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Comentário por Elon Lages LimaEm
que pese a justa homenagem prestada pela Prof.ª Maria Laura Mouzinho (*)
ao autor, a importância deste livro justifica um comentário mais longo
do que o feito pela autora em seu artigo no presente número da RPM.
Aproveito, então, a oportunidade para acrescentar as observações que se
seguem. O
objetivo principal do livro de Fremont é ajudar aos professores de Matemática
nas escolas de 1º e 2º graus a cumprirem as seguintes missões: (1)
Mostrar aos estudantes que não há razão para temer a Matemática;
(2)
Exibir aos estudantes diversos modos pelos quais a Matemática está
integrada em sua vida diária. Estas são, sem dúvida, as coisas mais importantes que um professor de Matemática pode conseguir como resultado do seu trabalho. Evidentemente, a tarefa (1) é uma auxiliar para (2), necessária para que as várias situações exibidas possam ser assimiladas sem maiores traumas. O
que é, afinal, a Escola, senão uma preparação para a Vida? Admitido
este princípio óbvio, a Matemática tem lugar de destaque na Escola
simplesmente porque é indispensável para entender as coisas que nos
cercam na vida moderna, para explicar os fenômenos físicos, biológicos
e sociais, para controlar as forças dessas (e de outras) espécies,
enfim, para que o jovem possa ter uma visão inteligente do mundo em que
vive. A
maioria dos estudantes e praticamente todos os professores de Matemática
já ouviram ou leram afirmações como as que acabamos de fazer. Muito
poucos, porém, tiveram a oportunidade de ver tais afirmações genéricas
serem exemplificadas por meio de casos concretos, preferivelmente
relacionados a situações atuais. Quantos de nossos colegas não
adorariam possuir um repositório, uma coleção de problemas nos quais
questões objetivas e modernas fossem tratadas com técnicas matemáticas
bastante simples, ao alcance dos conhecimentos de seus alunos? Quantos não
anseiam por uma lista variada de exemplos utilizáveis em classe, provando
assim aos estudantes que é útil aprender Matemática? O
livro de Fremont é, antes de mais nada, uma feliz antologia de aplicações
da Matemática ao mundo de hoje, tudo isso ao nível da Escola Secundária.
Neste particular, ele é o melhor dos antídotos contra o torpor da
chamada “Matemática Moderna”. Com efeito, o grande e fundamental
fracasso desta última foi precisamente o de adotar uma concepção da
Matemática bastante dissociada das aplicações e, como tal, em contradição
com o objetivo básico da Escola como preparação à Vida. O
livro de Fremont tem 342 páginas e cerca de 300 delas contêm exemplos de
aplicações interessantes da Matemática. É claro que não podemos
analisar todos eles aqui. Para dar uma pálida idéia da variedade e do
teor desses exemplos, vejamos dois: (1)
Em Geometria, aprendemos que “as áreas de duas figuras
semelhantes estão entre si como o quadrado da razão de semelhança” e
que “os volumes de dois sólidos semelhantes estão entre si como o cubo
da razão de semelhança”. Daí decorre, por exemplo, que se C for um
cilindro de altura a e raio da base r e C’ for o cilindro cuja
altura é 10a e cujo raio da base é 10r então a superfície de
C’ tem área igual a 100 vezes a superfície de C, enquanto o volume de
C’ é 1000 vezes o volume de C! Fremont discute a aplicação desse
princípio à seguinte questão motivada pelo livro “As Viagens de
Gulliver”: “Se existisse um gigante que tivesse a mesma forma de um homem, salvo o fato de ser 10 vezes maior, poderia tal gigante correr tão depressa como nós?” Depois
de uma clara e paciente análise de como variam a área, o volume e o peso
de figuras semelhantes, o autor conclui o seguinte: “Nosso grande e
forte gigante é um sujeito infeliz. Seu fêmur é 100 vezes mais forte
que o nosso (pois a resistência do mesmo é proporcional à área de sua
seção transversal). Mas precisa suportar um peso 1000 vezes maior! Cada
vez que ele se levanta, para caminhar ou correr, podemos imaginá-lo
quebrando ambas as pernas! A força da gravidade tornou-se um inimigo
violento. As implicações desta discussão são numerosas”. (Nesta
altura, o autor cita um interessante artigo da conhecida coletânea “The
World of Mathematics”, de James Newman. O artigo, por J.B.S. Haldane,
chama-se “A propósito de ter o tamanho certo”. Haldane, um famoso biólogo,
observa ainda que um animal dez vezes maior que o homem, pesando mil vezes
mais, deverá consumir mil vezes mais comida e oxigênio. Como a superfície
de cada órgão aumentou cem vezes, cada milímetro quadrado de intestino
deverá absorver dez vezes mais comida, o que lhe forçará a ter mais
intestinos. Em geral, quanto maior o animal, mais complicado ele é
obrigado a ser.) (2)
Em sua loja, você vende no máximo 60 bicicletas por ano. A
companhia que as fornece exige que você venda pelo menos 3 vezes mais
bicicletas masculinas do que femininas. Seu lucro numa bicicleta masculina
é de 20 mil cruzeiros e numa feminina é de 24 mil cruzeiros. Qual é o
seu maior lucro possível e quantas bicicletas de cada tipo você deve
vender para obter esse lucro máximo? Este
e alguns outros problemas semelhantes constituem exemplos de um tipo
extremamente importante nas atividades econômicas (comércio, indústria,
etc) e, mais geralmente nas atividades que requerem tomadas de decisão
