Cláudio Arconcher
Colégio Leonardo de Jundiaí
Faculdade Politécnica de Jundiaí

Talvez a maioria de nós tenha pouco conhecimento sobre a história do Japão. Com certeza nos lembramos que nos dias atuais o pequeno país do oriente é a segunda maior economia do planeta com altíssimos índices de desenvolvimento humano. Lembramos também que o Brasil é o país com a maior colônia japonesa, cerca de um milhão e meio de pessoas, descendentes dos primeiros emigrantes que aqui chegaram a partir de 1908.

Provavelmente nossos estudantes do ensino médio são capazes de lembrar os nomes das principais ilhas do arquipélago japonês, Kyushu, Shikoku, Honshu e Hokkaido, certamente conhecem um pouco da culinária japonesa e se forem netos ou bisnetos de emigrantes talvez saibam que seus avós ou bisavós usavam o ábaco (sorobam) para fazer cálculos aritméticos.

Uma experiência reveladora é a seguinte: se perguntarmos a professores de História algo sobre a história do Japão, constataremos que mesmo eles pouco conhecem sobre o tema. História do Japão não é assunto cobrado nos nossos principais vestibulares. Pode ser esse o motivo desse desconhecimento.

O que nos interessa no momento é um episódio singular da cultura japonesa que envolve artes plásticas e muita geometria euclidiana.

Nosso foco é o período histórico denominado Edo que vai de 1603 a 1867. Em 1868 ocorre a reforma Meiji que é o início da ocidentalização do Japão e seu fruto é o Japão contemporâneo.

Durante a maior parte do período Edo o Japão ficou isolado, não mantendo contato mesmo com seus principais vizinhos históricos, China e Coréia. Foi governado de forma praticamente feudal (xogunato) pela família Tokugawa. Os japoneses estavam proibidos de manter contato com estrangeiros sob ameaça de pena de morte. O comércio com o ocidente foi mantido com apenas dois países, Portugal e Holanda, sendo que as embarcações comerciais desses países podiam aportar num único ponto da baia de Nagasaki. Livros ocidentais também estavam proibidos.

Entretanto, surpreendentemente, durante esse período os japoneses produziram artes plásticas (gravuras ukiyo-e), que chegaram a influenciar grandes pintores ocidentais (Manet, Degas, Monet, Toulose- Lautrec e Van Gogh) e a clássica arte cênica -o teatro kabuki - com sua profusão de formas e cores vivas.

A Matemática no Japão, nesse período Edo, foi desenvolvida a partir de bases chinesas.

A principal referência era um clássico chinês intitulado Jiuzhang Suanshu [Computação em nove capítulos] cuja origem data do final da dinastia Han (208 A.C. - 8 D.C.). Esse livro já registra conhecimentos geométricos (cálculos de áreas e volumes), sistemas lineares, regra de três, divisão em partes proporcionais e regra da dupla - falsa- posição.

Além disso, os seis primeiros livros de Euclides haviam sido traduzidos para o chinês no final do século XVI. O missionário jesuíta Matteo Ricci (1552 - 1610) foi o responsável por essa e outras traduções de trabalhos matemáticos ocidentais para o chinês. Seu principal objetivo era a difusão da doutrina cristã entre os chineses. Todavia, sua grande contribuição à cultura chinesa foi o início de um bem sucedido programa de traduções de obras ocidentais de geometria e de astronomia. Na verdade, os livros de Geometria que Matteo Ricci traduziu para o chinês (com a ajuda de discípulos chineses) foram os comentários, sobre seis primeiros livros de Euclides, de autoria de C. Clavius (1538 - 1612). De alguma forma, ainda não muito bem esclarecida, esses conteúdos geométricos foram transmitidos ao Japão.

Inicia-se, então, um fenômeno cultural sem precedentes na história da Matemática: os matemáticos japoneses do período Edo desenvolveram uma habilidade muito grande no uso do ábaco (sorobam) e suas aplicações. Nessa época o Japão tinha uma organização administrativa centralizada (Tokugawa) que necessitava de funcionários hábeis para executar e fiscalizar cobrança de impostos (40 a 60% da colheita). Havia concursos públicos para o provimento desses cargos implicando o surgimento de verdadeiras escolas matemáticas. Cada uma delas tinha um líder e um grupo de discípulos. A universal prática de publicar desafios matemáticos também se fez presente nessas escolas.

É nesse contexto cultural que surgem gravuras, escritas numa língua antiga do Japão, o Kanbum, com teoremas geométricos. Essas gravuras em madeira eram dadas como oferendas aos deuses nos santuários xintoístas e nos templos budistas e apresentavam resultados geométricos por meio de figuras artisticamente trabalhadas, acompanhadas de um texto explicativo. Eram também uma forma de lançar um desafio aos matemáticos rivais, uma vez que não apresentavam as soluções dos problemas nelas contidos. O nome dessas gravuras é Sangaku.

