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Geraldo Ávila
Outro dia, quando eu explicava a meu neto de 14 anos uma lição de ciências, eu disse: “Como o raio da Terra é aproximadamente 6 400 km...”, ao que ele me interrompeu: “Vovô, mas como é que se mede o raio da Terra?” Eu gostei muito da curiosidade expressa nessa pergunta, porque pude explicar que um grande sábio da Antiguidade calculou o raio da Terra há mais de 2 200 anos! Mais do que isso, pude explicar que ele, meu neto, já sabia a Matemática necessária para entender esse cálculo. E mais ainda, expliquei que os sábios daquela época calcularam também as distâncias da Terra à Lua e da Terra ao Sol, e os tamanhos desses astros; e para isso utilizaram noções básicas de semelhança e proporcionalidade que são ensinadas em nossas escolas a alunos de 12, 13 e 14 anos de idade. Fiquei com saudades do tempo em que eu era professor de Matemática... e de novo poder falar sobre essas coisas aos alunos. Certa vez fui convidado a fazer uma palestra num colégio de Brasília; e logo que cheguei fui surpreendido com um auditório lotado. Foi só nesse momento que o professor que me convidara me disse que, de última hora, a direção do colégio autorizara reunir todos os alunos da 5a à 8a série para me ouvir. Fiquei meio apavorado, preocupado em manter a disciplina daquela garotada toda. Mas acertei em cheio falando dessas coisas antigas, contando histórias e focalizando as idéias da Matemática, não as fórmulas. Consegui manter a turma toda “ligada” por sólidos 60 minutos. Fico sempre me perguntando: por que as escolas não ensinam essas coisas aos alunos? São fatos interessantíssimos e que responderiam muito bem a perguntas que os alunos sempre fazem: “Professor, para que serve essa história de triângulos, semelhança, paralelas, etc., etc.?”. Quando eu tinha 13 anos de idade, eu fiz essas perguntas a meu professor de Matemática. Não tive uma resposta satisfatória, como acontece a muitos estudantes ainda hoje. Mas as perguntas me intrigaram por anos a fio, até que um dia eu aprendi, por conta própria, como os fatos básicos da geometria do triângulo são importantes - e, podemos dizer, fazem mágica - na resolução de problemas simples e relevantes, como no caso da Astronomia antiga. Essas coisas me fascinaram muito. E ainda fascinam. Tanto assim que meu primeiro artigo na RPM foi sobre isso. Está tudo lá, na RPM 1, um artigo que minhas colegas Alciléa Augusto e Ana Catarina sugerem que seja republicado. Eu preferi reescrever, em novo estilo, e em artigos mais curtos, aquele material. Quem sabe consigo ser mais persuasivo em meu esforço de interessar os colegas professores a utilizarem esses exemplos em sala de aula.
O cálculo do raio da Terra por Eratóstenes aparece em alguns livros do ensino médio, portanto, não é tão desconhecido. No entanto, vale a pena revê-lo, primeiro por ser coisa muito interessante e de grande relevância na construção do conhecimento; e também para que os alunos vejam o poder da Matemática. Eratóstenes viveu no terceiro século a.C., na cidade de Alexandria, que fica no extremo oeste do delta do rio Nilo. Mais ao sul, onde hoje se localiza a grande represa de Assuã, ficava a cidade de Siena, como ilustra o mapa. Naquela época deveria haver um tráfego regular de caravanas entre as duas cidades; e, talvez por causa desse tráfego, sabia-se que a distância entre Alexandria e Siena era de aproximadamente 5000 estádios, ou seja 800 km (tomando o estádio como igual a 160 metros). Decerto os viajantes experientes já haviam feito uma boa estimativa dessa distância. Quem viaja com freqüência por anos a fio sabe calcular as distâncias percorridas, muito provavelmente pelo número de dias gastos na viagem e pelo que se consegue percorrer numa jornada. E, uma vez conhecida a distância ao longo das estradas, seria possível fazer uma estimativa da distância em linha reta. Outra coisa que se sabia é que as duas cidades estavam mais ou menos no mesmo meridiano, ou seja, tinham a mesma longitude. Isso é intrigante, pois, enquanto seja relativamente fácil fazer uma estimativa da latitude de um lugar, a comparação das longitudes de dois lugares diferentes é um problema bem mais complicado. Decerto eles achavam que as duas cidades estavam no mesmo meridiano porque para ir de Alexandria a Siena viajava-se diretamente na direção sul.
