“O Ensino da Matemática na Escola Secundária por Meio de Aplicações”

(Teaching Secondary Mathematics Through Applications), por Herbert Fremont. 2ª edição, 1979, Editora Prindle, Weber e Schmidt, USA)

Comentário por Elon Lages Lima

Em que pese a justa homenagem prestada pela Prof.ª Maria Laura Mouzinho (*) ao autor, a importância deste livro justifica um comentário mais longo do que o feito pela autora em seu artigo no presente número da RPM. Aproveito, então, a oportunidade para acrescentar as observações que se seguem.

O objetivo principal do livro de Fremont é ajudar aos professores de Matemática nas escolas de 1º e 2º graus a cumprirem as seguintes missões:

(1)   Mostrar aos estudantes que não há razão para temer a Matemática;

(2)   Exibir aos estudantes diversos modos pelos quais a Matemática está integrada em sua vida diária.

Estas são, sem dúvida, as coisas mais importantes que um professor de Matemática pode conseguir como resultado do seu trabalho. Evidentemente, a tarefa (1) é uma auxiliar para (2), necessária para que as várias situações exibidas possam ser assimiladas sem maiores traumas.

O que é, afinal, a Escola, senão uma preparação para a Vida? Admitido este princípio óbvio, a Matemática tem lugar de destaque na Escola simplesmente porque é indispensável para entender as coisas que nos cercam na vida moderna, para explicar os fenômenos físicos, biológicos e sociais, para controlar as forças dessas (e de outras) espécies, enfim, para que o jovem possa ter uma visão inteligente do mundo em que vive.

A maioria dos estudantes e praticamente todos os professores de Matemática já ouviram ou leram afirmações como as que acabamos de fazer. Muito poucos, porém, tiveram a oportunidade de ver tais afirmações genéricas serem exemplificadas por meio de casos concretos, preferivelmente relacionados a situações atuais. Quantos de nossos colegas não adorariam possuir um repositório, uma coleção de problemas nos quais questões objetivas e modernas fossem tratadas com técnicas matemáticas bastante simples, ao alcance dos conhecimentos de seus alunos? Quantos não anseiam por uma lista variada de exemplos utilizáveis em classe, provando assim aos estudantes que é útil aprender Matemática?

O livro de Fremont é, antes de mais nada, uma feliz antologia de aplicações da Matemática ao mundo de hoje, tudo isso ao nível da Escola Secundária. Neste particular, ele é o melhor dos antídotos contra o torpor da chamada “Matemática Moderna”. Com efeito, o grande e fundamental fracasso desta última foi precisamente o de adotar uma concepção da Matemática bastante dissociada das aplicações e, como tal, em contradição com o objetivo básico da Escola como preparação à Vida.

O livro de Fremont tem 342 páginas e cerca de 300 delas contêm exemplos de aplicações interessantes da Matemática. É claro que não podemos analisar todos eles aqui. Para dar uma pálida idéia da variedade e do teor desses exemplos, vejamos dois:

 

(1)     Em Geometria, aprendemos que “as áreas de duas figuras semelhantes estão entre si como o quadrado da razão de semelhança” e que “os volumes de dois sólidos semelhantes estão entre si como o cubo da razão de semelhança”. Daí decorre, por exemplo, que se C for um cilindro de altura a e raio da base r e C’ for o cilindro cuja altura é 10a e cujo raio da base é 10r então a superfície de C’ tem área igual a 100 vezes a superfície de C, enquanto o volume de C’ é 1000 vezes o volume de C! Fremont discute a aplicação desse princípio à seguinte questão motivada pelo livro “As Viagens de Gulliver”:

“Se existisse um gigante que tivesse a mesma forma de um homem, salvo o fato de ser 10 vezes maior, poderia tal gigante correr tão depressa como nós?”

Depois de uma clara e paciente análise de como variam a área, o volume e o peso de figuras semelhantes, o autor conclui o seguinte: “Nosso grande e forte gigante é um sujeito infeliz. Seu fêmur é 100 vezes mais forte que o nosso (pois a resistência do mesmo é proporcional à área de sua seção transversal). Mas precisa suportar um peso 1000 vezes maior! Cada vez que ele se levanta, para caminhar ou correr, podemos imaginá-lo quebrando ambas as pernas! A força da gravidade tornou-se um inimigo violento. As implicações desta discussão são numerosas”. (Nesta altura, o autor cita um interessante artigo da conhecida coletânea “The World of Mathematics”, de James Newman. O artigo, por J.B.S. Haldane, chama-se “A propósito de ter o tamanho certo”. Haldane, um famoso biólogo, observa ainda que um animal dez vezes maior que o homem, pesando mil vezes mais, deverá consumir mil vezes mais comida e oxigênio. Como a superfície de cada órgão aumentou cem vezes, cada milímetro quadrado de intestino deverá absorver dez vezes mais comida, o que lhe forçará a ter mais intestinos. Em geral, quanto maior o animal, mais complicado ele é obrigado a ser.)

(2)     Em sua loja, você vende no máximo 60 bicicletas por ano. A companhia que as fornece exige que você venda pelo menos 3 vezes mais bicicletas masculinas do que femininas. Seu lucro numa bicicleta masculina é de 20 mil cruzeiros e numa feminina é de 24 mil cruzeiros. Qual é o seu maior lucro possível e quantas bicicletas de cada tipo você deve vender para obter esse lucro máximo?