As gravuras do início do período Edo ocupavam placas retangulares de aproximadamente  50 cm por 30 cm; gravuras mais recentes estão em placas de madeira de 180 cm por 90 cm. É comum nessas gravuras maiores a exposição de vários problemas geométricos. A autoria desses trabalhos é, em geral, múltipla. Provavelmente são contribuições de vários seguidores de um matemático líder.

Atualmente, o professor japonês Hidetosi Fukagawa é o principal responsável pela divulgação dos Sangaku. Existe um livro de sua autoria e do professor Dan Pedoe (falecido) intitulado Japanese Temple Geometry Problems (The Charles Babbage Research Centre – Winnipeg, Canada – 1989). Nesse livro o professor Fukagawa exibe 250 problemas geométricos provenientes de vários Sangaku.

Há um grande número de problemas envolvendo circunferências e elipses. A elipse é sempre analisada como uma secção plana de um cilindro de revolução, nunca como um lugar geométrico. Problemas envolvendo elipses são estudados por meio de propriedades deduzidas dessa forma de concepção.

O grau de dificuldade dos problemas é, em geral, elevado.

A competência dos matemáticos japoneses do período Edo no uso da álgebra elementar para resolver problemas geométricos é muito grande. A forma geral de trabalho deles é: (i) tradução para a linguagem algébrica da situação geométrica, (ii) resolução das equações correspondentes até encontrar a solução ou desenvolvimentos algébricos até demonstrar a propriedade. É, principalmente, nesse segundo passo que encontramos transformações algébricas muito sutis. Esse “arsenal ” inclui ainda: transformação afim aplicada a uma figura geométrica e o uso de relações de recorrência.

Vejamos, a seguir, alguns Sangaku. É interessante saber que muitas das gravuras originais não existem mais. Muitos Sangaku são conhecidos através de manuscritos do período Edo. No momento o manuscrito mais antigo, conhecido, data de 1751. No livro do professor Fukagawa há, para cada Sangaku, a informação do distrito onde foi encontrado e o ano, nos casos em que existe o registro, anotado na gravura ou no manuscrito.

(1) (Fukusima/1881). Na figura abaixo temos quatro circunferências, cada uma delas tangente internamente a uma quinta circunferência. As circunferências menores formam um “ciclo”.

Provar que vale a relação:

 

(2) (Hyogo/sem data).  O triângulo  ABC  está inscrito na circunferência de centro  O  e raio  RAB  é um diâmetro.

A circunferência de centro    e raio  r  tangencia os catetos  AC  e  BC,  também tangencia a circunferência de centro  O  e raio  R.

Designando por  c  a hipotenusa,  a  e  b  os catetos do triângulo  ABC,  provar que 

(3) (Tochigi/1901). Na figura a seguir temos uma elipse de centro  O,  eixo maior  2a,  eixo menor  2b.  A circunferência de centro  C  e raio  r  tangencia externamente a elipse. Ambas são tangentes a um par de retas paralelas. Provar que 

(4) (Iwate/1850).  Na figura abaixo a circunferência de centro  C  e raio  r tangencia internamente a elipse em dois pontos distintos,  T  é um dos pontos de tangencia. O centro da elipse é o ponto  O,  seu eixo maior mede  2a,  o menor  2b.  A reta  m  é uma tangente comum em  TH  é o pé da perpendicular a  m  pelo ponto O.
 

Nessas condições, provar que

 

(5) (Tochigi/1853). Na figura, o triângulo  ABC  é retângulo em  C.  As circunferências com centros em  AB  e  C  são externamente tangentes duas a duas e têm raios  , respectivamente. A circunferência de centro  O  e raio  r  tangencia externamente as três anteriores. Nessas condições, provar que  .

Os exemplos anteriores ilustram bem o gosto dos matemáticos japoneses do período Edo por problemas geométricos envolvendo tangências. Até onde pudemos constatar não há preocupação com a construção geométrica das figuras usando régua e compasso. Nesse aspecto a Matemática japonesa se diferencia nitidamente da concepção geométrica ocidental do mesmo período, o que confirma a idéia de um desenvolvimento autóctone no Japão.

Após a reforma Meiji, em 1868, há um rompimento cultural do Japão com sua matemática tradicional (wasan). Modelos ocidentais são implantados na Educação e na industrialização do país. Os Sangaku são, temporariamente, esquecidos. Felizmente, para todos nós que apreciamos a geometria, o trabalho pioneiro do professor Fukagawa, divulgando os Sangaku, fornece mais uma fonte de interessantíssimos problemas no domínio da geometria elementar.

