Geometria Dinâmica e a lei dos cossenos

Marcus Alexandre Nunes
Maria Alice Gravina

Todos nós, professores, sabemos o quanto é difícil despertar o interesse dos alunos pelas aulas de Matemática. No geral, em uma turma, poucos são os alunos que gostam de pensar em Matemática e com esses é fácil trabalhar. Com o advento dos recursos de informática, abrem-se possibilidades que podem nos ajudar na tarefa didática e no propósito de ter um maior número de alunos interessados no assunto.

Especialmente para o aprendizado da Geometria têm-se os programas que oferecem "figuras em movimento" na tela do computador — são os programas de Geometria Dinâmica (ver RPM 49, p. 22). As figuras são construídas com régua e compasso virtuais e também via opções de menu em linguagem da geometria - retas paralelas, retas perpendiculares, mediatriz, bissetriz, etc. Nessa interface têm-se objetos geométricos que podem ser manipulados, que se modificam, mas que guardam as propriedades geométricas impostas à construção e, conseqüentemente, as propriedades que dessas decorrem.

Com o movimento das figuras, os alunos podem fazer muitas experiências, evidenciar novas propriedades geométricas, fazer conjeturas e, com a ajuda do professor, buscar explicações para o que está sendo empiricamente constatado. Estamos aqui falando em aprender a demonstrar — aspecto da formação matemática dos alunos que na escola, cada vez mais, vem sendo desconsiderado.

No que segue, para ilustrar como programas de geometria dinâmica podem contribuir para o ensino e aprendizado (mais interessante), apresentamos duas possíveis situações de sala de aula, ambas tendo como intenção a aprendizagem do clássico teorema de Pitágoras.

A primeira situação, como veremos, não vai além de uma simples constatação do teorema e indica uma utilização de programas de geometria dinâmica aquém do seu potencial. Já a segunda situação direciona-se para o entendimento da demonstração do teorema, e mais, insere-o como um caso particular de uma propriedade mais geral, a saber, a lei dos cossenos. Veremos como as "figuras em movimento" ajudam a evidenciar e a explicar relações entre as áreas dos quadrados construídos a partir dos lados de um triângulo qualquer. (As figuras apresentadas no artigo podem ser vistas "em movimento" no site Educação Matemática e Tecnologia Informática em http://www.mat.ufrgs.br/edumatec , no link "Atividades".)

 

     Primeira situação: uma mera constatação do teorema de Pitágoras

Nessa situação, os alunos iniciam a aula recebendo instruções em folha escrita que serve de roteiro para a realização da atividade:

"construa um triângulo retângulo ABC, com ângulo reto em A; usando o recurso de medida e de calculadora do programa, meça os comprimentos dos lados a (hipotenusa), b e c (catetos) e calcule a2 e b2 + c2; compare os resultados obtidos; movimente os vértices do triângulo e observe o que acontece com os cálculos feitos ..."

a =2,87 cm a =8,23 cm2
b=2,50 cm   b2+c2= 8,23 cm2
c =1,41 cm

a =3,22 cm   a2 =10,39 cm2
b =2,69 cm   b2+c2 = 10,39 cm2
c =1,77 cm

a =3,03 cm a2=9,17 cm2
b =1,74 cm b2+c2 = 9,17 cm2
c =2,48 cm

Atendidas as solicitações do professor, ao ser aplicado movimento nos vértices do triângulo ABC, na tela do computador descortinam-se diferentes triângulos retângulos e atualizam-se as medidas dos lados do triângulo e dos cálculos feitos. Mas tem-se em evidência, sempre, a igualdade  a2 = b2 + c2.

Com esses cálculos, muitos na aula informatizada se comparados com os poucos que são feitos na aula "giz-e-quadro-negro" (aqui, no geral, o exemplo a = 5, b = 4, c = 3), maiores são as evidências que ajudam o professor a convencer seus alunos quanto à veracidade da igualdade. E nisso a autoridade do professor tem um grande peso, tanto é que os alunos, normalmente, aceitam o resultado sem maiores questionamentos: ninguém coloca perguntas tais como "mas, professor, se não testei todos os triângulos retângulos possíveis, como sei que isso sempre é verdade?", "como é que eu tenho certeza que os cálculos do computador são verdadeiros?", "isso só é verdade para triângulos retângulos?"...

Ao final da atividade, os alunos passam a "conhecer" o teorema de Pitágoras, mas sem ter a oportunidade de apreciar de que forma a particularidade do triângulo, ser retângulo, é uma condição necessária e suficiente para que se verifique a igualdade obtida. Ou seja, os alunos se mantêm à margem do processo de demonstrar, de explicar a razão de tal propriedade via raciocínios dedutivos. Como isso poderia ser trabalhado pelo professor é o que vamos ilustrar na situação proposta a seguir.

 

Segunda situação: uma demonstração do teorema de Pitágoras como um caso particular da lei dos cossenos

A aula, nesta segunda situação, também inicia com os alunos recebendo instruções do professor que lhes dão espaço para pensar e para estabelecer as primeiras relações entre as áreas dos quadrados construídos a partir dos lados de um triângulo qualquer:

"construa um triângulo qualquer ABC; sobre os lados do triângulo construa os quadrados Q1 , Q2 e Q3; movimente o vértice A e compare a área de Q1 com a soma das áreas de Q2 e Q3(1)"

Dada a continuidade de variação das desigualdades, coloca-se naturalmente a pergunta: que propriedade deve ter o triângulo para que se tenha a igualdade entre as áreas?

Nesse momento, os recursos de medida e de calculadora que o programa oferece, podem ajudar: conforme a medida do ângulo A se aproxima de noventa graus, mais e mais as desigualdades entre as áreas tendem a uma igualdade, ou seja, o valor de  a2  se aproxima de b2+c2.

