Augusto J. M. Wanderley
José Paulo Q. Carneiro
Eduardo Wagner

     Introdução

Thiago e Isadora estão procurando moradia numa grande cidade.   Thiago trabalha no ponto  A  da cidade, e Isadora trabalha em  B.  Onde deve o casal escolher sua residência  P  de modo que a soma das distâncias aos dois locais de trabalho seja mínima?

Fácil, não? Sabemos, da célebre desigualdade triangular da geometria plana, que    onde    representa a distância euclidiana usual entre os pontos  A  e  P,  e que esse valor mínimo é atingido em qualquer ponto    do segmento  AB,  onde  . Portanto, o casal  pode  escolher  para

morar qualquer ponto do segmento de reta que une  A  a  B. Há, porém, um problema: quem disse que no segmento de reta  AB  há residência? Só se o desenho das ruas da cidade o permitir. Por exemplo, imaginemos que a cidade (ou pelo menos  o  trecho  em  questão)  seja uma cidade planejada, em que as ruas  sejam  todas


figura 1

 perpendiculares ou paralelas entre si. Nesse caso, pode não haver endereço no segmento  AB  (ver figura 2). Aliás, nesse exemplo, o menor percurso entre A e B não é o segmento usual AB, e sim o caminho  ou outros caminhos  equivalentes, como

Para lidar com geografia urbana, um modelo conveniente é a chamada “geometria do táxi”, assim denominada porque as distâncias percorridas por um táxi aproximam-se muito mais destas do que das distâncias euclidianas, já que o táxi não é um passarinho, tendo que obedecer ao traçado das ruas. Essa geometria consiste no plano usual, com seus pontos e retas usuais, onde se fixou um

figura 2

sistema de coordenadas ortogonais; a partir daí, a “táxi-distância” do ponto    ao ponto    é definida por:   (ver figura 3). Por exemplo, do ponto de vista da táxi-distância, a igreja situada em   (ver figura 4) está mais perto da lanchonete localizada em  do que da farmácia situada em pois  , enquanto na Geometria Euclidiana a igreja estaria mais próxima da lanchonete do que da farmácia, pois    A táxi-distância reflete melhor a realidade urbana, pois seus trajetos contornam quarteirões, em vez de atravessar prédios.
 

figura 3                   

     figura 4


A geometria do táxi, ou táxi-geometria, ou táxi-métrica, apresenta muitas propriedades semelhantes às da geometria euclidiana. Por exemplo, não é difícil verificar que a táxi-distância é sempre não negativa, só vale zero se os pontos coincidirem, é simétrica (distância de  A  até  B  é a mesma que a de  B  até  A) e – importante – satisfaz a desigualdade triangular. Além disso, se  A  e  B  estiverem na mesma horizontal ou na mesma vertical, então a táxi-distância entre  A  e  B  é a mesma que a distância euclidiana entre  A  e  B.

No entanto, sob vários outros aspectos, a táxi-distância é muito diferente da euclidiana e às vezes apresenta um comportamento surpreendente. Por exemplo, na geometria euclidiana, se aplicarmos uma translação ou uma rotação a um segmento, seu comprimento permanece inalterado. Na táxi-geometria, uma translação de fato não altera a distância entre dois pontos, como se pode verificar facilmente. Mas uma rotação pode alterar. Por exemplo, se  e , a  Se girarmos o segmento  AB  em torno da origem de 45o no sentido positivo, A permanecerá o mesmo, enquanto B se transformará em   (confira!), e então    Isso pode parecer chocante à primeira vista, mas reflete apenas a influência do desenho das ruas na táxi-distância.

Uma circunferência de centro  C  e raio  r  é o lugar geométrico dos pontos do plano que distam  r  de  C.  Sendo a táxi-distância tão peculiar, cabe logo perguntar que aspecto tem essa figura no caso da táxi-geometria, isto é, como são as táxi-circunferências. A resposta também é intrigante. Uma táxi-circunferência é a fronteira de um quadrado com diagonais paralelas aos eixos coordenados. De fato, sendo    a equação da táxi-circunferência de centro C e raio r é:     Em  face  da  invariância  da  táxi-distância  por

translação, basta considerar uma táxi- circunferência de centro na origem.  A figura sugere que, para qualquer ponto como P, na fronteira do quadrado indicado, sua táxi-distância à origem é de fato  r. Tudo isso pode ser verificado algebricamente, já que a equação    equivale a:

   

   

 

     Primeiro ato: minimizando a soma das táxi-distâncias  

Voltemos ao problema inicial do nosso casal, à luz da táxi-geometria, que é aquela que se adapta melhor à situação real.

