Como abrir um túnel se você sabe Geometria

Euclides Rosa
Colégio D. João VI, Rio de Janeiro

A ilha de Samos, que ainda pertence à Grécia, fica a menos de 2 quilômetros da Costa da Turquia. Há 2.500 anos, toda aquela região era habitada por gregos. Samos passou à História por ser a terra natal de Pitágoras, mas não é dele que vamos falar. O herói do nosso episódio nem ao menos era matemático. Seu nome era Eupalinos e, nos dias atuais, seria chamado de engenheiro. Ele será focalizado aqui por ter sabido usar, com bastante sucesso, um fato elementar de Geometria Plana para resolver um problema de Engenharia e assim contribuir para o bem-estar de uma comunidade.

O exemplo de Eupalinos merece ser conhecido pelos leitores da Revista do Professor de Matemática por dois motivos: fornece um tópico interessante para ilustrar nossas aulas e mostra como o conhecimento matemático, mesmo quando de natureza teórica, pode ter influência decisiva no progresso tecnológico.

O teorema de Geometria usado por Eupalinos foi o seguinte:

Se dois triângulos retângulos têm catetos proporcionais, seus ângulos agudos são iguais.

Como se sabe, este é um caso particular de semelhança de triângulos. [Os triângulos dados têm um ângulo (reto) igual, compreendido entre lados proporcionais.]

Para sermos exatos, Eupalinos não usou precisamente o teorema acima e sim uma sua conseqüência imediata, que enunciaremos agora:

Sejam abc e a’b’c’ triângulos retângulos com um vértice comum. Se os catetos b e c’ são reta..

A afirmação acima decorre imediatamente da anterior pois a soma dos ângulos em torno do vértice comum aos dois triângulos é igual a dois ângulos retos.

Retomemos nossa história. Ela se passa em Samos, ano 530 a.C. O poderoso tirano Polícrates se preocupava com o abastecimento de água da cidade. Havia fontes abundantes na ilha, mas ficavam do outro lado do monte Castro; o acesso a elas era muito difícil para os habitantes da cidade. Decidiu-se abrir um túnel. A melhor entrada e a mais conveniente saída do túnel foram escolhidas pelos assessores de Polícrates. Eram dois pontos, que chamaremos de A e B respectivamente. Cavar a montanha não seria árduo, pois a rocha era calcárea e não faltavam  operários experientes. O problema era achar um modo de sair do ponto A e, cavando, chegar ao ponto B sem se perder no caminho.

Eupalinos, encarregado de estudar a questão, surpreendeu a todos com uma solução simples e prática. Além disso, anunciou que reduziria o tempo de trabalho à metade propondo que se iniciasse a obra em duas frentes, começando a cavar simultaneamente nos pontos A e B, encontrando-se as duas turmas no meio do túnel!

Disse e fez. O túnel, construído há 25 séculos, é mencionado pelo historiador grego Heródoto. Em 1882, arqueólogos alemães, escavando na ilha de Samos, o encontraram. Ele tem um quilômetro de extensão, sua seção transversal é um quadrado com 2 metros de lado, com uma vala funda para os canos d’água e aberturas no teto para renovação do ar e limpeza de detritos.

Mas como Eupalinos conseguiu, partindo simultaneamente de A e B, traçar uma reta ligando esses pontos, através da montanha?

Na figura a seguir, o contorno curvilíneo representa o monte, A é o ponto de entrada e B é a saída do túnel.

A partir do ponto B fixa-se uma direção arbitrária BC e, caminhando ao longo de uma poligonal BCDEFGHA, na qual cada lado forma um ângulo reto com o seguinte, atinge-se o ponto A, tendo evitado assim as áreas mais escarpadas da montanha. (Não é difícil imaginar um instrumento ótico rudimentar que permita dar com precisão esses giros de 90 graus.)

Anotando-se o comprimento de cada um dos lados da poligonal, determinam-se facilmente os comprimentos dos catetos AK e KB do triângulo retângulo AKB no qual AB é a hipotenusa e os catetos têm as direções dos lados da poligonal considerada. Calcula-se então a razão
r = AK/KB. A partir dos pontos A e B, constroem-se dois pequenos triângulos retângulos cujos catetos ainda tenham as direções dos lados da poligonal e, além disso, em cada um desses triângulos, a razão entre os catetos seja igual à razão r entre os catetos do triângulo AKB.

Agora é só cavar o morro, a partir dos pontos A e B, na direção das hipotenusas dos triângulos pequenos.

Isto resolve o problema se os pontos A e B estiverem no mesmo nível: cava-se sempre na horizontal e o plano horizontal é fácil de determinar, por meio de vasos comunicantes ou por outros processos.

