Marcelo Câmara dos Santos
Colégio de Aplicação
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE
marcelo.camara@cap.ufpe.br

     O Problema do Bilhar

Um dos termos mais utilizados ultimamente pelos professores e pelos documentos tratando das questões relativas ao ensino-aprendizagem de Matemática é, sem dúvida, o de “situação-problema”. O que mais me tem chamado a atenção, entretanto, é a grande variedade de interpretações dadas ao termo, entre as quais, a que mais me parece empregada é a de “um problema contextualizado”.

O objetivo deste texto é apresentar “uma” idéia para o termo de situação-problema, adotada, principalmente, pela linha francesa de Didática da Matemática. As aspas em “uma” significam que essa idéia não é única, mas podemos dizer que é das mais utilizadas em Educação Matemática.

O texto será dividido em duas partes. Na primeira parte, tentarei chegar a uma espécie de definição de situação-problema, fazendo a contraposição com as idéias de problema aberto e problema fechado e identificando algumas de suas características. Na segunda parte apresentarei um exemplo de situação-problema que venho utilizando sistematicamente, tanto com meus alunos de ensino fundamental (particularmente os de quinta série), como com professores de Matemática, em diversas ações de formação continuada; momento em que farei referência ao comportamento dos alunos durante a resolução da situação-problema.
 

 

     Situação-problema, problema aberto e problema fechado(*)

O papel da resolução de problemas no ensino de Matemática foi, para muitos e durante muito tempo, pautado pela idéia de que “aprender Matemática é resolver muitos problemas”, no sentido de que os neurônios se assemelhariam a músculos, que seriam desenvolvidos  à  custa  de  “muita malhação”. Na maioria dos livros didáticos dessa época, o conteúdo era apresentado aos alunos, seguido de alguns “exercícios resolvidos”, que serviriam de modelo para os “exercícios de fixação”, uma bateria extremamente longa de problemas de mesma estrutura (embora bolas de gude fossem, de vez em quando, substituídas por carrinhos ou semelhantes).

(*) Ver NR no fim do artigo.

Nessa concepção, era fundamental o papel do “problema fechado”, que se caracteriza como um problema cujo enunciado, ou localização, já identifica, para o aluno, qual o “conteúdo” que deverá ser utilizado para resolvê-lo. A utilização exclusiva desse tipo de problema consegue mascarar a efetiva aprendizagem, pois o aluno sabe que está sendo trabalhado, por exemplo, o “capítulo 3”, que trata da adição. Por outro lado, no momento da avaliação, em que o assunto a que se refere o problema não aparece explicitamente, a conhecida pergunta aparece: “professor, esse problema é de mais ou de menos?”.

Com o desenvolvimento dos estudos em Educação Matemática, as limitações da utilização privilegiada desse tipo de problema foram colocadas em evidência, surgindo, então, as idéias de problema aberto e situação-problema. Apesar de apresentarem objetivos diferentes, como mostrarei mais adiante, esses dois tipos de problemas tomam por eixo central colocar o aluno, guardadas as devidas proporções, numa situação análoga àquela em que muitas vezes o matemático se vê ao exercer sua atividade; o aluno deve, então, diante de problemas desses tipos, ser capaz de realizar TENTATIVAS, estabelecer HIPÓTESES, TESTAR essas hipóteses e VALIDAR seus resultados, provando que são verdadeiros ou, em caso contrário, mostrando algum contra-exemplo.

O enfoque pode ser dado, então, “seja na resolução do problema em si mesmo, o que conduz ao problema aberto, seja na construção do conceito necessário à resolução do problema, o que conduz à situação-problema”[1]. Assim, o problema aberto objetiva levar o aluno à aquisição de um processo de resolução de problemas, no qual o aluno desenvolve a capacidade de realizar as quatro ações apresentadas no parágrafo anterior. A prática, em sala de aula, desse tipo de problema[2] acaba por transformar a própria relação entre o professor e os alunos, e entre os alunos e o conhecimento matemático, que passa a ser visto como algo provido de uma dinâmica particular, e não mais como algo que deve ser memorizado para ser aplicado nas avaliações.

