Suely Druck
Presidente da Sociedade Brasileira de Matemática
presidente@sbm.org.br

RPM: No número 52 da RPM publicamos o artigo de título acima como editorial. Infelizmente o texto da presidente da SBM, Suely Druck, foi editado truncado, com menos da metade do texto original. Numa tentativa de reparar essa nossa falha em relação à autora do texto e também em relação aos nossos leitores que foram privados do texto completo, a RPM o publica neste número.

A preocupação com a crise pela qual passa o ensino da Matemática nas escolas levou a SBM a fazer uma análise minuciosa da situação visando elaborar um diagnóstico e propor soluções. Para esse trabalho, além de discussões no seio da comunidade matemática, a SBM estabeleceu contato direto com grupos de professores do ensino básico de várias regiões do país para conhecer de perto os problemas a serem enfrentados. Em paralelo, a SBM promoveu no Rio de Janeiro, com apoio da FAPERJ, um curso de capacitação para professores dos níveis médio e fundamental. Desse curso brotaram depoimentos e experiências que enriqueceram a nossa visão da crise que aflige o ensino da Matemática no país.

No Provão, a Matemática tem sido a última colocada em todos os anos entre as áreas avaliadas.

Outra fonte de informações importantes sobre a questão é o projeto Numeratizar, recém- iniciado no Ceará com o apoio do MEC, da UFC, das Secretarias estaduais de Educação e Ciência & Tecnologia, da FACEP e da SBM. A análise foi completada com o mapeamento de diversas iniciativas nacionais para a melhoria do ensino obtidas através da 1a Bienal da SBM, evento dedicado ao ensino da Matemática realizado no ano passado, na UFMG.

A questão principal a ser enfrentada é a baixíssima qualidade do ensino básico, principalmente nas escolas públicas, onde estuda a maioria dos brasileiros. Claro está que uma situação desse porte não nasce de repente; é construída ao longo de décadas de ensino deficiente, quadro que tristemente se agrava a cada geração. A progressiva decadência da qualidade do ensino da Matemática atinge hoje a própria Licenciatura em Matemática, completando assim um círculo vicioso. Dados objetivos evidenciam o problema: no Provão, a Matemática tem sido a última colocada em todos os anos entre as áreas avaliadas. As médias (sobre DEZ) dos licenciandos na parte discursiva do Provão foram: 0,43 (1998), 0,94 (1999), 0,65 (2000) e 1,12 (2001). Como a maior parte dessa prova consta de tópicos do ensino médio, conclui-se que a maioria dos professores de Matemática vem sendo formada sem conhecer o conteúdo do que deve lecionar. O SAEB/2001 - Matemática revela que apenas 5,99% dos alunos do ensino médio alcançaram o nível desejado e, na 4o série do ensino fundamental, apenas 6,78%. Indica ainda uma piora (em relação ao SAEB/1999) do nível matemático de nossas crianças em 11 Estados, enquanto nos demais Estados parece não revelar alteração. Completa esse quadro o baixíssimo nível de cultura matemática cotidiana do brasileiro, que na sua maioria desconhece as quatro operações e unidades de medida. Um parecer do Instituto Paulo Montenegro (IBOPE) de 17-12-2002 sobre o índice de conhecimento matemático da população no país, entre 15 e 64 anos, mostra a que ponto chegou a calamidade nacional na questão do ensino da Matemática: “A indicação de que apenas 21% da população consegue compreender informações a partir de gráficos e tabelas, freqüentemente estampadas nos veículos de comunicação, sugere que boa parte dos brasileiros encontra-se privada de uma participação efetiva na vida social, por não acessar dados e relações que podem ser importantes para auxiliá-la na avaliação de situações e na tomada de decisões.”

De outro lado, há que se constatar que a já conhecida falta de professores de Matemática nas escolas indica que o problema quantitativo não é menos sério que o qualitativo.

A questão salarial e a desvalorização da profissão do professor de ensino básico são uma das causas mais importantes desse quadro, o que faz com que a Matemática não consiga atrair um contingente importante de bons alunos interessados em Matemática. Essa questão, embora comum a todas as áreas científicas, atinge mais duramente a Matemática, uma vez que ela é a única ciência estudada desde os 6 anos.

Quando o estudante ingressa na Universidade, estamos pressupondo 11 anos de pré-requisitos matemáticos, que a grande maioria não possui. Essa é a causa das enormes taxas de reprovação nas disciplinas de cálculo, que tanto prejuízo traz às áreas tecnológicas.
Atualmente, grande parte dos professores é oriunda de cursos noturnos de licenciatura de baixa qualidade acadêmica predominam a pobreza de informação teórica, precariedade no uso da informática e distanciamento do ambiente científico. Ora, a qualidade da formação dos professores do ensino básico depende fundamentalmente do trabalho dos professores que atuam nas licenciaturas. Grande parte desses professores tem uma formação deficiente (muitos possuem apenas uma licenciatura como única formação matemática) e não se tem conseguido formar um número suficiente de mestres para atuar nesses cursos.

Além da pobreza de informação matemática, detecta-se na formação dos professores uma supervalorização de métodos pedagógicos em detrimento de conteúdo matemático. Uma boa formação pedagógica é fundamental, mas torna-se de pouca valia quando desacompanhada de bom conhecimento do onteúdo específico. Não basta, entretanto, melhorar o nível das licenciaturas: existe um enorme contingente de professores mal formados atuando no ensino básico. Assim, uma ação direta sobre esses professores e seus alunos é imperiosa sob pena de condenarmos mais uma geração à ignorância matemática.

