|
|
|
|||||
Elon
Lages Lima
O
número 3 da RPM traz um artigo do Professor Zoroastro Azambuja Filho, com
uma demonstração do teorema de Euler para poliedros convexos. Lendo-o,
ocorreu-me que talvez fosse interessante para os leitores desta Revista
conhecer a prova desse teorema dada por A.M.Legendre, onde se apresenta,
pela primeira vez, a idéia central do argumento exposto pelo Prof.
Azambuja, baseado na soma dos ângulos de um polígono. A demonstração
de Legendre, embora menos elementar, pois usa a fórmula da soma dos ângulos
internos de um triângulo esférico, é por isso mais educativa, já que
algumas noções básicas a respeito da Geometria Esférica constituem um
assunto instrutivo e belo, ao alcance dos professores de Matemática no 2o.
grau. Adrien
Marie Legendre (1752 + 81 = 1833) foi um notável matemático francês.
Dentro de uma tradição que muitos dos seus compatriotas ainda seguem,
sua destacada posição científica não o impediu de se interessar pelo
ensino elementar. Com efeito, uma de suas obras mais conhecidas é o livro
“Éléments de Géometrie”, publicado pela primeira vez
em 1794, traduzido em inglês, alemão, italiano, romeno e até
mesmo português. A biblioteca do IMPA possui um exemplar da 14a.
edição, impresso em Paris em 1846, treze anos depois da morte do autor. A
Geometria de Legendre, que tanto ajudou no treinamento matemático de
sucessivas gerações em vários países, é um livro fascinante pela
clareza, simplicidade e originalidade de apresentação. Além disso, suas
edições consecutivas contam a história das repetidas tentativas de seu
autor, buscando demonstrar o postulado das paralelas. Mas esse é outro
assunto. Da Geometria de Legendre, interessa-nos aqui e agora a demonstração
do Teorema de Euler para poliedros convexos. Foi a primeira demonstração
inteligível desse teorema a ser publicada. Creio que muitos
de nós nos deleitaremos com a elegância e a beleza do raciocínio
nela contido, o qual passaremos a expor.
Seja
P um poliedro convexo, com V vértices, A arestas e F faces. Por conveniência,
suporemos que as faces de P são triângulos. (Se isto não for verdade,
por meio de diagonais decomporemos cada face em triângulos, sem alterar o
número V – A + F. Com efeito, cada vez que traçamos
uma diagonal numa face, o número V não se altera, enquanto cada
um dos números A e F aumenta de uma unidade, esses aumentos se cancelando
na expressão V – A + F.) Consideremos
uma esfera E, de raio r, cujo centro O é um ponto situado no interior do
poliedro P. Projetando radialmente o poliedro P sobre a esfera E, obtemos
uma decomposição de E em triângulos esféricos, dispostos de modo
semelhante à situação das faces de P. Em particular, a esfera E fica
recoberta por F triângulos esféricos, com um total de A lados e V vértices.
O
ponto x da esfera E é a projeção radial do ponto X do poliedro P.
O
triângulo esférico t, sobre a esfera E, é a projeção radial do triângulo
T.
Esclareçamos
que uma figura sobre a esfera E chama-se um triângulo esférico
quando seus três lados são arcos de círculos máximos (todos menores do
que uma sem-circunferência). Note que a interseção E
L de uma esfera E com
qualquer plano L que a encontre, é um círculo (ou um ponto, no caso
excepcional em que o plano L é tangente à esfera) quando o plano L passa
pelo centro da esfera E, a interseção E
L é chama-se um círculo
máximo. A projeção radial de um segmento de reta AB é um arco de círculo
máximo ab sobre a esfera E (salvo no caso em que A, B e o
centro O da esfera estão na mesma reta). Com efeito, A, B e O
determinam um plano, que corta a esfera segundo um círculo máximo do
qual ab é um arco.
Quando
dois arcos de círculos máximos têm uma extremidade comum, o ângulo a
formado por esses arcos é, por definição, o ângulo entre as semi-retas
tangentes a esses arcos.
O
geômetra francês Albert Girard demonstrou (em 1629) que se os ângulos a,
b,
g
de um triângulo esférico forem medidos em radianos, a soma
a
+ b
+ g
é dada pela fórmula
onde
a é a área do triângulo e r é o raio da esfera. Esta fórmula
é o fato básico no qual se fundamentou Legendre
para demonstrar o Teorema de Euler. Na seção seguinte provaremos
a fórmula de Girard. Agora vamos mostrar como o Teorema de Euler resulta
dela, de forma simples e elegante. Voltemos
à nossa decomposição da esfera E em F triângulos esféricos, com um
total de A lados e V vértices. Para cada um desses triângulos t, vale a
fórmula de Girard
onde st é a soma
dos ângulos e at é a área do triângulo esférico t. Temos
ao todo F igualdades como
esta acima. Somando-as todas vem:
Ora,
st = 2.V
porque a soma dos ângulos em
torno de cada vértice é igual a 2.