Dessa forma, se o problema aberto objetiva levar o aluno a uma “postura”, em relação ao conhecimento matemático, a situação-problema  apresenta um objetivo distinto, ou seja, levar o aluno à “construção” do conhecimento de um novo conceito matemático. De maneira bastante sintética, podemos caracterizar a situação-problema como uma situação geradora de um problema, cujo conceito necessário à sua resolução seja aquele conceito que queremos que o aluno construa”, ou seja, na resolução do problema, o aluno sentirá o poder do novo conceito.

Dentro da idéia de resolução de problemas como exercício, essa concepção de situação-problema pode parecer, no mínimo, paradoxal; “como o aluno pode resolver um problema se ele não aprendeu o conteúdo necessário à sua resolução?”. Mas antes que me classifiquem como, na melhor das hipóteses, “doido”, é preciso lembrar que a História da Matemática nos mostra que grande parte do conhecimento matemático foi construído desta forma[3]; a partir de um problema a ser resolvido é que os matemáticos foram construindo quase todo esse conhecimento a que temos acesso atualmente.

 

     Características de uma situação-problema

A eficiência de uma situação-problema depende do respeito a algumas condições. Seguem, na tabela, algumas características de uma situação-problema, acompanhadas de alguns comentários.  

Características  

Comentários  

O aluno deve ser capaz de começar a resolver o problema.  

O aluno não deve permanecer “seco” perante o problema. Ele deve ter a possibilidade de utilizar seus conhecimentos anteriores em uma primeira tentativa de solução.  

Os conhecimentos do aluno devem ser insuficientes para que ele resolva o problema.  

Senão não existirá a construção de novos conhecimentos, apenas a aplicação de conceitos já conhecidos. (No caso do curso para professores, eles são chamados a se colocarem na posição do aluno que ainda não entrou em contato com tais  conceitos.)  


 

A situação-problema deve permitir ao aluno decidir se uma solução encontrada é conveniente ou não, por exemplo se se trata de uma solução particular ou de uma solução geral.  

Uma vez que o aluno investiu seus conhecimentos anteriores, é necessário que ele tome consciência de sua insuficiência, senão, segundo o “princípio da economia”[4], não haverá evolução de conhecimentos, mas apenas uma adaptação. Essa insuficiência deve ser percebida pelo próprio aluno. Ela é constatada, por exemplo, pelo fato de que a resposta seja falsa ou que o método utilizado seja muito trabalhoso.  

O conceito cujo conhecimento se deseja que o aluno adquira deve ser uma das “ferramentas” mais adequadas para a resolução do problema, no nível do aluno.  

Nem sempre é fácil satisfazer essa condição. O aluno pode descobrir uma “ferramenta” adequada mas que não corresponda ao conceito visado. Uma análise a priori do problema, da parte do professor que o propõe, torna-se necessária: o que o aluno vai fazer diante desse problema?  

 

     O problema do bilhar  

Para ilustrar a idéia de situação-problema, vou apresentar neste momento o “problema do bilhar”[5], que tenho utilizado não somente em minhas turmas de quinta série, mas também no trabalho com formação continuada de professores, como um exemplo de situação-problema. É preciso explicitar que não é meu objetivo, neste momento, apresentar a resolução do problema proposto, e sim utilizá-lo como ilustração da idéia de situação-problema. O leitor interessado pode encontrar a solução à p. 60.  

 

     Enunciado  


Em papel quadriculado, trace um retângulo de 9 quadrados por 4 quadrados. Uma bola de bilhar vai percorrer esse retângulo segundo as condições abaixo:

·  o ponto de partida da bola é um dos vértices desse retângulo;

·  a bola avança em linha reta, segundo apenas uma diagonal de cada quadrado;

·  quando ela chega na borda do retângulo, ela retorna segundo a diagonal do  quadrado vizinho;

·   ela pára quando atinge um vértice do retângulo.


1.   Desenhe a trajetória de uma bola e conte o número de quadrados que ela atravessa.

2.  Diga como descobrir o número de quadrados atravessados pela bola no caso de um retângulo de “n” quadrados por “p” quadrados.


É importante que o trabalho seja realizado em grupos. A importância do trabalho em grupos se justifica na medida em que propicia o aparecimento de conflitos sociocognitivos entre seus participantes. O aparecimento desses conflitos mostra-se, então, como o motor da aprendizagem em uma situação-problema, permitindo que as hipóteses levantadas por um aluno sejam validadas também pelos outros elementos da equipe.