Em geral, A e B não estão no mesmo nível. No caso em questão, é obviamente desejável que B seja mais baixo e sem dúvida levou-se isto em conta na sua escolha como ponto de saída. Mas é fácil calcular d = diferença de nível entre A e B. Basta ir registrando, à medida que se percorre a poligonal BCDEFGHA, a diferença de nível entre cada vértice e o seguinte.

Tendo d, consideramos o triângulo retângulo AMB, no qual o cateto AM é vertical e tem comprimento d. O comprimento da hipotenusa AB se determina pelo teorema de Pitágoras (a partir dos catetos do triângulo AKB).

A razão AM/AB = s diz como se deve controlar a inclinação da escavação: cada vez que andarmos uma unidade de comprimento ao longo do túnel, o nível deve baixar s unidades.

O mais notável desse raciocínio teórico é que ele foi posto em prática e funcionou. O túnel sob o monte Castro lá está, para quem quiser ver, na majestade dos seus dois mil e quinhentos anos de idade.

Honestamente, devemos esclarecer que as duas extremidades das escavações não se encontraram exatamente no mesmo ponto. Isto seria esperar demais da precisão dos instrumentos então existentes. Houve um erro de uns 9 metros na horizontal e 3 metros na vertical. Desvios insignificante convenhamos. Além disso, esse erro tem dois aspectos interessantes. Em primeiro lugar, constitui uma prova de que o túnel foi realmente cavado em duas frentes. Em segundo lugar, a ponta que começou em B chegou mais baixa do que a que começou em A, o que permitiu formar uma pequena cachoeira, sem interromper o fluxo de água de A para B. Isto nos deixa quase certos de que esse erro na vertical está ligado ao cuidado dos construtores em não deixar as pontas se encontrarem com a saída mais alta do que a entrada, o que causaria um problema desagradável.

Para encerrar, uma pergunta: como sabemos destas coisas? Eupalinos não deixou obras escritas. Mas Heron de Alexandria publicou muitos livros, alguns deles ainda hoje existentes. Um desses livros é sobre um instrumento de agrimensura chamado dioptra. Nele, Heron descreve o processo que expusemos acima. Em seu todo, os livros escritos por Heron formam uma enciclopédia de métodos e técnicas de Matemática Aplicada, sintetizando o conhecimento da época. Outros livros, talvez menos completos, certamente foram publicados antes com propósitos semelhantes e não se pode deixar de supor que a construção de Eupalinos tenha figurado entre essas técnicas.

 

Referências:

1.      Fernando Trotta, Luiz Márcio Pereira Imenes e José Jakubovic – Matemática Aplicada, vol. 1. Editora Moderna, S. Paulo, 1979. Esse livro contém (págs. 193 a 196) uma discussão do problema do túnel usando trigonometria, bem como uma breve apresentação do método por nós exposto. De um modo geral, os 3 volumes de Trotta, Imenes e Jakubovic são altamente recomendáveis pela abundância de exemplos e aplicações da Matemática a nível de estudantes do segundo grau.

2.      Hans Freudenthal – Perpectivas da Matemática – Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1975. Uma série de tópicos independentes, que podem servir de inspiração e fonte de informação aos interessados por Matemática. O problema do túnel é um dos primeiros abordados nesse livro.

B.L. van der Waerden – Science Awakening. Noordhoff, 1954. Uma exposição clara e acessível dos primórdios da Ciência no mundo ocidental, começando com sumérios e babilônios, indo até os gregos. O primeiro texto moderno a contar a história de Eupalinos.

 

O triângulo que fornece o número de divisores

No n°. 4 da RPM, pág. 20 publicamos “Um Triângulo Interessante”, do colega Odorico Cardoso de Oliveira, de Cerqueira César-SP. Naquela ocasião, foi deixada a cargo do leitor a verificação de que o número de divisores de n pode ser calculado como a diferença entre a soma dos elementos da n-ésima linha e a soma dos elementos da linha anterior.

O colega Odorico nos envia agora a sua solução:

Construção do triângulo:

Na 1a. coluna escreva os naturais (a partir de 1) na sua ordem habitual, na 2a. coluna, comece na 2a. linha e escreva os mesmos números duas vezes cada um, na 3a. coluna comece da 3a. linha, escrevendo cada número três vezes e assim por diante.

Quem são estes números?

verificamos que o triângulo que acabamos de construir é uma “tábua” de valores dos “colchetes”:

                                    1   

                            2        1                

                      3         1        1

               4         2        1        1

E o número de divisores de n?

números dentre estes n. Assim é que

é a soma dos números de divisores dos números de 1 a n. Analogamente, a expressão

é a soma dos números de divisores de 1 a n – 1. Donde, a diferença entre essas somas dá o número de divisores de n.