sim, vale a pena examinar essa questão, para que os alunos vejam com clareza os fatos matemáticos que estão sendo utilizados. Utilizamos o fato de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180° para concluir que e são ângulos complementares; ou ainda, que o ângulo a determina toda uma classe de triângulos retângulos semelhantes entre si. Aprecie aqui, professor, a importância do conceito
de semelhança de triângulos (e responda a seus alunos a pergunta
que eles sempre fazem: professor, para que serve esse negócio de
semelhança de triângulos?). Uma vez conhecido um desses triângulos
(como TSL), a razão TS/TL é a mesma em
todos eles. Isso significa que, impossibilitado de medir essa razão
no enorme triângulo astronômico original, Aristarco decerto
desenhou um triângulo a ele semelhante, num pedaço de pergaminho,
de papiro, ou mesmo na areia (como um antigo José de Anchieta escrevendo
nas areias de Peruíbe); e nesse triângulo pequeno ele poderia
medir as distâncias TL e TS, e comprovar que TS
é aproximadamente 20TL.
Essa é outra questão interessante, que pode mesmo ocorrer a um aluno mais atento. Naquela época eles não possuíam instrumentos precisos de medição. Por outro lado, não é nada fácil saber o momento exato em que a Lua está metade iluminada e metade escura. Para medir o ângulo, seria preciso observar isto ao nascer ou ao pôr-do-Sol. O professor pode sugerir que seus alunos façam essas observações. Na verdade, Aristarco não precisava medir esse ângulo. Ele poderia calculá-lo por uma proporção simples. Basta observar o tempo gasto pela Lua para completar uma volta em torno da Terra e o tempo gasto para ir de minguante a crescente. Aristarco teria observado que o ciclo lunar dura 29,5 dias; e que a passagem de minguante a crescente (observe a Figura 2) dura cerca de 14,25 dias, um dia a menos que a passagem de crescente a minguante. Este último fato também não pode ser comprovado após uma única observação, seria preciso fazer várias observações e calcular o valor médio delas (uma boa tarefa como projeto para os alunos fazerem durante o semestre. O professor poderia até dividir a classe em pequenos grupos para fazer as observações e os cálculos, que deveriam ser comparados entre os grupos ao final do semestre ou do ano letivo). Admitidos corretos os dados anteriores, temos a seguinte proporção: donde se obtém
86,95°
87°. Observação 1 É preciso que se diga que o resultado de Aristarco está
muito longe do valor correto, pois hoje sabemos que a distância
da Terra ao Sol é cerca de 400 vezes a distância da Terra
à Lua. Em conseqüência, o ângulo
está muito próximo de 89,86°, portanto, muito perto
de 90°. Isso não empana o mérito de Aristarco, que está
na idéia que ele teve para calcular a distância da Terra
ao Sol, comparativamente à distância da Terra à Lua. Observação 2 Outra coisa a observar é que o que fazemos hoje em dia não é desenhar o triângulo semelhante TSL e medir seus lados, mas recorrer a uma tabela de valores da razão TL/TS. De fato, é freqüente a ocorrência de cálculos de uma lado de um triângulo retângulo em termos de outro, de sorte que é muito conveniente construir tabelas que possam ser usadas sempre que surgir a necessidade. Está aqui uma boa motivação para a trigonometria. A razão TL/TS é, por definição, o seno do ângulo ; portanto, podemos escrever: donde Agora é só substituir aí o valor
do seno, obtido numa tabela, para calcular TS em termos de TL.
Melhor ainda do que fazíamos há décadas, o cálculo
pode ser feito facilmente com uma calculadora científica. Mas falta
um detalhe: necessitamos do valor de TL para TS. Explicaremos
isso após a próxima seção.
Uma interessante coincidência que nos proporciona a Natureza é o fato de o Sol e a Lua terem o mesmo tamanho angular. Em outras palavras, como ilustra a Figura 4, o ângulo 2 sob o qual vemos a Lua é o mesmo sob o qual vemos o Sol. A própria Natureza nos poupa de fazer qualquer medida, pois ela exibe a coincidência exata dos dois discos, solar e lunar, num eclipse total do Sol. Aristarco estimou o ângulo 2 como sendo 2° quando, na verdade, ele é de cerca de 0,5°. Mas essa discrepância, como o leitor notará no raciocínio a seguir, não altera o resultado que vamos obter, baseado na semelhança dos triângulo retângulos TLL’ e TSS’. Esta semelhança permite escrever Isso significa que os raios do Sol e da Lua, SS’
e LL’ respectivamente, estão entre si como as distâncias
da Terra ao Sol e à Lua, respectivamente TS e TL.
Como a razão destas duas últimas distâncias é
conhecida, o mesmo é verdade da razão SS’/LL’.
Segundo Aristarco, essas razões são iguais e estão
compreendidas entre 18 e 20.