Dados  e  queremos determinar  tal que    seja a menor possível. Pela desigualdade triangular, que já sabemos que vale na táxi-geometria:

  Se houver, então, algum ponto  P  tal que    neste ponto se dará o valor mínimo. Temos, pois, que encontrar (todos os)  x  e  y  tais que

.

Para visualizar a solução desse problema, considere a figura 6 (com    e  ), onde aparece o que chamaremos de retângulo básico 

 ACBD,  de lados paralelos aos eixos e tendo  AB  como uma diagonal. Os pontos  P  e  S  da figura ilustram o fato  de  que,  qualquer  que seja o ponto do interior ou da fronteira do retângulo, a soma de suas táxi-distâncias a  A  e  B  é igual ao comprimento da poligonal  ASQPB, que é igual à soma dos comprimentos de dois lados do retângulo, ou seja, a táxi-distância de  A  até  B,  sugerindo que a solução de nosso problema consiste em todos os pontos de  ACBD.

figura 6

Aqui está um fato surpreendente: na táxi-geometria, o que poderia parecer um análogo do segmento é uma região “gorda” do plano. O leitor pode fazer algumas experiências para comprovar por si mesmo que, por exemplo, se  ,       e    então todo ponto P do retângulo ACBD satisfaz a   

Se os pontos A e B estiverem numa mesma vertical (isto é,  ), ou, analogamente, numa mesma horizontal (isto é,  ), o retângulo básico vai degenerar no segmento  AB.  Portanto, nesse caso, o conjunto dos pontos  P  tais que é mínima a soma das táxi-distâncias de  P  até  A  e  B  coincide com o segmento AB,  tal como na Geometria Euclidiana.

Naturalmente, a resolução algébrica do problema requer a costumeira manipulação da definição de módulo, que o professor pode considerar um útil exercício para seus alunos. Por exemplo, vamos justificar algebricamente que, se os pontos  A  e  B  estiverem numa mesma vertical, então a solução do problema é o segmento  AB.  De fato,  com    e (sem perda de generalidade)  a equação fica:    Todos os pontos do segmento  AB  satisfazem a igualdade, pois para eles:    a equação ficando: 

Por outro lado, não há soluções fora desse segmento, pois se  então:  o que é impossível, pois  e  Análogo para 

A resolução algébrica do caso em que    (sem perda de generalidade) e    (ou, analogamente,    engloba nove sub-casos, que correspondem a nove regiões do plano, cujas fronteiras são partes das retas paralelas aos eixos passando por  A  ou  B  (ver figura 7),  as quais delimitam o retângulo básico.

 Os cálculos ainda podem ser simplificados, observando que, por simetria em relação ao ponto  M,  médio de AB, ou seja, o centro do retângulo básico, basta analisar  o  que  ocorre nas regiões 1,  2,  3,  4  e  5,  já que são simétricas em relação a esse ponto, respectivamente, às regiões: 2 e 6, 3 e 7, 4 e 8, 5 e 9.

figura 7

Por exemplo, na região 1, onde   e  a equação:

se reduz a   que é satisfeita por todos os pontos da região.

Já na região 2, caracterizada por  e  a equação fica:   que não é satisfeita por nenhum ponto, pois   enquanto    E assim por diante.

A partir daqui, vamos nos concentrar na abordagem das “demonstrações visuais”, deixando para o leitor a instrutiva e não menos importante verificação algébrica.  

 

     Segundo ato: a táxi-mediatriz  

Mesmo convencidos de que qualquer ponto do retângulo básico respeitaria a condição de que a soma das distâncias de sua residência aos dois locais de trabalho seria mínima, Thiago e Isadora não fecharam negócio nessa região, pois a acharam muito pouco residencial, o que era de esperar, sendo muito próxima do trabalho. Resolvem então procurar moradia em outro lugar da cidade, mas com uma exigência. Para não haver brigas, Thiago e Isadora querem agora morar num ponto eqüidistante do trabalho de cada um.

