A RPM vai apresentar a seguir dois artigos sobre dízimas periódicas.

O primeiro trata das dízimas periódicas e do uso das calculadoras a partir de situações concretas do dia-a-dia do professor. O artigo foi originalmente publicado no Boletim n.° 36 do GEPEM, que gentilmente autorizou a sua reprodução na RPM.

O segundo artigo aborda as dízimas periódicas dentro do espírito da seção Olhando mais de cima, tendo como destaque o Pequeno Teorema de Fermat.

 

     As dízimas periódicas e a calculadora

José Paulo Q. Carneiro

Em uma prova de concurso realizado recentemente, destinado principalmente a professores de Matemática, figurava a seguinte questão:

Os números racionais a e b são representados, no sistema decimal, pelas dízimas periódicas

a = 3,0181818...=3,018   e   b =  l,148148...= 1,148.

Encontre, justificando, uma representação decimal de a b.

Como a e b são racionais, também o é a b; e portanto, sua representação decimal é periódica. Na prova, era permitido o uso de calculadora. Mas por meio da calculadora jamais se descobrirá o período, pelo menos com a certeza exigida pelo "justifique". Além disso, a calculadora não conseguirá nem mesmo dar uma ideia do período, se ele for muito longo. De fato, o período pode ter um comprimento maior do que o número de dígitos que a calculadora exibe no visor.

Um primeiro expediente que poderia ocorrer seria fazer a subtração por meio do esquema usado habitualmente para decimais finitos. Isso funcionaria bem em casos mais simples. Por exemplo:

Mas, no caso em questão, o desencontro entre os períodos das duas dízimas apresentadas dificulta o emprego dessa estratégia (a qual, aliás, precisaria ser discutida em termos conceituais). Vejamos:

Como a subtração usual é feita da direita para a esquerda, não se sabe bem por onde começar, antes de descobrir o período. Por conseguinte, o caminho natural é calcular as geratrizes de a e b (*), subtrair as frações correspondentes, e então encontrar uma representação decimal para essa fração. Utilizando esse procedimento, encontra-se:

.

Nesse ponto, o método mais usado por todo o mundo é dividir 2777 por 1485 (ou 1292 por 1485, ganhando uma etapa), pelo algoritmo tradicional, e aguardar o primeiro resto que se repete. Desse modo, obtém-se:

Como se repetiu o resto 1040,  a partir daí, os algarismos  7,0,0, 3, 3, 6  irão se repetir. Logo, a b = 1,8700336.

Vamos agora fazer alguns comentários:

1. Algumas pessoas envolvidas no processo de aprendizagem da Matemática (alunos, professores, pais, etc.) expressam às vezes a crença de que, com o advento da calculadora, nunca mais haverá ocasião de usar o algoritmo tradicional da divisão. Alguns até usam isso como um argumento para proibir o uso da calculadora em certas fases iniciais da aprendizagem: "é necessário primeiro que o aluno aprenda o algoritmo tradicional, e só depois lhe será permitido usar a calculadora; senão, ele não terá motivação para aprender tal algoritmo".

Na realidade, o exemplo aqui tratado mostra que nós, professores, temos que exercer nossa criatividade para criar problemas desafiadores, que coloquem em xeque até mesmo a calculadora, deixando claras as suas limitações, ao em vez de proibir o uso da calculadora, que é uma atitude antipática, repressora, e totalmente contrária ao que um aluno espera de um professor de Matemática. De fato, para um leigo ou iniciante em Matemática, nada mais "matemático" do que uma calculadora, e ele espera que um professor vá iniciá-lo ou ajudá-lo com essa ferramenta, e não proibi-lo de usá-la.

Note-se também que, mesmo usando o algoritmo tradicional da divisão, como fizemos, a calculadora permanece útil para efetuar as multiplicações e subtrações envolvidas no processo, minorando as possibilidades de erro e poupando trabalhos repetitivos e inúteis.

2. O trabalho de divisão ficaria simplificado, se tivéssemos observado que o divisor 1485 tem o fator comum 5 com a base do sistema decimal (um detalhe nem sempre lembrado). Desse modo:

 

Os números envolvidos no algoritmo da divisão ficam  menores.



3.
Existiria um outro método para encontrar uma representação decimal de da divisão? A resposta é sim.

Basta tomar as sucessivas potências de 10, a saber: 10, 100, etc., até que encontremos uma que deixe resto l, quando dividida por 297. Não é difícil fazer isso, experimentando com a calculadora:


em que a última passagem vem da propriedade das progressões geométricas infinitas:

Observe que o período da dízima tem comprimento 6, que é o expoente da menor potência de 10 que deixa resto l, quando dividida por 297.

4. Pode-se perguntar: como temos certeza de que, ao testar as potências de l0, vamos acabar encontrando uma que deixe resto 1, quando dividida por 297 ? A resposta está em um famoso teorema de aritmética (Teoria dos Números), devido a Euler, que diz: "quando os inteiros  a  e  n são primos entre si, então   deixa resto 1, quando dividido por n". Aqui, (n)   representa o número de inteiros positivos menores que n e primos com n. No presente caso, 297 e 10 são primos entre si (para isso, foi importante antes retirar o fator 5), e (297)=180. Portanto, pelo Teorema de Euler, 10180  deixa resto 1, quando dividido por 297.

Mas 180 não é necessariamente o menor expoente para o qual isso acontece. De fato, como vimos, o resto 1 já ocorre para 6, que é um divisor de 180. De um modo geral, bastaria experimentar como expoentes os divisores de 180. Por que tem que ser um divisor de 180? Porque, se m for o menor inteiro positivo tal que 10m deixa resto 1, quando dividido por 297, então, dividindo 180 por  m, obtém-se  180 = qm + r,  em que  0 r< m.  Mas então: 10180 = (10m)q x 10r, o que acarretaria que 10r  também deixaria resto 1, quando dividido por 297, o que só é possível se r = 0, pela definição de m. E como se sabe que (297) = 180? Bom, pode-se contar um a um os inteiros positivos menores que 297 e primos com 297, a saber: l, 2, 4, 5, 7, etc., até 296, e verificar que são 180. Mas é claro que Euler não concordaria com isso. É um exercício não trivial de aritmética mostrar que, quando o natural  n 

No nosso caso:

Os fatos citados nesta última seção estão entre os mais curiosos da Teoria dos Números, e podem ser encontrados em qualquer compêndio sobre o assunto. Teremos atingido nosso objetivo, se tivermos conseguido aguçar a curiosidade do leitor para saber por que funcionam as propriedades, e para conhecer suas inesperadas aplicações, como, por exemplo, à Criptografia, muito em voga atualmente devido à necessidade de segurança em senhas bancárias e da Internet (veja S.C.Coutinho, Números inteiros e Criptografia RSA, IMPA-SBM, Série de Computação e Matemática, 1997).