 Este e alguns outros problemas semelhantes constituem exemplos de um tipo extremamente importante nas atividades econômicas (comércio, indústria, etc) e, mais geralmente nas atividades que requerem tomadas de decisão (governo, conflitos, etc). Essas questões se enquadram no ramo da Matemática chamado Programação Linear. Pelo menos nos casos em que se trata de um número reduzido de variáveis (duas ou três), os problemas como este estão perfeitamente ao alcance dos alunos que saibam traçar o gráfico de uma equação do tipo
ax + by = c (ou ax + by + cz = d, no caso de 3 variáveis).

No caso o problema proposto, se indicarmos por x o número de bicicletas masculinas e y o de bicicletas femininas vendidas num ano, o lucro do vendedor no ano é 20x + 24y. Trata-se de achar o maior valor que esta expressão pode atingir, sabendo-se que x + y 60, x 3y, x 0 e y 0.

O conjunto dos pontos do plano cujas coordenadas (x, y) satisfazem simultaneamente estas 4 desigualdades é a superfície de um triângulo T cuja base é o segmento [0, 60] do eixo das abscissas e cujo vértice é o ponto (x, y) com x = 45, y = 15. O problema se reduz, portanto, a achar o ponto (x, y) desse triângulo para o qual a expressão 20x + 24y assume o valor máximo. Ora, para cada lucro possível L = 20x + 24y, temos

,

ou seja

  .

Isto nos diz que as vendas (x, y) que geram o mesmo lucro L são representadas por pontos situados na reta com inclinação –5/6 que corta o eixo y no ponto de ordenada L/24. A solução do nosso problema reduz-se portanto a achar uma reta de inclinação –5/6 que passe pelo triângulo T e que corte o eixo y no ponto de ordenada L/24 maior possível. O ponto (ou pontos) (x, y) pertencentes a T e situados nessa reta será a solução (ou serão as soluções). No nosso caso, é evidente que a solução do problema é x = 45, y = 15, com o lucro L = 1260000 cruzeiros.

Dissemos acima que o livro de Fremont é, antes de tudo, uma feliz coletânea de aplicação da Matemática a questões interessantes e atuais. “Antes de tudo”, mas não “apenas”. O livro se divide em três partes, das quais a segunda, que ocupa 294 páginas e que é formada pelas aplicações de que falamos, é significativamente intitulada “O Ensino da Matemática”. Isto já define a filosofia do autor bem claramente.

A primeira parte do livro chama-se “Preparação para Ensinar Matemática”. Tem 22 páginas e contém quase tudo o que precisa ser dito sobre a metodologia do ensino dessa matéria. O autor, com sua longa experiência em salas de aula e, acima de tudo, com grande honestidade, nos diz que a arte de ser bom professor de Matemática, não se baseia em complicadas teorias nem constitui uma ciência abstrata.

Ele enumera 10 princípios básicos e simples sobre os quais deve assentar-se o ensino eficiente da Matemática.

Os cinco primeiros princípios se referem à natureza da Matemática, que deve ser bem compreendida pelo professor. Eles são os seguintes:

1.      A Matemática ajuda a compreender nosso meio ambiente.

2.      A Matemática é a linguagem da Ciência.

3.      A Matemática e a sociedade são interdependentes.

4.      A Matemática é um sistema abstrato de idéias.

5.      A Matemática é o estudo de modelos (“patterns”).

 

É evidente que não pode ser um bom professor aquele que não tem uma boa compreensão do significado e do alcance do assunto que está ensinando. Em apenas 4 páginas o autor discorre, com grande clareza, sobre cada um dos cinco princípios acima. O grosso do texto constitui numa elaboração desses cinco postulados, fartamente ilustrados nas quase 300 páginas que constituem a 2ª parte do livro.

Os outros cinco axiomas fundamentais do ensino da Matemática se referem à experiência de transmitir o conhecimento matemático na sala de aula. Eles são os seguintes:

1.       O “ciclo vital” da aprendizagem de uma idéia matemática mostra que essa aprendizagem deve evoluir a partir de um envolvimento ativo com objetos concretos até a análise e as abstrações.

2.       Durante todo esse processo, o estudante deve estar livre para pensar e tirar suas próprias conclusões.

3.       O pensamento lógico-analítico deve ser precedido por oportunidades para idéias “aventurosas”, tentativas e palpites.

4.       Uma criança, em geral, é capaz de abstrair um princípio matemático depois de confrontada com uma série de situações às quais o dado princípio é inerente.

5.       Imagens visuais são indispensáveis para que o estudante possa compreender e utilizar conceitos abstratos.

O autor termina seu compêndio de pedagogia de 21 páginas ilustrando com um exemplo concreto (ensino da função linear) como utilizar estes princípios na elaboração de um plano de ensino de um tópico, oferecendo, inclusive, sugestões sobre a atuação do professor na sala de aula. Em forma mais resumida, ele indica um plano para o ensino da congruência em Geometria. No decorrer do capítulo, ele enumera uma série de conselhos utilíssimos ao jovem professor, no que concerne ao seu relacionamento humano com os alunos.

O livro termina com um capítulo sobre a elaboração de testes e o problema da verificação da aprendizagem, em geral.

Devo confessar que, antes de ler o manuscrito da Prof.ª Maria Laura Mouzinho, não conhecia o livro do Professor Fremont. Ao vê-lo, percebi que se tratava de um trabalho com profunda percepção do problema do ensino da Matemática, escrito com honestidade e amor aos seus colegas professores de Matemática de todo o mundo. Estou certo de que sua tradução para a língua portuguesa servirá como auxílio inestimável ao esforço que se faz no sentido de divulgar cada vez mais o conhecimento da Matemática e o seu ensino no Brasil.