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Existem, em Matemática, conceitos que
parecem muito simples a uma visão superficial, mas que, submetidos a uma análise
mais cuidadosa, revelam aspectos verdadeiramente surpreendentes.
Vamos tratar aqui da reta na sua
representação numérica em termos das abscissas de seus pontos para mostrar que
esses conceitos de reta e de número não têm uma simplicidade tão
inocente como parecem revelar a uma visão menos profunda. Exploremos alguns
fatos notáveis e inesperados, que estão ligados à primeira grande crise do
desenvolvimento da Matemática, ocorrida no final do 5.° século a.C.
Uma questão com que lidavam os matemáticos
gregos daquela época era a de comparar grandezas da mesma espécie, como dois
segmentos de reta, duas áreas ou dois volumes. No caso de dois segmentos
retilíneos AB e CD, dizer que a razão AB/CD é o número racional m/n, significava
para eles (e ainda significa para nós) que existia um terceiro segmento EF tal
que AB fosse m vezes EF e CD n vezes esse mesmo segmento EF. Na Fig. 1
ilustramos essa situação com m = 8 e n = 5.
No tempo de Pitágoras (580 – 500 a.C.
aproximadamente) – e mesmo durante boa parte do 5o. século a.C. –
pensava-se que os números racionais fossem suficientes para comparar segmentos
de reta; isto é, dados dois segmentos AB e CD, seria sempre possível encontrar
um terceiro segmento EF contido um número inteiro de vezes em AB e outro número
inteiro de vezes em CD, situação esta que descrevemos dizendo que EF é um
submúltiplo comum de AB e CD. Uma simples reflexão revela que essa é uma
idéia muito razoável. Afinal, se EF não serve, podemos imaginar um segmento
menor, outro menor ainda, e assim por diante. Nossa intuição geométrica parece
dizer-nos que há de existir um certo segmento EF, talvez muito pequeno, mas
satisfazendo aos propósitos desejados. Na Fig. 2 ilustramos uma situação com
segmento EF bem menor que o da Fig. 1. O leitor deve ir muito além, imaginando
um segmento EF tão pequeno que nem possa mais desenhar, para se convencer, pela
sua intuição geométrica, da possibilidade de sempre encontrar um submúltiplo
comum de AB e CD.
Dois segmentos
nessas condições são ditos comensuráveis, justamente por ser possível
medi-los ao mesmo tempo, com a mesma unidade EF. Entretanto, não é verdade que
dois segmentos quaisquer sejam sempre comensuráveis. Em outras palavras, existem
segmentos AB e CD sem unidade comum EF, os chamados segmentos incomensuráveis.
Esse é um fato que contraria nossa intuição geométrica, e por isso mesmo a
descoberta de grandezas incomensuráveis na Antigüidade representou um momento de
crise no desenvolvimento da Matemática.
Foram os
próprios pitagóricos que descobriram grandezas incomensuráveis, provavelmente
entre 450 e 400 a.C.; e, ao que tudo indica, isto se fez através de um argumento
geométrico, como o que apresentaremos a seguir, demonstrando que o lado e a
diagonal de um quadrado são segmentos incomensuráveis.
Na Fig. 3 representamos um quadrado com diagonal = AB e lado = AC. Suponhamos que d e l sejam comensuráveis. Então existirá um terceiro segmento que seja submúltiplo comum de e . Fazemos agora a seguinte construção: traçamos o arco com centro em A e o segmento ED tangente a esse arco em D, de sorte que AD = AC. Então, nos triângulos retângulos ACE e ADE, os catetos AC e AD são iguais e a hipotenusa AE é comum, logo são também iguais os catetos CE e DE (=BD).
