Gilberto Garbi

Quase todo o mundo já ouviu falar de Leonhard Euler. O que poucos sabem é que ele foi um matemático de tal maneira talentoso, criativo e produtivo que, mesmo dentro do mais seleto grupo dos grandes gênios da rainha das ciências, é difícil encontrar alguém que a ele se compare. Nascido em Basiléia, na Suíça, em 1707, Euler viveu 76 anos e dedicou sua inesgotável energia a uma frenética produção de trabalhos em todos os campos da Matemática (vários deles criados por ele mesmo), a ponto de até hoje não ter sido concluída a publicação de suas obras.

Leonhard Euler
Fonte: Internet

Euler  era  um   gênio   lingüístico,   falando fluentemente, entre outros idiomas, alemão, francês, inglês, latim, grego e russo. Dotado de inacreditável memória, sabia de cor tábuas logarítmicas, trigonométricas, de primos, de quadrados e de cubos. O físico-químico francês François Arago, ao vê-lo trabalhar, cunhou uma frase, que se tornou a mais repetida caracterização daquele gênio: calcula com a facilidade com que as pessoas respiram e as águias pairam no ar. Tendo enfrentado grandes agruras na vida, dentre elas a perda da visão em um dos olhos aos 27 anos e a cegueira quase total nos últimos 17 anos de existência, ele jamais parou de produzir, realizando mentalmente seus cálculos e ditando-os a um de seus 13 filhos quando não mais conseguia escrever.

A coleção completa das obras de Euler, reunidas em uma publicação moderna denominada Opera Omnia, é composta por 73 volumes contendo mais de 800 estudos, tratados, livros e cartas onde se aborda virtualmente toda a Matemática conhecida no século XVIII. E é em meio àquela inesgotável fonte de ensinamentos do “mestre de todos nós”, como o definia Laplace, que pode ser encontrada uma pequena pérola da Análise Combinatória, a solução engenhosa e surpreendente de uma questão aparentemente simples:  
 

“Dada uma seqüência ordenada de  n  letras,  a,  b,  c,  d,  e, ..., etc., de quantas maneiras diferentes elas podem ser arranjadas de modo que nenhuma delas retorne à sua posição inicial?”


Essa pergunta é equivalente a: “Escritas  n  cartas endereçadas a diferentes destinatários, de quantas formas distintas elas podem ser colocadas em  n  envelopes, de modo que nenhuma delas seja colocada no envelope correto?”  Por essa razão, o problema é também conhecido como “o problema das cartas mal endereçadas”.

É evidente que, se não for imposta nenhuma restrição à posição final das letras, existem n! maneiras de ordenar as n letras, mas muitas dessas maneiras não satisfazem as condições do problema porque em algumas o a ocupa a 1a posição, em outras o b ocupa a 2a e assim por diante.

Euler começou criando um símbolo para o número que estava sendo procurado e chamou de    a quantidade de permutações das  n  letras  a,  b,  c,  ...  nas quais nenhuma delas ocupa sua posição original. (Uma permutação com tal característica é chamada de um  “desarranjo”  de  a,  b,  c,  d, ....)

Quando  ,  ou seja, só há uma letra, não existe forma de “desarranjá-la”, de modo que    Quando    as letras  a  e  b  somente podem ser “desarranjadas” de uma forma: ba.  Logo,    Quando    os “desarranjos” de  abc  são  bca  e  cab,  de modo que 

Continuando a análise de casos particulares, consegue-se verificar que    e  , ,  mas a partir daí as alternativas tornam-se tão numerosas que é preciso deduzir matematicamente qual a lei de formação de  .

Euler raciocinou da seguinte maneira: seja  a,  b,  c,  d,  e, ...,   o arranjo inicial das  n  letras. Rearranjando-as de modo que nenhuma retorne à posição de origem, existem    opções para a primeira letra, já que ela não pode ser  a.  Podemos supor que a primeira letra será  b  e então calcular o número de variações possíveis, bastando depois multiplicar o resultado por    para se obter   (Princípio da contagem).

Sendo  b  a primeira letra de um “desarranjo”, existem duas alternativas, para a segunda letra:

Alternativa 1 – A segunda letra é  a.  Nesse caso, precisamos rearranjar as    letras restantes de modo que nenhuma volte à sua posição original. Mas esse é o mesmo problema do qual partimos, reduzido de 2 letras, havendo, portanto,    formas de fazê-lo.

Alternativa 2 – A segunda letra não é  a.  O problema agora é rearranjar as    letras restantes que ficarão à direita de  b  de modo que nenhuma volte à sua posição original. Assim fazendo,  c  não será a 3a letra,  d  não será a 4a, etc., e, além disso,  a  não será a segunda. Ora, como são    letras a serem desarranjadas, existem    formas de fazê-lo.

Considerando que os rearranjos das duas alternativas pertencem a conjuntos que não têm elementos em comum, fica claro que, quando b é  a primeira letra,  existem  desarranjos possíveis. Uma vez que há    opções para a primeira letra, então,

.

Essa fórmula de recorrência resolve o problema, mas tem o inconveniente de não fornecer    como uma função explícita do número  n.  Procurando simplificá-la, Euler observou que, para qualquer  n  inteiro maior ou igual a 3, tem-se:

...........................................................

.

 

Multiplicando-se essas    igualdades e simplificando, tem-se:

,  mas

  e  .  Logo, 

Embora a igualdade tenha sido obtida supondo-se    é fácil verificar que ela também é verdadeira para    (mas não para  n = 1).

Procurando uma forma de exprimir diretamente    como função de  n,  Euler acabou constatando que:

,

E assim por diante. Pode-se demonstrar, por indução, que

 para    e,  lembrando que  tem-se:

Isso permite responder a uma pergunta adicional: “Se um conjunto ordenado de  n  itens é permutado aleatoriamente, qual a probabilidade que nenhum deles volte à sua posição original?”

Ora, essa probabilidade é , ou seja,

.

Como imediatamente observou Euler, essa probabilidade praticamente se estabiliza a partir de valores relativamente baixos de n. Por exemplo, , enquanto  valores muito próximos.

Em outras palavras, isso significa que se desarrumarmos um conjunto com 12 ou com 12000000 elementos, por exemplo, a probabilidade que nenhum volte ao seu lugar de origem é virtualmente a mesma, em torno de 0,367879441. Esse é um resultado surpreendente e nada intuitivo.

E esse estranho número  0,367879441..., quem é ele? O leitor familiarizado com as séries infinitas certamente lembra-se de que

Em outras palavras,  tende a  quando n cresce acima de algumas poucas dezenas. É realmente muito “curioso” (expressão empregada pelo próprio Euler) que o número e apareça, inesperadamente, nessa que se tornou uma clássica questão da Análise Combinatória. Mas quem conhece os hábitos dos dois irmãos peraltas da Matemática, o  e o e, sabe que essa é sua marca registrada: surgir subitamente nos lugares onde são menos esperados.  

 

Gilberto Garbi é engenheiro eletrônico formado pelo ITA .É colaborador da RPM e autor do livro O romance das equações algébricas, prêmio Jabuti de 1998. 

NR.  O problema dos “desarranjos”, também conhecido como o problema das “permutações caóticas”, já foi abordado nas RPMs 15 e 28 sob o suges