Além desses dois fatos - a distância de 800 km entre as duas cidades e elas estarem no mesmo meridiano1 -, dois outros fatos foram cruciais no raciocínio de Eratóstenes: devido à grande distância que o Sol se encontra da Terra, os raios solares que chegam ao nosso planeta são praticamente paralelos; e quando os raios solares caíam verticalmente ao meio-dia em Siena (o que era comprovado vendo que as cisternas ficavam totalmente iluminadas ao meio-dia e o disco solar podia ser visto refletido no fundo dessas cisternas),2 em Alexandria eles formavam, com a vertical do lugar, um ângulo igual a 1/50 da circunferência completa. Com a medida em graus, isso equivale a dizer que esse ângulo era de 7,2º. Veja: Nesse ponto entra o raciocínio de Eratóstenes: se a 1/50 de ângulo correspondem 800 km de arco, ao ângulo de 360º corresponderá 50 x 800 = 40 000 km.
Sim, vamos rever o raciocínio de Eratóstenes para identificar os fatos matemáticos usados. Ele entendeu que o ângulo de 7,2º em Alexandria (A na figura anterior) é igual ao ângulo central em O, o que pressupõe que os raios solares que chegam à Terra são paralelos, devido à grande distância do Sol3. Portanto, a igualdade dos ângulos em O e A é devida ao fato de eles serem ângulos correspondentes em duas paralelas (AB e OS) cortadas pela transversal OA. O outro fato matemático utilizado é o da proporcionalidade entre arcos e ângulos: os ângulos centrais são proporcionais aos arcos que subentendem; assim, o ângulo de 7,2º está para o arco AS, assim como 360º está para a circunferência completa. Os fatos matemáticos utilizados devem ser claramente explicados aos alunos, para que eles possam apreciar a importância da Matemática. É muito necessário apresentar aplicações interessantes, como essa do cálculo do tamanho da Terra, e evitar contextualizações inúteis e contraproducentes, que a gente anda vendo por aí, até mesmo nas provas do ENEM.
Sim, será que Eratóstenes mediu mesmo o ângulo de incidência dos raios solares? Para isso ele teria de se valer de algum aparelho, e teria de realizar uma operação meio sofisticada, difícil de ser feita com precisão. Parece que ele procedeu de maneira muito mais simples. Em Alexandria certamente havia um relógio solar, com uma coluna construída bem na vertical, cujas sombras projetadas serviam para marcar a hora do dia. Ele decerto esperou o dia do ano em que se sabia que os raios solares incidiam verticalmente em Siena ao meio-dia; e, nesse instante, mediu o comprimento da sombra projetada pela coluna do relógio solar em Alexandria.
De posse do comprimento dessa sombra (AB na figura) e da altura BC da coluna, ele teria desenhado um triângulo retângulo A´B´C´ (numa folha de papiro, com certeza), com lados A´B´ e B´C´ proporcionais aos lados AB e BC, respectivamente, do triângulo ABC, que também é retângulo em B (veja as figuras). Seria agora relativamente fácil medir o ângulo de incidência, ou seja, o ângulo A´C´B´ do triângulo A´B´C´ da figura. Eratóstenes teria verificado que esse ângulo era de 1/50 da circunferência completa, ou seja, 7,2º. Novamente, vale a pena chamar a atenção dos alunos para a Matemática que está sendo usada. A igualdade do ângulo de incidência em A com o ângulo ACB decorre de esses ângulos serem alternos internos; e a igualdade dos ângulos ACB e A´C´B´ é devida à semelhança dos triângulos ACB e A´C´B´.
Da circunferência terrestre podemos passar ao raio da Terra sem necessidade de novas medições. Antes de falar sobre isso, vale a pena refletir sobre a medição desse raio. Enquanto podemos pensar em medir um comprimento, mesmo diretamente, como a distância de Siena a Alexandria, o mesmo é absolutamente impensável no caso do raio da Terra, pois não há como penetrar fundo no interior do planeta, não só na antiguidade, mas mesmo em nossos dias. E foi isso o que passou pela cabeça de meu neto quando me perguntou, manifestando estranheza: “Vovô, mas como é que se mede o raio da Terra?” Isso deve ser lembrado para conscientizar nossos alunos da importância de um fato tão simples como a proporcionalidade entre o comprimento da circunferência e seu diâmetro, um fato que exprimimos com a fórmula C = 2r, e que tem grande poder - como veremos agora - para se fazer um cálculo sem a necessidade de novas medições. Mas não devemos mostrar essa fórmula a nossos alunos logo de início. Estamos diante de um fato matemático muito propício à experimentação. Os alunos devem ser levados a experimentar, valendo-se de vários tipos de circunferências: pratos, pires, rodas de bicicleta, etc. Eles devem medir os comprimentos da circunferência e do diâmetro em cada caso para se certificarem de que a razão da primeira para o segundo é aproximadamente 6, o mesmo valor nos mais variados tamanhos de rodas. Depois eles devem ser levados a trabalhar com semelhança e proporcionalidade, de maneira a chegarem mais perto de uma demonstração do seguinte fato: A razão da circunferência