Acrescentando novos elementos geométricos à figura, junto com o uso de "figuras em movimento", o professor pode provocar os alunos para que avancem nos raciocínios que levam à demonstração da lei dos cossenos e que obtenham o teorema de Pitágoras como um caso particular dessa propriedade mais geral. Nesse momento é conveniente desdobrar a exploração em dois casos e, em ambos, os primeiros elementos geométricos a serem acrescentados, elementos chave que levam à dedução da lei dos cossenos, são as retas suporte das alturas do triângulo, relativas aos seus três lados.

Caso l: medida do ângulo A entre 0° e 90 °

O traçado das retas suporte das alturas do triângulo indica uma decomposição de cada um dos quadrados em dois retângulos e essa decomposição encerra uma relação interessante entre áreas de pares de retângulos, a ser demonstrada via "figuras em movimento":

área de BDEF = área de BJKL (1)

área de CGHI = área de CMKJ (2)

O movimento inicia com o "deslize" de um dos lados do retângulo BDEF, paralelamente ao lado BD, até que um dos vértices coincida com o vértice C do triângulo. Nesse movimento obtém-se uma coleção de paralelogramos de área constante e igual à área do retângulo BDEF, já que todos eles têm como base o segmento BD e como altura um segmento de medida igual à distância entre duas retas paralelas fixas. O movimento seguinte é uma rotação do paralelogramo obtido ao final do movimento de deslizamento, em torno do vértice B e com ângulo de medida igual a 90°, e assim é obtido um novo paralelogramo sem que haja alteração no valor da área. Finalmente é "deslizado" um dos lados desse paralelogramo, paralelamente ao lado BL, até que um dos vértices coincida com K. Como antes, obtemos uma coleção de paralelogramos de área constante. Isso permite concluir a igualdade (1) entre as áreas dos retângulos BDEF e BJKL. De modo inteiramente análogo obtém-se a igualdade (2).

O próximo passo é determinar a diferença entre a área de Q1 e a soma das áreas de Q2 e Q3 Ou seja, quer-se escrever uma relação de igualdade do tipo: a2 = b2 + c2 x (3), sendo x a área excedente nos quadrados Q2 e Q3 a ser expressa em função de elementos do triângulo ABC. Novamente, através de "movimento de figura", determina-se a área do retângulo AFEN, correspondente ao excedente relativo ao quadrado Q2 . O movimento inicia com o deslize de um dos lados do retângulo, paralelamente ao lado NA, até que um dos vértices coincida com C.

 

Como antes, nesse movimento temos uma coleção de paralelogramos, todos eles com a mesma área. A área do paralelogramo obtido ao final do movimento de "deslize' pode ser dada por:

De modo análogo obtém-se para área do retângulo, parte do excedente na desigualdade (1) relativa ao quadrado Q3, o mesmo valor bccos . Dessa forma tem-se que, na igualdade (3), o valor de x é 2bccos e assim demonstramos a lei dos cossenos, para o caso de triângulos acutângulos: a = b + c 2bccos .

 

Caso 2: medida do ângulo A entre 90° e 180°

Relembramos que neste caso vale a relação:
área Q1 > área Q2+ área Q3 Queremos transformá-la em uma igualdade do tipo: a2=b2+c2+y   (4), sendo y a área a ser acrescida aos quadrados Q2 e Q3 , e a ser expressa em função de elementos do triângulo ABC. Como antes, as retas suporte das alturas do triângulo tornam-se elementos fundamentais, pois vão indicar de que forma pode ser feito o acréscimo de área aos quadrados Q2 e Q1, indicado separadamente na figura abaixo:

A demonstração para este caso é análoga à demonstração feita para os triângulos acutângulos. Omitiremos os detalhes e vamos apenas exibir uma sequência de figuras que sugere como fazer a argumentação. Na primeira sequência a seguir (restrita ao quadrado Q2), indicamos como se explica a igualdade entre a área do quadrado Q1 e a soma das áreas dos retângulos construídos acima, cada um deles contendo um dos quadrados:

Na próxima seqüência indicamos como se calcula o valor de y, o acréscimo de área que garante a igualdade (4). Olhando-se somente para o quadrado Q2 (analogamente para o quadrado Q3) e lembrando que, neste caso, cos< 0 ,tem-se  que  o acréscimo de área é dado por :

Na situação ern que , = 90° a reta suporte da altura relativa ao lado AB coincide com o lado AC do triângulo ABC, quando então desaparece a subtração ou adição de áreas aos quadrados Q2 e Q3 A figura a seguir mostra que a2 = b2 + c2, o teorema de Pitágoras.

As duas situações de sala de aula aqui apresentadas ilustram diferentes modos de utilização de programas de geometria dinâmica. E é na segunda situação proposta que podemos engajar os alunos no entendimento de um belo e simples teorema da geometria, o teorema de Pitágoras, e com as "figuras em movimento" dá-se a possibilidade de melhor visualizar os raciocínios dedutivos que levam à demonstração do caso mais geral da lei dos cossenos.

 

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(1)
Nas instruções de construção, podem-se colocar certas restrições de forma tal que o uso de movimento na figura direcione-se para o estabelecimento de desigualdades/igualdades. No caso, é interessante fixar os vértices B e C e permitir movimento do vértice A em uma reta fixa que seja perpendicular ao lado BC. Com esse movimento restrito, os alunos são orientados a concentrar-se nos aspectos relevantes da questão.

 

Marcus Alexandre Nunes é aluno e Maria Alice Gravina é professora do curso de Licenciatura em Matemática da UFRGS, com especial interesse no uso da tecnologia informática na sala de aula.        marcus_nath@yahoo.com.br  gravina@mat.ufrgs.br