(governo, conflitos, etc). Essas questões se enquadram no ramo da Matemática
chamado Programação Linear. Pelo menos nos casos em que se trata de um número
reduzido de variáveis (duas ou três), os problemas como este estão
perfeitamente ao alcance dos alunos que saibam traçar o gráfico de uma
equação do tipo No
caso o problema proposto, se indicarmos por x o número de bicicletas
masculinas e y o de bicicletas femininas vendidas num ano, o lucro do
vendedor no ano é 20x + 24y. Trata-se de achar o maior valor que esta
expressão pode atingir, sabendo-se que x + y
60, x
3y, x
0 e y
0. O
conjunto dos pontos do plano cujas coordenadas (x, y) satisfazem
simultaneamente estas 4 desigualdades é a superfície de um triângulo T
cuja base é o segmento [0, 60] do eixo das abscissas e cujo vértice é o
ponto (x, y) com x = 45, y = 15. O problema se reduz, portanto, a achar o
ponto (x, y) desse triângulo para o qual a expressão 20x + 24y assume o
valor máximo. Ora, para cada lucro possível L = 20x + 24y, temos
, ou
seja
. Isto
nos diz que as vendas (x, y) que geram o mesmo lucro L são representadas
por pontos situados na reta com inclinação –5/6 que corta o eixo y no
ponto de ordenada L/24. A solução do nosso problema reduz-se portanto a
achar uma reta de inclinação –5/6 que passe pelo triângulo T e que
corte o eixo y no ponto de ordenada L/24 maior possível. O ponto (ou
pontos) (x, y) pertencentes a T e situados nessa reta será a solução
(ou serão as soluções). No nosso caso, é evidente que a solução do
problema é x = 45, y = 15, com o lucro L = 1260000 cruzeiros.
Dissemos
acima que o livro de Fremont é, antes de tudo, uma feliz coletânea de
aplicação da Matemática a questões interessantes e atuais. “Antes de
tudo”, mas não “apenas”. O livro se divide em três partes, das
quais a segunda, que ocupa 294 páginas e que é formada pelas aplicações
de que falamos, é significativamente intitulada “O Ensino da Matemática”.
Isto já define a filosofia do autor bem claramente. A
primeira parte do livro chama-se “Preparação para Ensinar Matemática”.
Tem 22 páginas e contém quase tudo o que precisa ser dito sobre a
metodologia do ensino dessa matéria. O autor, com sua longa experiência
em salas de aula e, acima de tudo, com grande honestidade, nos diz que a
arte de ser bom professor de Matemática, não se baseia em complicadas
teorias nem constitui uma ciência abstrata. Ele
enumera 10 princípios básicos e simples sobre os quais deve assentar-se
o ensino eficiente da Matemática. Os
cinco primeiros princípios se referem à natureza da Matemática, que
deve ser bem compreendida pelo professor. Eles são os seguintes: 1.
A Matemática ajuda a compreender nosso meio ambiente. 2.
A Matemática é a linguagem da Ciência. 3.
A Matemática e a sociedade são interdependentes. 4.
A Matemática é um sistema abstrato de idéias. 5.
A Matemática é o estudo de modelos (“patterns”). É evidente que não pode ser um bom professor aquele que não tem uma boa compreensão do significado e do alcance do assunto que está ensinando. Em apenas 4 páginas o autor discorre, com grande clareza, sobre cada um dos cinco princípios acima. O grosso do texto constitui numa elaboração desses cinco postulados, fartamente ilustrados nas quase 300 páginas que constituem a 2ª parte do livro. Os
outros cinco axiomas fundamentais do ensino da Matemática se referem à
experiência de transmitir o conhecimento matemático na sala de aula.
Eles são os seguintes: 1.
O “ciclo vital” da aprendizagem de uma idéia matemática
mostra que essa aprendizagem deve evoluir a partir de um envolvimento
ativo com objetos concretos até a análise e as abstrações. 2.
Durante todo esse processo, o estudante deve estar livre para
pensar e tirar suas próprias conclusões. 3.
O pensamento lógico-analítico deve ser precedido por
oportunidades para idéias “aventurosas”, tentativas e palpites. 4.
Uma criança, em geral, é capaz de abstrair um princípio matemático
depois de confrontada com uma série de situações às quais o dado princípio
é inerente. 5.
Imagens visuais são indispensáveis para que o estudante possa
compreender e utilizar conceitos abstratos. O autor termina seu compêndio de pedagogia de 21 páginas ilustrando com um exemplo concreto (ensino da função linear) como utilizar estes princípios na elaboração de um plano de ensino de um tópico, oferecendo, inclusive, sugestões sobre a atuação do professor na sala de aula. Em forma mais resumida, ele indica um plano para o ensino da congruência em Geometria. No decorrer do capítulo, ele enumera uma série de conselhos utilíssimos ao jovem professor, no que concerne ao seu relacionamento humano com os alunos. O livro termina com um capítulo sobre a elaboração de testes e o problema da verificação da aprendizagem, em geral. Devo
confessar que, antes de ler o manuscrito da Prof.ª Maria Laura Mouzinho,
não conhecia o livro do Professor Fremont. Ao vê-lo, percebi que se
tratava de um trabalho com profunda percepção do problema do ensino da
Matemática, escrito com honestidade e amor aos seus colegas professores
de Matemática de todo o mundo. Estou certo de que sua tradução para a língua
portuguesa servirá como auxílio inestimável ao esforço que se faz no
sentido de divulgar cada vez mais o conhecimento da Matemática e o seu
ensino no Brasil. |