Aluísio Lemos
Rio de Janeiro, RJ

No interessante artigo publicado na RPM 16, Origami e Geometria, de José Oliveira Siqueira, está descrita uma técnica geométrica com dobraduras com a qual se pode dividir um segmento (dado pelo lado de um quadrado de papel) em um número qualquer de partes iguais, obtendo-se assim uma fração racional unitária dele – por exemplo, 1/11 .  Para isso o artigo utilizava, numa ordem adequada, dobraduras de apenas dois tipos – que serão aqui chamadas de paralelas e oblíquas. Nesse exemplo, seria esta a seqüência de dobradas (e respectivas frações intermediárias) que leva do lado de um quadrado até  1/11 dele:

 

Paralela

Oblíqua

Paralela

Oblíqua

Nosso objetivo agora é ver uma regra muito simples que, tirando partido do sistema de numeração binário, indica rapidamente a seqüência correta dos dois tipos de dobraduras capaz de produzir uma qualquer fração unitária desejada. Vamos antes, então, definir os dois tipos.

 

     Dobradura paralela

Dado um segmento inicial    qualquer do lado de um quadrado de papel,  ABCD,  chamaremos de dobradura paralela a que faz juntar o vértice  A  com a outra extremidade  P  do segmento. Assim, a dobra resultante (o vinco marcado no papel, representado na figura pela linha pontilhada) será um segmento paralelo ao lado do quadrado e que determina o ponto médio  M  do segmento inicial e, com isso, o segmento derivado,  ,  o que nos interessa.

Portanto, por esse processo, pelo menos teoricamente, poderemos encontrar qualquer potência inteira negativa de  2.  Por exemplo, obtém-se    após 3 dobraduras paralelas sucessivas (tomando como segmento inicial o lado unitário do quadrado).


 

     Dobradura oblíqua

Será a que faz ficarem juntos, não o vértice  A  do segmento inicial, mas sempre o oposto a ele,  C,  e a extremidade  P.  Aqui nos interessará o ponto  N,  interseção do lado que se moveu,  (tornando-se    na figura), com  o , pois define o segmento derivado  .

Veremos em seguida que é fácil, também nesse caso, determinar o comprimento do segmento derivado, sabido o do inicial. Cabe observar que a importância de um método de construção geométrica é teórica – seja com régua, compasso ou dobradura –, pois todos têm limitações práticas impostas pelas imperfeições dos artefatos (no caso, seria necessário um papel ideal, de espessura zero).

 

     O comprimento dos segmentos derivados

Considerando unitário o lado do quadrado de papel, seja    a fração que indica o comprimento de um segmento inicial, antes de uma dobradura (com  ).  

Proposição 1. Depois de uma dobradura paralela a partir de um segmento inicial de medida 1/m, é imediato que ele se reduzirá à metade de seu comprimento, passando o segmento derivado a medir  1/2m.

Proposição 2. Depois de uma dobradura oblíqua a partir de um segmento inicial de medida 1/m, o segmento derivado passará a medir 1/(2m-1).

Para comprovar isso, seja  x  a medida procurada do segmento derivado  .  Mas, antes, vamos calcular  .  No    temos, por construção,

 
Logo, por Pitágoras,

Notando agora que os dois triângulos retângulos sombreados são semelhantes (pois, sendo reto, têm seus ângulos respectivamente iguais), vale 

Nesta, substituindo  y  pelo valor calculado acima, encontramos finalmente (verifique!) que: 

Com os resultados dessas proposições, podemos conferir a seqüência de nosso exemplo inicial. De fato:

Paralela

Oblíqua

Paralela

Oblíqua

   

     Usando a base 2  

 

Vamos lembrar que o algoritmo para converter o numeral de um número natural, da base 10 para a base 2, consiste em dividir o número dado, e os sucessivos quocientes obtidos (até zero), por 2, e tomar na ordem inversa os restos encontrados. Por exemplo, o número 19:

19

2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ou em um dispositivo assim: fazer a divisão inteira por 2, da direita para a esquerda, depois pôr 1 sob números ímpares e 0 sob pares:

0    1     2     4     9   19
1     0     0    1     1

1

9

2

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

4

2

 

 

 

 

 

 

 

 

0

 

2

 

2

 

 

 

 

 

 

 

 

0

 

1

 

2

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

0

 

Portanto,  .

Sabemos também que a conversão inversa se faz escrevendo o numeral binário na forma polinomial:

Podemos então enunciar o teorema abaixo, que será demonstrado a seguir e que constitui a regra prática indicativa da ordem das dobraduras.

Teorema: Em um número com representação binária, associando a cada dígito 1 uma dobradura paralela e a cada dígito 0 uma dobradura oblíqua, a seqüência de dobraduras que leva do lado de um quadrado a  1/n  dele é dada pela seqüência dos dígitos da representação binária do número  n1.