As conseqüências da má formação de nossos professores se fazem sentir no dia-a-dia do ensino da Matemática no país. Em primeiro lugar, o desconhecimento de certos tópicos tem levado professores a não ensiná-los; identificamos casos em que temas como Trigonometria ou mesmo Geometria são solenemente ignorados por essa razão. A falta de visão sólida da Matemática e de suas aplicações conduz a estranhas tentativas de contextualização de situações que a tanto não se prestam. Por outro lado, tópicos que não admitem contextualização – como alguns algebrismos, fundamentais na resolução de problemas, por exemplo fatoração de polinômios – estão sendo omitidos do ensino. O desconhecimento tem resultados ainda mais desastrosos: em nome da modernização do ensino da Matemática, em diversas escolas o Teorema de Pitágoras foi banido “por ser muito antigo”.

Há que se observar que inúmeros professores relataram que as omissões acima comentadas, entre outras, ocorrem por exigência das autoridades responsáveis pela definição de conteúdos. Neste caso, acreditamos estar diante da carência de subsídios teóricos adequados. É preciso entender que, assim como é necessário saber conjugar verbos e construir frases para se comunicar, também é imperioso dominar as estruturas próprias da Matemática para usá-las de forma útil e nas situações pertinentes. Cálculos diversos, teoremas básicos, axiomas, fazem parte dessas estruturas e precisam ser muito bem conhecidos por quem se propõe a utilizar a Matemática corretamente.

As condições de trabalho dos professores, principalmente na rede pública, são extremamente perversas e desmotivantes; a competência raramente é reconhecida ou mesmo incentivada. Via de regra, as únicas opções de melhoria salarial são o tempo de serviço ou a troca de sala de aula por funções administrativas.

Além disso, falta todo tipo de apoio para o bom ensino de Matemática, principalmente o acadêmico.

Com uma sinceridade corajosa, diversos professores confessaram que não sabem resolver problemas, não tendo a quem recorrer. Dispõem de pouco tempo para dedicar-se aos seus alunos e cursos de aprimoramento, uma vez que carga horária em sala de aula costuma variar de 8 a 10 horas por dia. Justificam unanimemente o despreparo matemático dos alunos que chegam à Universidade após 11 anos de estudos de Matemática: a situação seria gerada pela aprovação indiscriminada de estudantes, perpetrada mediante pressão das escolas. Estas, por sua vez, estariam tentando obter boa avaliação satisfazendo aquele que, segundo esses docentes, seria o único parâmetro utilizado pelas autoridades locais para mensurar seu desempenho: o número de alunos aprovados. Ademais, as instalações físicas são muito precárias e falta quase tudo: biblioteca, laboratórios de ensino, laboratórios de informática, etc.

O cerne do problema do ensino da Matemática se prende à formação e às condições de trabalho dos professores. No entanto, não foram eles que optaram por ter uma formação ruim, trabalhar em condições precárias e receber um salário indigno. Essa é a opção que nosso país está lhes oferecendo.

Contrastando com a situação dos ensinos básico e de graduação, a pesquisa e a pós-graduação em Matemática no país apresentam excelente desenvolvimento, desfrutando boa reputação internacional, com grupos consolidados, bons programas de pós-graduação e grupos emergentes com ótimas perspectivas. No entanto, o seu crescimento quantitativo está muito aquém da necessidade do país no que diz respeito à universalização do conhecimento matemático, formação de recursos humanos e diversificação de linhas de pesquisa. As causas dessa situação são basicamente a escassez de bons alunos, como conseqüência da mesma situação na graduação e, principalmente, o não-atendimento da demanda qualificada de bolsas de mestrado e doutorado da área, que vem impedindo o crescimento dos programas de pós-graduação. A falta de recursos humanos pós-graduados em Matemática já se faz sentir na dificuldade em preencher vagas para doutores nos concursos públicos e na impossibilidade de suprir com mestres os cursos de licenciatura (aproximadamente 400), o que vem agravando a crise no ensino básico. Por isso qualquer solução para o ensino da Matemática nas escolas deverá passar por uma ação em toda a cadeia de formação: do ensino básico até a pós-graduação.

A dramática situação em que se encontra o ensino básico da Matemática no país não admite paliativos.

Não há dúvida de que qualquer tentativa de solução desse quadro só será possível através de um projeto nacional para a Matemática, como já ocorreu no Brasil no caso da Química. Evidentemente, o ponto de partida será a decisão política e a conseqüente alocação de recursos para esse fim por parte do governo. De sua parte, a Sociedade Brasileira de Matemática está pronta para assumir, junto com o governo, a resolução desses problemas.

Convém, finalmente, comentar o argumento, tão comum quanto falacioso, de que a escola pública de antes (considerada mais eficiente) servia fundamentalmente à parte inexpressiva da população (mais abastada) e que a ampliação do ensino às camadas de mais baixa renda representaria melhora significativa. Nossa posição é clara: o mero aumento do número de estudantes matriculados nas escolas, sem garantia de qualidade, tem pouco significado. A escola necessária ao país é aquela que vai garantir a cada cidadão a capacidade de avaliar quanto paga de juros ou imposto, quanto recebe, o que significam os gráficos de distribuição de renda, etc. É no sentido de resgatar a reflexão crítica como prática social que defendemos intransigentemente a boa qualidade da escola.