para o diâmetro é uma E, enfim, serem informados de que 6,28 é um valor mais correto dessa razão, valor esse a que se chega por demonstração. O professor deve, ao menos, dar uma idéia dos caminhos da demonstração. Por último, lembrando que o diâmetro é duas vezes o raio, chega-se à fórmula C = 2r, onde é o número aproximado 3,14. No caso da Terra, como C = 400 000 km, calcula-se
Já dissemos que Eratóstenes viveu no século terceiro a.C., provavelmente entre 276 e 196 a.C., dizem os historiadores mais abalizados. Portanto, era pouco mais jovem que Arquimedes (287-212 a.C.). Ele não foi o primeiro a se preocupar com a medida do tamanho da Terra. Aristóteles (384-322) e Arquimedes fazem referências a outras estimativas e citam valores do tamanho da Terra. Mas eles não explicam de onde provêm suas informações, por isso mesmo esses eventuais cálculos anteriores a Eratóstenes não são levados em conta. O cálculo do tamanho da Terra aparece num livro de Ptolomeu sobre Geografia, livro esse que foi muito usado no tempo das grandes navegações. Por razões não bem esclarecidas até hoje, ou Ptolomeu valeu-se de um cálculo do raio terrestre diferente do que fez Eratóstenes, ou registrou um estádio de outro comprimento que o do tempo de Eratóstenes4. Seja como for, em sua Geografia, Ptolomeu utiliza um valor do raio da Terra que está abaixo do valor fornecido por Eratóstenes. E apresenta um mapa do mundo então conhecido, o qual contém mais dois erros importantes: a largura leste-oeste do mar Mediterrâneo está exageradamente alta, bem como a largura leste-oeste da Ásia. Em conseqüência desses três erros, a distância do Oeste europeu (Espanha, Portugal) ao Leste asiático (Japão, Coréia), para quem navegasse pelo oceano Atlântico em direção oeste, seria bem mais curta do que realmente é. Cristóvão Colombo valeu-se disso para convencer os reis de Espanha de que sua viagem às Índias seria viável5. Sua sorte foi estar errado em pensar que não havia terra em seu caminho, pois, fosse isso verdade, ele teria perecido.
Uma aula sobre os tópicos aqui tratados não deve terminar sem deixar claro aos alunos o grande poder do raciocínio matemático na construção do conhecimento. Com efeito, saber o tamanho da Terra sem dúvida foi uma das mais notáveis descobertas da Antiguidade. Imagine a diferença em nada saber sobre isso e depois saber! Embora essa descoberta tenha acrescentado muito ao conhecimento que o ser humano tinha do mundo a seu redor, até as pessoas mais cultas imaginavam um mundo muito pequeno, comparado com o que dele sabemos hoje. E o que hoje sabemos sobre a imensidão do Universo, das galáxias, etc., também só foi conseguido com a imprescindível ajuda do conhecimento matemático. A apresentação dos fatos matemáticos de maneira contextualizada é importante, desde que isso possa ser feito de modo interessante e motivador. Entretanto, muitas vezes o que ensinamos não oferece oportunidade de contextualização imediata; mas serve de base a novos reultados, num encadeamento progressivo, que vai acabar em resultados importantes em aplicações. Não podemos insistir na contextualização de fatos isolados, um aqui, outro acolá: o que costuma ser mais interessante é a aplicação de vários fatos juntos, como vimos aqui. Observe que no cálculo de Eratóstenes intervêm dois fatos juntos, o das paralelas cortadas por uma transversal e o da proporcionalidade entre arcos e ângulos, que, utilizados conjuntamente, adquirem importância decisiva no cálculo. Depois pudemos falar, conjuntamente, desse cálculo de Eratóstenes, da Geografia de Ptolomeu e da saga de Colombo. Tudo está interligado, não de maneira artificial e pobre como em muitos exageros de certas contextualizações forçadas e artificiais que vemos por aí - mais prejudicando do que ajudando no ensino da Matemática. Mais uma observação importante: quem tem de falar de aplicações da Matemática a outros domínios científicos é o próprio professor de Matemática. Nada de pensar que a parte histórica é lá com o professor de História. Isso significaria fragmentar o conhecimento em compartimentos estanques. Todo professor, seja de Matemática, História, Geografia, Física, etc., tem de se preparar para ir além das estritas fronteiras de sua disciplina. Assim, um professor de Física geralmente ensina os conceitos e operações com vetores, tópico raramente tratado no ensino da própria Matemática. Nada de errado nisso. O professor de Geografia também pode (e deve) falar de Eratóstenes, de seu cálculo e das implicações disso. Não faz mal que uma disciplina repita uma lição muito parecida de outra, é até salutar que isso aconteça para maior proveito dos alunos. E, assim procedendo, os professores estarão promovendo a tão desejada integração do conhecimento de maneira harmoniosa e orgânica.
1
Isso só é verdade aproximadamente, tanto no que se refere
à distância entre as duas cidades, quanto à igualdade
das longitudes. Veja Alexandria e Assuã num bom mapa do Egito:
Assuã, a antiga Siena, fica às margens do lago Nasser, pouco
mais de 3o a leste de Alexandria.
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