Por exemplo, para obter a fração    devemos converter para a base binária o número    Como  ,  então esta é a seqüência de dobraduras que leva a    do lado do quadrado:

(paralela, oblíqua, paralela, oblíqua), como já vimos.

Num exemplo recíproco, a seqüência de dobraduras    é a que fornece a fração 1/28  do lado do quadrado, uma vez que:

 

 

     A árvore binária  

Antes de verificar a validade geral da afirmação do item anterior, vamos ver algumas propriedades do sistema binário de numeração.

Dispomos os números naturais em um diagrama em árvore binária, como na figura (que prossegue indefinidamente).

 

A partir da linha zero, notamos no diagrama as seguintes propriedades:

1a) Cada linha tem o dobro de elementos da linha anterior (por construção).

2a)  O número de elementos da n-ésima linha é  ,  e este é também o primeiro elemento dela (prove!). Assim, a 5a linha tem    elementos, e começa com o número 16.

3a)  O último elemento da n-ésima linha é    (comprove!). Por  exemplo, a 10ª linha termina pelo número 

4a)  Cada elemento de valor  k  se ramifica, à esquerda, para o seu dobro (2k) e, à direita, para o seu dobro mais um  ( ).

Para verificar isso, considere um elemento  k  qualquer da linha  n,  onde, portanto, ele é tal que  Logo, do primeiro elemento dessa linha até o  k,  inclusive, o total de elementos é  e sob esses (na linha  ) há o dobro, ou seja,   elementos.  Assim, o elemento na linha    na ramificação direita de  k  será esse último número somado ao último elemento da linha  n, logo:  E portanto, enfim, o elemento na ramificação esquerda de  k  será um a menos: 2k.

Proposição 3. Na árvore binária, nos dois ramos que saem de cada número, se marcarmos o dígito 0 no ramo da esquerda e o dígito 1 no da direita, a seqüência desses dígitos, que leva do natural 0 ao natural  k,  fornece, na mesma ordem, a representação binária de  k.

Por exemplo, caminhando do 0 ao 13 sobre os sucessivos ramos da árvore binária, passamos respectivamente pelos dígitos do numeral 1101 justamente 13 na base dois.

Para comprovar a validade dessa proposição, note que, no caminho de 0  a  k,  logo no ramo inicial da árvore, passamos pelo dígito 1, que corresponde de fato ao natural 1.  Depois, a cada ramo que avançamos, conforme seja à esquerda ou à direita, vamos acrescentando ou 0 ou 1 no final do número. Ora, acrescentar o dígito 0 no final de um número com representação binária corresponde a multiplicá-lo por dois, assim como acrescentar 1, a encontrar o seu dobro mais um.  (Isso pode ser melhor entendido por analogia com a base dez: nesta, acrescentamos 0 à direita de um número para multiplicá-lo por 10 e, acrescentando 1, obtemos o seu décuplo mais um. Veja a propósito a RPM 36, p. 11.) Ocorre que isso, conforme a 4a propriedade acima, é justamente o que acontece com um elemento  k  do diagrama, conforme tomemos o ramo esquerdo (torna-se  2k)  ou o direito (torna-se  ). (É interessante acompanhar, no exemplo do número 13, como ele deriva do zero, conforme cada elemento se torna, à esquerda, o dobro ou, à direita, o dobro mais um.)  

 

 

     A árvore das dobraduras  



Uma nova árvore será agora construída a partir da árvore binária mediante a seguinte regra:  substituir cada elemento dela (cada número natural  m)  pelo inverso de seu sucessor (a fração  ) com isso obtendo, no lugar de    a sucessão de 

 

Proposição 4.  A árvore assim construída é um roteiro das seqüências de dobraduras para se chegar a quaisquer frações unitárias, considerado cada ramo esquerdo (dígito 0) indicativo de uma dobradura oblíqua, e direito (dígito 1), de uma paralela.

Exemplo: Para obter  ,  a árvore nos mostra imediatamente que a seqüência de dobraduras deve ser  (paralela, paralela, oblíqua).

Para verificar que isso sempre vale, precisamos mostrar que qualquer elemento    dessa árvore sempre se ramifica à esquerda para    e à direita para  ,  uma vez que estes, de acordo respectivamente com as Proposições 2 e 1, são os resultados de dobraduras  oblíquas e paralelas.

De fato, já vimos que na árvore binária (Proposição 3) um elemento k ramifica-se à esquerda para  2k  e à direita para  ;  logo, pela regra de construção da nova árvore,  

    logo    que substituído nas outras duas resulta, enfim:

 

     As dobraduras e a base dois  

Para verificar, enfim, o teorema que relaciona as dobraduras com a base dois, basta comparar as duas árvores e notar que a seqüência de dígitos que, na segunda, leva de 1 até a fração    (a seqüência correta de dobraduras), é, por construção, a mesma que, na primeira árvore, leva de 0 até o número natural    seqüência essa que, pela Proposição 3, é a dos dígitos da representação binária de