Novamente, se o casal usasse a Geometria Euclidiana, estaríamos diante de um problema muito conhecido. A solução seria a mediatriz de  AB,  ou seja, a reta perpendicular a  AB,  passando pelo seu ponto médio. Mas Thiago e Isadora já sabem que têm de usar a táxi-geometria. Nesta geometria, qual será o lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de dois pontos dados  A  e  B?  Seja qual for, vamos chamá-lo de “táxi-mediatriz”, e será a solução da equação

 

Se os pontos A e B estiverem numa mesma vertical (isto é,  ),  ou numa mesma horizontal (isto é,  ), a solução será a mediatriz usual da Geometria Euclidiana. Nos outros casos, curiosamente, será crucial considerar a inclinação do segmento AB,  ou seja: 

 

Se  m  não for  0,  nem  1,  nem  ,  a táxi-mediatriz será uma “linha quebrada”, formada por um segmento de inclinação  1  ou    (conforme  m  seja negativo ou positivo, respectivamente), passando pelo centro do retângulo básico e situado dentro dele, continuado por semi-retas paralelas a um dos eixos. As figuras 8 e 9 ilustram as situações.

 

figura 8

figura 9  

Para mostrar isso por argumentos visuais, tomemos o caso ilustrado na próxima figura, onde   e  com   As táxi-distâncias de  P  até  A  e  B  são, respectivamente, os comprimentos da poligonal  ACP  e do segmento  PB. Porém, a igual inclinação de  PR  em relação aos eixos mostra que    e,  portanto:      Logo,  P  está na táxi-mediatriz de  AB. Para um ponto  como Q  da figura 10 (situado no interior do

 retângulo, e sobre o segmento de inclinação  ),  é só observar que suas táxi-distâncias a  A  e  B  podem ser obtidas das de  P  subtraindo o mesmo comprimento  QT,  permanecendo iguais. Finalmente, para um ponto como  R,  no exterior do retângulo e na semi-reta horizontal para a direita de  P, é só observar que suas táxi-distâncias a  A e  B podem ser obtidas das de  P  somando  o  mesmo comprimento  PR,  permanecendo iguais.

figura 10

Se  ou , temos mais uma situação surpreendente: a táxi-mediatriz consiste na diagonal do retângulo básico distinta de AB e mais um par de quadrantes (ver figura 11). Por exemplo, se  e   os pontos eqüidistantes de A e B são os do segmento de extremos  e  mais todos os pontos do quadrante  e   e os do quadrante  e . É instrutivo verificar como, por exemplo, todo ponto  com  e , dista  de B e  de A. Lembramos que isso pode e deve ser verificado algebricamente, sendo uma manipulação da definição de módulo.
 

figura 11

 

     Comentário final  

No plano euclidiano usual, é sabido que a linha perpendicular ao segmento  AB  passando pelo ponto médio de  AB  coincide com o conjunto    Os exemplos da seção anterior nos mostram que tal proposição, válida para a Geometria Euclidiana, é falsa para o “plano do táxi”. De fato, as mediatrizes ali obtidas nem mesmo são sempre retas. As coisas estranhas que se passam na geometria do táxi devem-se ao fato de ela ser uma geometria não-euclidiana, isto é, não satisfaz os axiomas da geometria euclidiana. Mas a táxi-geometria nem mesmo é uma geometria neutra (ou “geometria absoluta”, ver [2]), como são as geometrias não-euclidianas mais tradicionais, como a geometria hiperbólica, por exemplo. O ponto-chave é que na táxi-geometria não valem os “casos de congruência de triângulos”, que conhecemos tão bem e que constituem alguns dos pilares de toda a geometria euclidiana.

 

Referências bibliográficas

[1] Krause, E. F., Taxicab Geometry: An Adventure in Non-Euclidean Geometry, Dover, NY, 1986.

[2] Matin, G., The Foundations of Geometry and the Non-Euclidian Plane, Intext, Educational Publishers, NY, 1972.