A experiência tem mostrado que o tempo necessário à resolução do problema do bilhar é de 30 a 40 minutos no caso de alunos de quinta série, e de 40 a 60 minutos para professores. A maior demora por parte do professor encontra provável explicação no maior senso de responsabilidade deste em chegar à resposta geral e correta.

No desenrolar da atividade, a primeira preocupação é com a compreensão do enunciado. No trabalho com os alunos não costumam surgir dúvidas, embora sempre seja interessante desenhar o retângulo no quadro, iniciando a representação da trajetória da bola, ressaltando, particularmente, o fato de ela se deslocar pelas diagonais e o que acontece quando ela “bate na tabela”.

O problema satisfaz a primeira característica de uma situação-problema, ou seja, de permitir que os alunos sejam capazes de iniciar a resolução. De fato, não existem dificuldades maiores em desenhar a trajetória da bola e contar o número de quadrados que ela atravessa. É importante evidenciar aqui uma das escolhas didáticas essenciais ao sucesso da situação, a escolha do retângulo de 9 por 4 quadrados. Nesse caso, temos que a bola irá atravessar todos os 36 quadrados.

É o momento de colocar a segunda questão da situação: “diga como descobrir o número de quadrados atravessados pela bola no caso de um retângulo de n quadrados por p quadrados”. A resposta imediata tem sido: “É fácil! É só multiplicar  n  por  p”.

Observa-se aqui o efeito da escolha do retângulo de 9 por 4, em que a bola atravessa todos os quadrados, induzindo os alunos a essa primeira resposta. Trata-se, portanto, de uma estratégia que satisfaz esse caso particular, mas que não pode ser generalizada. Alguns poucos alunos ainda ficam em dúvida, achando que “está fácil demais”, mas, para a grande maioria deles, que se acostumou com um contrato didático baseado em “pergunta resposta”, 9 x 4 satisfaz de imediato.

Nesse momento o professor pode propor que os alunos verifiquem com outro retângulo, por exemplo, um  4 por 8, evidenciando que, em princípio, a resposta deveria ser 32 quadrados. Nesse momento fica evidenciada a segunda característica de uma situação-problema: “os conhecimentos do aluno devem ser insuficientes para que ele resolva o problema”. É o momento em que surge o obstáculo, e o fato de os alunos já terem se apropriado do sentido do problema os torna motivados para buscar uma solução geral.

Pode-se aqui reforçar o objetivo do problema, evidenciando que “é preciso descobrir uma maneira de determinar o número de quadrados atravessados pela bola para qualquer retângulo”. Com isso os alunos iniciam o processo de “tentativa hipótese testagem validação” dentro de cada um dos grupos.

A tendência mais freqüente é a de levantar hipóteses que possam se enquadrar na “regra do produto”, ou seja, nesse momento inicial, a tendência dos alunos é procurar os casos em que a multiplicação das dimensões é a resposta correta. Várias estratégias aparecem nessa direção, principalmente hipóteses sobre a natureza dos números envolvidos, como, por exemplo, “se uma dimensão é par e a outra é ímpar”, “se as duas são ímpares”, etc. Em geral, o professor é solicitado a validar essas hipóteses, com questões do tipo “vale quando um é par e o outro é ímpar?”, ou “é por aí o caminho?”. Nesse momento o papel do professor deve ser de “devolver” ao aluno a responsabilidade da validação. Assim, no caso do binômio par-ímpar, por exemplo, o professor pode propor que os alunos testem com um retângulo de 6 por 9 quadrados, para verificar se a hipótese.

Nesse processo começam a surgir algumas “propriedades” que assumem o status de universais, por exemplo:

- quando as dimensões são números primos entre si, o resultado é o produto das duas;

- quando um dos números é múltiplo do outro, o resultado é o maior;

- no 6 por 9 deu 18, que é 54 dividido por 3, e 3 “está no 6 e no 9” (observa-se aqui o aparecimento de uma relação bastante forte, mas que desapareceu de nossos programas,

Aos poucos os alunos começam a verificar que o número de quadrados atravessados pela bola é sempre um múltiplo das duas dimensões ao mesmo tempo, mas que isso não basta, “é preciso que seja sempre o menor possível”, como no caso do 6 por 9, que admite 18, 36, 54, etc. como múltiplos comuns.