Para explicar os resultados de Aristarco, é conveniente introduzir a seguinte notação: DS = distância da Terra ao Sol; Vamos também indicar com RT o raio da Terra, e introduzir os parâmetros a e b assim definidos. Veja a Figura 4 para entender a igualdade das razões . Figura 4 Para Aristarco, como já vimos b 20. Para obter o parâmetro a, como o ângulo era conhecido, ele teria de medir os lados SS’ e TS no triângulo TSS’ (figura 4) Para nós, hoje a razão SS’/TS é o que chamamos de seno do ângulo g, de sorte que a = sen . Ele completou a determinação das grandezs DT, DL, RS e RL em termos do raio da Terra RT, valendo-se de um eclipse da Lua. O que ele fez – e que está explicado no Apêndice adiante – permite escrever: Com os dados de Aristarco, DL 16,8RT, DS 337RT, RS 5,7RT, RL 0,29RT. Ao contrário, com valores mais corretos para os ângulo e , obtemos resultados bem mais próximos dos valores modernos: DL
62RT,
DS
24855RT,
RS
109RT,
RL
0,27RT.
Vimos que Aristarco necessitou do raio da Terra para
seus cálculos das distâncias da Terra à Lua e ao Sol.
No entanto, o raio da Terra, pelo que sabemos, foi calculado por Eratóstenes
depois de Aristarco. Por isso é preciso que se diga que outros
sábios, antes de Eratóstenes e Aristarco, calcularam o raio
da Terra. O problema é que só sabemos disso por vagas referências,
sobretudo em Aritstóteles. As próprias distâncias
da Terra à Lua e ao Sol foram calculadas – ou, pelo menos,
grosseiramente avaliadas – antes desses sábios, mas disso
não temos informações precisas.
Os resultados aqui descritos estão num livro de Aristarco intitulado Sobre o tamanho e distâncias do Sol e da Lua. Esse livro chegou até nossos dias, e dele há uma excelente edição comentada, devida ao eminente historiador da ciência Thomas L. Heath (Aristarcus of Samos, Oxford University Press). Aristarco escreveu outros livros, que se perderam. Deles temos notícia por referências feitas por outros autores. Por exemplo, há um livro de Arquimedes, intitulado O arenário ou O contador de areia, no qual Arquimedes mostra como escrever números muito grandes. (Hoje em dia isso é muito fácil, basta escrever uma potência de 10 com expoente bem grande; por exemplo, 10100 já ultrapassa, e de muito, o número de todos os átomos do universo). A tarefa de Arquimedes não era simples porque o sistema numérico
de seu tempo não possuía a facilidade do sistema posicional
que hoje usamos. Para bem impressionar, Arquimedes começa anunciando
que poderá escrever um número maior que o número
de grãos de areia existentes no universo. É aí que
ele fala no Universo de Aristarco, fazendo referência ao livro que
este astrônomo teria escrito explicando a teoria de que o Sol estaria
no centro do Universo, com a Terra e os demais planetas girando em volta.
Esse livro de Aristarco certamente existia na Biblioteca de Alexandria.
Quando refletimos sobre isso, e sobre os muitos outros livros que lá
estavam e que foram destruídos para sempre – livros sobre
Astronomia, todas as ciências e tudo o mais que diz respeito à
atividade intelectual do ser humano – só então podemos
avaliar a imensa e irreparável tragédia que foi a destruição
dessa biblioteca.
Vamos descrever o raciocínio de Aristarco na observação de um eclipse da Lua, quando este satélite atravessa o cone de sombra da Terra (Figura 5). Usaremos naturalmente, a notação moderna, de que Aristarco não dispunha. Figura 5 Pelo tempo gasto pela Lua para atravessar o cone de sombra da Terra, Aristarco calculou o diâmetro desse cone na altura da Lua – LD na Figura 6 – como sendo 8/3 do diâmetro da Lua. Figura 6 Na Figura 6, L, T e S são os centros da Lua, da Terra e do Sol, respectivamente; LH = RT, TC = RT e SA = RS são respectivos raios. De acordo com Aristarco, LD = 8RL/3. Da semelhança dos triângulos DFC e CEA resulta CF/DF = AE/CE. Observe que CF = TC – TF = RT– LD = RT – 8RL/3, DF = DL, AE = AS – SE = RS– RT, CE = DS. Substituindo esses valores na proporção anterior, obtemos Por outro lado, já sabemos que DS = bDL, RS = aDS = abDL, RL = aDL, de sorte que a igualdade anterior pode ser escrita assim: donde que também se escreve donde Então, que são os quatro valores registrados anteriormente.
1
Há um fenômeno interessante que ocorre
na passagem da lua-nova que vale a pena mencionar aqui: o disco lunar,
embora voltado para a Terra, portanto não recebendo luz direta
do Sol, apresenta-se levemente iluminado. Como pode ser isso? A explicação,
dada pela primeira vez pelo sábio renascimento Leonardo da Vinci
(1452-1519), é curiosa e interessante: a luz do Sol, refletida
pela Terra, reflete-se novamente na Lua e volta à Terra. Assim,
aquela fraca iluminação do disco lunar numa lua-nova é
proveniente da Terra por reflexão na Lua! Pode-se constatar que
tal iluminação está ausente mesmo pouco antes do
quarto-crescente ou pouco depois do quarto-minguante.
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