Além disso, at
= 4r2
= área da superfície esférica E. Portanto a igualdade acima se escreve
2
. V =
. F + 4r2/r2.
Simplificando, temos 2V = F + 4, isto é: 2V
– F = 4 (*) Para
obter uma relação entre F (número de triângulos esféricos) e A (número
total de lados desses triângulos), observamos que todo triângulo tem 3
lados, e toda aresta é lado de 2 triângulos, logo 3F = 2A, ou seja: F
= 2A – 2F. Substituindo
F por este valor na igualdade (*), vem 2V – 2A + 2F = 4, donde
V
– A + F = 2. que
é a relação de Euler.
Seja
E uma esfera de centro O e raio r, a qual permanecerá fixa no decorrer
desta seção. Um
fuso é uma região da esfera compreendida entre dois círculos máximos.
Esses círculos têm dois pontos (diametralmente opostos) em comum,
chamados os vértices do fuso. O ângulo do fuso é, por definição,
o ângulo a
entre os dois círculos máximos que constituem os lados do fuso.
da esfera, de modo que sua área é
r2
de um modo geral a área de um fuso é proporcional ao seu ângulo. Assim
sendo, se o ângulo do fuso mede
radianos, a área desse fuso é igual a 2
. r2. Dado
um ponto qualquer x na esfera, seu antípoda x’ é, por definição, o
único ponto da esfera tal que o segmento de reta xx’ contém o centro
O. Dado
um fuso na esfera, o conjunto formado pelos antípodas dos pontos de
é ainda um fuso ’,
chamado o fuso antípoda de . A
reunião
chama-se um fuso completo.
Teorema.
Seja
um fuso completo, cujo ângulo mede
radianos. Qualquer plano que passe pelo centro da esfera a decompõe em
dois hemisférios H e H’. As partes R, R’ do fuso
completo
contidas em cada um desses hemisférios têm a mesma área 2
. r2.
A
região hachurada é a parte de um fuso completo contida num hemisfério
arbitrário. Sua área é 2
. r2. Demonstração:
Consideremos
a função f: E
E, que transforma cada ponto x
E em seu antípoda f(x) = x’. Esta função tem as seguintes
propriedades: 1a.) se x é um ponto do hemisfério H, seu antípoda
x’ = f(x) pertence ao hemisfério oposto H’; 2a.) se x é
um ponto do fuso completo
, seu antípoda x’ = f(x) ainda pertence a
; 3a.) dada qualquer região R na esfera, a região antípoda
R’ = f (R), formada pelos pontos antípodas dos pontos de R, tem a mesma
área que R. Portanto, se chamarmos de R a parte do fuso completo
situada no hemisfério H, veremos que sua região antípoda R’ é a
parte de
situada no hemisfério H’ e que área de
= (área de R) + (área de
R’) = 2 . (área de R), logo área de R = 2
. r2. Agora
podemos demonstrar o teorema de Girard. Teorema.
Se a,
b
e g
são os ângulos internos de um triângulo esférico, medidos em
Demonstração:
Consideremos um hemisfério H que contenha o triângulo dado. Prolongando,
nos dois sentidos, os lados que formam o ângulo a,
até encontrarem o bordo do hemisfério H, obtemos uma região Ra
Ì
H, cuja área mede 2
. r2, de acordo com o teorema anterior.
A
parte hachurada é a região Ra. respectivamente 2b . r2 e 2g . r2. A reunião dessas 3 regiões é o hemisfério H, com o triângulo dado contado três vezes (duas vezes mais do que devia). Segue-se que a soma das áreas das regiões Ra, Rb e Rg é igual à área do hemisfério H mais duas vezes a área a do triângulo dado, ou seja, 2 . r2 + 2b . r2 + 2g . r2 = 2 . r2 + 2a, pois a área de H é 2r2. A
fórmula de Girard mostra que a soma dos ângulos internos de um triângulo
esférico é sempre superior a dois ângulos retos.
Resulta
ainda da fórmula de Girard que se s e t são triângulos situados sobre a
mesma esfera e os ângulos de s são iguais aos de t então s e t possuem
a mesma área. Na realidade, pode-se provar bem mais: se os ângulos de s
são iguais aos de t (sempre supondo s e t sobre a mesma esfera) então os
lados de s também são iguais aos de t. Isto é bem diferente da
Geometria Plana. Em particular, não há semelhança de triângulos sobre
a mesma esfera, salvo quando a razão de semelhança é igual a 1. (Esta
última afirmação também pode ser constatada se lembrarmos que dois
arcos de círculo semelhantes subentendem o mesmo ângulo central e a razão
de semelhança) é a mesma razão entre os raios dos círculos a que
pertencem, portanto arcos de grande círculo sobre a mesma esfera só
podem ser semelhantes quando têm o mesmo comprimento.
|