Em geral, no trabalho com os professores, nesse momento eles concluem facilmente “Ah, é o MMC dos dois”. Com os alunos, isso não fica evidente, mesmo com alunos de quinta série, que já tiveram algum contato com esse assunto. Isso pode ser justificado, mais uma vez, pelas condições de aprendizagem por que passaram esses alunos; normalmente, o trabalho com MMC é muito pouco baseado na idéia em si mesma, sendo dada ênfase aos processos para determiná-lo.

Nesse caso, é o momento de o professor fazer a “oficialização” desse conhecimento como sendo o menor múltiplo comum às duas dimensões. Em situação de classe, antes de reforçar nomenclaturas e técnicas de determinação do MMC, costumo trabalhar mais o conceito, com alguns “problemas fechados”, como, por exemplo, “um ônibus parte da rodoviária para uma cidade A a cada 6 minutos, e outro parte para a cidade B a cada 9 minutos. Se houve uma partida simultânea às 7 horas, a que horas haverá outra partida simultânea?”.  

 

     Para terminar  

Nosso objetivo nesse texto foi de apresentar “um” sentido para a idéia de situação-problema, a partir da comparação com as idéias de problema aberto e problema fechado.

Deve ficar claro, porém, que não se trata nesse texto de dizer que um tipo de problema é melhor que outro, mas o professor deve ter consciência das características e objetivos de cada um desses tipos, e saber o momento adequado de utilização de cada um deles.

De fato, a construção de uma situação-problema é extremamente complexa, e, além disso, não pode ser utilizada em todos os momentos da sala de aula; ela se restringe à introdução de um novo conceito. Porém, se queremos uma aprendizagem significativa de Matemática, com alunos capazes de “pensar”, não podemos limitar o nosso trabalho em sala de aula aos problemas fechados.

 

 

Referências bibliográficas

[1] ARSAC, Gilbert; GERMAIN, Gilles & MANTE, Michel. Problème ouvert et situation-problème. Lyon, Eds. PUL, 1991.

[2] CÂMARA, Marcelo. A matemática dos problemas ou o problema da matemática? Recife, mimeo, Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE, 1996.

[3] MEDEIROS, Kátia M. O contrato didático e a resolução de problemas matemáticos em sala de aula. In Educação Matemática em Revista, no 9/10. São Paulo, SBEM, 2001.

 

____________
(*)
NR

Em Educação Matemática, não há consenso no uso das expressões: problema aberto, problema fechado, situação-problema. Além da concepção expressa no texto, há aqueles que usam o termo problema fechado para o problema que admite solução determinada e incondicional, em contraposição ao problema aberto, que exige uma divisão em casos ou mesmo o acréscimo de hipóteses àquelas do enunciado para a existência de solução. Como o texto aponta, há os que chamam de situação-problema o problema surgido de uma situação da vida real , um problema contextualizado.
 

[1]  CÂMARA DO SANTOS, M. A Matemática dos problema ou o problema da matemática? Mimeo,, Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE, 1996.

[2] Ver MEDEIROS , K. M. O Contrato didático e a resolução de problemas matemáticos em sala de aula. In Educação Matemática em Revista. n.° 9/10. São Paulo, SBEM, 2001

[3] Daí a verdadeira importância do trabalho com a História da Matemática não somente em nossas escolas do ensino básico, mas, principalmente, em nossos cursos de formação de professores.

[4] Esse princípio é decorrente da idéia de acomodação de Piaget. Podemos enunciar esse princípio da forma "se não houver um obstáculo a ser superado pelo aluno na resolução de um problema, a solução que lhe é mais econômica é aquela de continuar no mesmo nível de conhecimento, sem que novas aprendizagens sejam realizadas".

[5] Esse problema foi adaptado do livro ARSAC, G., GERMAIN, G. & MANTE, M. Probème ouvert et situation-probléme. Lyon, PUL, 1991.

 

VOCÊ SABIA?  

Que os restos possíveis da divisão de quadrado de um número inteiro por  9  são  0,  1,  4  e  9?  

 

 

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