Na nossa opinião a história dos Sangaku pode ser usada para enriquecer nossas aulas de geometria e, mais do que isso, fornece um excelente exemplo de interdisciplinaridade natural: geometria e história e oriente e... etc.

Vamos agora mostrar um Sangaku e sua solução. É um belo problema e pode ser compreendido e apreciado pelos estudantes que estudam geometria.  

 

 

     Um Sangaku para a sala de aula  

Alguns dos trabalhos Sangaku têm grau de dificuldade bastante adequado para nossas aulas de Geometria em nível médio.

Uma boa estratégia para apresentá-los é, primeiramente, apresentar um resumo da história dos mesmos e, em seguida, propor o problema como um desafio para a próxima   aula.

O problema apresentado a seguir nos parece adequado para esse propósito. A peça em madeira, o Sangaku propriamente dito, está preservada e data de 1885. Sua origem é o distrito de Fukusima.  
 

     O problema  

Na figura a seguir temos um triângulo equilátero  ABC  e duas circunferências de centros    e  O , raios  r1r2 ,  respectivamente. Tais circunferências tangenciam os lados do triângulo equilátero externamente, tangenciam a reta suporte do lado  BC  e uma rela  l   variável que passa pelo vértice   A.  Provar que, independentemente, da posição da reta  l,  a soma r1+r21 é uma constante.

     Demonstração

Primeiramente observemos que, se traçarmos por A, a reta  l ,   paralela ao lado  BC, descobrimos que, nesse caso,  r1+r21   é igual a  h,  altura do triângulo equilátero. Resta provar que em todos os outros casos possíveis a soma r1+r21   é igual a  h.  Podemos ainda considerar as situações limites para a reta  ll  contendo  AB  ou  AC.  Nesses casos, uma das circunferências transforma-se num dos vértices,  B  ou  C,  e a outra torna-se uma circunferência ex-inscrita ao triângulo  ABC.  Ainda aqui temos  r1+r21   igual a  h,  sendo um dos raios zero e outro  h.

Para todos os outros casos temos a situação descrita a seguir e ilustrada na figura abaixo.

Seja  L  a interseção da reta  BC  com a reta perpendicular a  AB  que passa por  . Se    é a interseção dessa perpendicular com  AB  e   é a interseção, com a reta  ,  da perpendicular a    traçada por  L,  temos, com as notações da figura:

Os triângulos retângulos    e    são congruentes (   e    são tangentes por B)  e, lembrando que  o ângulo    mede  ,  segue que também os triângulos retângulos    e     são congruentes, implicando  .  Então, temos que os triângulos   e    também são congruentes logo, o ângulo entre os segmentos  AL  e  AB  mede  . Observe que    logo,    o que implica   e que o ponto  L  pertence ao segmento BC.  Além disso, temos que a medida do ângulo    também é  .  Isso permite provar, de modo análogo, que o simétrico de    em relação a  AC  também coincide com  L,  ou    Finalmente, temos   h, o que completa a demonstração.  

 

     Notas do autor  

1. Para apreciar mais a beleza dos Sangaku, o leitor pode consultar o endereço eletrônico:  www.asahi-net.or.jp  ou na revista Scientific American de maio 1998, o artigo Japanese Temple Geometry.

2. O professor Ângelo Barone Netto do IME-USP fez uma demonstração do problema 3 que pode ser encontrada no Boletín de Ficom – Federacion Iberoamericana de Competiciones Matemáticas, no endereço eletrônico: www.missouri.edu/~oc918/ficom. Essa demontração, na opinião do autor, poderia estar no “Livro”, uma criação do famoso matemático húngaro Paul Erdös (1913-1996) que costumava dizer que Deus possui um “Livro” contendo as mais elegantes e perfeitas demonstrações da cada teorema da Matemática. Vez ou outra Deus permite que um simples mortal examine uma das demonstrações do “Livro” e a difunda entre nós. A partir daí criou-se o costume de se referir a uma demonstração como tendo sido tirada diretamente do “Livro”, significando que dificilmente alguém conseguirá uma demonstração mais inspirada e elegante para o resultado em questão. O próprio Paul Erdös iniciou um projeto tentando escrever uma cópia imperfeita do “Livro”. Infelizmente sua morte, em 1996, interrompeu o trabalho. Em 1998 os matemáticos alemães Martin Aigner e Günter M.Ziegler publicaram uma versão do projeto de Erdös com o nome Proofs from the Book. Esse livro está na segunda edição e é publicado pela editora alemã Springer Verlag.