Portanto,
ou seja,
Como o segmento é submúltiplo comum de e , concluímos, por (1), que também é submúltiplo de BD. Daqui e de (2) segue-se que s também é submúltiplo de BE. Provamos assim que se houver um segmento que seja submúltiplo comum de = AB e = AC, então o mesmo segmento será submúltiplo comum de BE e BD, segmentos esses que são a diagonal e o lado do quadrado BDEF. Ora, a mesma construção geométrica que nos permitiu passar do quadrado original ao quadrado BDEF pode ser repetida com este último para chegarmos a um quadrado menor ainda; e assim por diante, indefinidamente; e esses quadrados vão se tornando arbitrariamente pequenos, pois, como é fácil ver, as dimensões de cada quadrado diminuem em mais da metade quando passamos de um deles a seu sucessor. Dessa maneira, provamos que o segmento deverá ser submúltiplo comum do lado e da diagonal de um quadrado tão pequeno quanto desejemos. Evidentemente, isso é um absurdo! Somos, pois, levados a rejeitar a suposição inicial de que o lado AC e a diagonal AB do quadrado original sejam comensuráveis. Concluímos, pois, que o lado e a diagonal de qualquer quadrado são grandezas incomensuráveis, C.Q.D. A descoberta dos incomensuráveis representou, no 5o. século a.C., uma derrota para os pitagóricos. De fato, para eles o número era a essência de tudo. Eles acreditavam na possibilidade de explicar todos os fenômenos do mundo sensível em termos dos números e de suas relações, tanto na Geometria como na Música, na Astronomia ou na Física, enfim, o número seria a essência última do ser e de todos os fenômenos. Mas por número eles entendiam apenas o que chamamos hoje de “números naturais”, ou inteiros positivos: 1, 2, 3, 4, .... Nem as frações eram números, já que elas apareciam como relações entre grandezas da mesma espécie. Agora que haviam sido descobertas grandezas incomensuráveis, estava claro que os números (naturais) eram insuficientes até mesmo para definir a razão entre duas grandezas, o que se constituía num sério entrave à Filosofia Pitagórica. Ao mesmo tempo em que essas coisas aconteciam, outros argumentos propostos pelos filósofos da época – dentre os quais os de Zeno(*) são os mais famosos – também apontavam dificuldades na suposta harmonia entre a Geometria e os números. Tudo isso culminou numa crise no desenvolvimento da Matemática, crise essa que só foi definitivamente superada com a criação da teoria dos números reais (racionais e irracionais) no século passado, devido, sobretudo aos trabalhos do matemático alemão Richard Dedekind (1831-1916). Uma conseqüência da existência de grandezas incomensuráveis é a existência de pontos na reta sem abscissas racionais.
De fato, com referência à Fig. 4, basta tomar OP = AO, onde AO é a diagonal de um quadrado de lado unitário OU. Como OP e OU são incomensuráveis, não é possível expressar a razão OP/OU como um número racional. Que número seria a abscissa de P? Pelo teorema de Pitágoras,
OA2 = OU2 + UA2 Como AO = OP e UA = OU = 1, obtemos OP2 = 2OU2 = 2 ou seja, OP = É essa a abscissa de P, tomando OU como unidade de comprimento. É interessante analisar essas questões do ponto de vista moderno dos números como abscissas dos pontos de uma reta. Para maior simplicidade, vamos restringir-nos apenas a uma semi-reta OU, tomando o segmento OU como unidade de comprimento (Fig.5).
Então, todo
ponto P da semi-reta, que não seja a origem O, tem abscissa positiva x, que é a
razão OP/OU.
Evidentemente,
se todos os pares de segmentos OU e OP fossem comensuráveis, bastariam os
números racionais não-negativos para caracterizar os pontos da semi-reta, isto
é, os números da forma m/n, com m e n inteiros, m ³ 0 e n > 0. E é bom observar
que isso condiz muito bem com nossa intuição geométrica: afinal, esses números
ficam densamente distribuídos ao longo da semi-reta, de tal forma que entre dois
deles há sempre uma infinidade de números do mesmo tipo. Assim, entre os pontos
A e B de abscissas 7 e 8 existem 9 números do tipo
com n variando de 1 a 9. Isto porque
dividimos o intervalo AB em 10 subintervalos de comprimento 1/10 cada um (Fig.
6). Mas podemos dividir esse intervalo em 100 subintervalos, cada um de
comprimento 0,01; ou 1000 subintervalos, cada um de comprimento 0,001;
e assim por
diante. Se, digamos, adotarmos a divisão em 1.000.000 de subintervalos iguais,
encontraremos entre A e B 999.999 pontos com abscissas racionais do tipo
com n variando de 1 até 999 999. Na Fig. 6
ilustramos um desses pontos, aquele que tem abscissa 7,630598.
Pois bem, vamos confiar – ainda que
provisoriamente – na suposição de que todos os pontos da semi-reta tenham
abscissas racionais e ver onde isso nos leva. Uma primeira conseqüência é que os
pontos da semi-reta formam um conjunto enumerável, pois o conjunto dos números
racionais é enumerável, como vimos em nosso artigo publicado no último número
desta Revista. Vimos naquele artigo que
r1 = 1, r2 = ½, r3
= 2, r4 = 1/3, r5 = 3,..., como ilustra a Fig. 7.
Faremos agora uma cobertura da semi-reta por meio de segmentos, da seguinte maneira: cobrimos o ponto r1 com um segmento de comprimento c/2, centrado em r1; cobrimos r2 com um segmento de comprimento c/22, centrado em r2; fazemos o mesmo com r3, utilizando agora um segmento de comprimento c/23; com r4 utilizamos um segmento de comprimento c/24; e assim por diante (Fig. 8). Dessa maneira a semi-reta ficará toda coberta com uma família infinita de segmentos.
Fig. 8 Vamos agora somar os comprimentos dos segmentos dessa família. Por simplicidade – e para enfatizar a visualização geométrica – colocamos os segmentos em fila, um em seguida ao outro e na ordem em que aparecem, como ilustra a Fig. 9. Isso é o bastante para nos convencer de que a soma de todos os seus comprimentos é exatamente igual a c, pois começamos com um segmento de comprimento c/2, adicionamos sua metade, depois a metade deste último e assim por diante.
O que acabamos de demonstrar é uma impossibilidade! Certamente não é possível cobrir a semi-reta com um a família de segmentos cuja soma total dos comprimentos seja um número finito c! (E o número c é arbitrário!) Afinal, a semi-reta tem comprimento infinito! Para sairmos dessa contradição temos de voltar atrás em nossa hipótese inicial de que os pontos da reta numérica têm todos eles abscissas racionais. Em outras palavras, os números racionais são insuficientes para marcar todos os pontos de uma reta; ou ainda, em termos mais inteligíveis aos gregos da Antigüidade, existem segmentos AB e CD para os quais é impossível encontrar um segmento EF que seja submúltiplo comum de AB e CD. Como se vê, acabamos de estabelecer a existência de segmentos incomensuráveis com um raciocínio típico da Análise Moderna! Ele certamente causaria, na antigüidade, tanta controvérsia quanto causaram os famosos argumentos de Zeno. Talvez mais ainda, pois os argumentos de Zeno foram rebatidos por Aristóteles que, através de seus escritos, fê-los chegar até nós. Mas como rebater o argumento que demos acima sobre a cobertura dos pontos de abscissas racionais? Seria necessário admitir a existência de uma infinidade muito maior (uma infinidade não enumerável, como vimos em nosso artigo anterior) de pontos sem abscissas racionais! É claro que isto seria totalmente inaceitável para quem já tinha sérias objeções ao infinito enumerável. Mesmo para nós hoje é muito surpreendente que se possa cobrir todos os pontos de abscissas racionais numa reta com uma família de segmentos cuja soma total dos comprimentos seja tão pequena quanto desejemos! Esses pontos da reta sem abscissas racionais têm por abscissas números irracionais (desde que esses números sejam criados!) e é um deles, como decorre do argumento que demos antes referente à Fig. 4. No entanto, para completar este artigo, vamos reproduzir aqui a demonstração desse fato com um argumento puramente numérico e bem conhecido. Começamos supondo que existisse uma fração irredutível m/n tal que Então
Daqui segue-se que m2 é um número par, portanto segue-se que m2 é um número par, portanto o mesmo é verdade para m, isto é, m = 2r, sendo r outro número inteiro. Substituindo m = 2r em m2 = 2n2 obtemos
Mas esta última relação nos diz que n2 é número par, logo n também é par. Chegamos a um absurdo, pois m/n é fração irredutível, não sendo possível que m e n sejam ambos pares. Somos, assim, forçados a rejeitar a suposição inicial de que seja um número racional m/n. A demonstração que acabamos de dar está baseada num argumento que, segundo Aristóteles, teria sido usado na descoberta de grandezas incomensuráveis. É um argumento que encerra um alto grau de abstração, razão pela qual muitos historiadores da Ciência acreditam que a descoberta dos incomensuráveis tenha ocorrido com um raciocínio mais concreto, como o argumento geométrico da Fig. 3 Demonstrações como as que apresentamos acima, da incomensurabilidade do lado e da diagonal do quadrado, ou da irracionalidade de , foram as primeiras demonstrações por redução ao absurdo que se fizeram na Antigüidade. É notável que por volta de 400 a.C. a Matemática já tivesse alcançado tão avançado grau de sofisticação. O mesmo não aconteceu com outras ciências, como a Física, que somente no século XVII, com os trabalhos de vários cientistas, notadamente Galileu e Newton, alcançaria desenvolvimento comparável ao da Matemática de dois milênios antes. Finalmente, um último comentário sobre a crise desencadeada com a descoberta dos incomensuráveis. De imediato isso tornou impossível falar em razão entre duas grandezas quando essas fossem incomensuráveis. Havia a necessidade de se inventarem os números irracionais, o que só ocorreu nos tempos modernos. Mas os gregos souberam contornar esse problema, logo na primeira metade do 4o. século a.C., e com muita genialidade! Foi Eudoxo (408? – 355? a.C.), da escola de Platão, quem desenvolveu , de maneira brilhante, uma teoria das proporções, com a qual foi possível superar a dificuldade dos incomensuráveis, usando apenas os números inteiros positivos. Mas isto é uma outra história que pretendemos contar futuramente...
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