|
|
|
|||||
Ana Catarina
P. Hellmeister
|
Introdução |
Analisando a estrutura curricular de vários cursos de licenciatura em Matemática, percebem-se as sérias dificuldades que as instituições de ensino superior têm na organização e hierarquização das disciplinas do curso, bem como em elaborar suas ementas e bibliografias. Nos casos das instituições que conseguem superar essa etapa, apresentando um bom projeto pedagógico, há ainda a dificuldade de obter um corpo docente capaz de desenvolver tal projeto.
Essa situação, que se reflete na qualidade dos cursos, implica a formação deficiente de muitos dos professores de Matemática que estão atuando no ensino fundamental e médio, oferecendo, por sua vez, uma formação ruim a seus alunos. É freqüente que resultados que podem e devem ser demonstrados já no ensino fundamental e médio sejam apresentados como “propriedades” dos “objetos” matemáticos, muitas vezes mesmo sem uma justificativa plausível, trazendo para o curso de licenciatura em Matemática um aluno sem nenhum questionamento, sem percepção da necessidade de demonstrações, sem reflexão sobre um sistema axiomático ou sem entender a diferença entre um exemplo e um teorema.
Vou focalizar, neste artigo, uma disciplina em particular, que aparece nas grades curriculares dos cursos de licenciatura em Matemática com o nome de Lógica Matemática, ou algo semelhante a isso, que tem como um dos objetivos apresentar aos alunos o desenvolvimento de uma teoria baseada em alguma estrutura lógica.
Como docente de cursos de licenciatura em
Matemática, tenho observado que alunos já aprovados na disciplina de “lógica”
continuam não fazendo distinção entre um resultado e sua recíproca, continuam
não entendendo a diferença entre exemplos, demonstrações e contra-exemplos,
enfim, continuam sem a vivência de provas de resultados, mostrando que
infelizmente essa disciplina não os ajudou a sanar as deficiências trazidas do
ensino médio. Isso, talvez, seja devido ao fato de que essa disciplina trata a
lógica de forma abstrata, sem exemplos concretos ligados a temas matemáticos
específicos.
A disciplina trata a lógica de forma abstrata, sem exemplos concretos ligados a temas matemáticos específicos |
Minha proposta alternativa, que tenho experimentado nos últimos dois anos, é
trabalhar o raciocínio lógico de forma aplicada, “reensinando” resultados já
conhecidos (ou não) de aritmética ou geometria, explorando as diferentes
técnicas de demonstração, expondo e discutindo erros. Tenho utilizado a RPM,
que tem se mostrado uma fonte de material muitíssimo rica para esse
procedimento, como veremos a seguir.
O trabalho desenvolvido |
Uma prática de nossos alunos, muito difícil de combater, e infelizmente incentivada por muitos livros didáticos, é a verificação de resultados testando-os em vários exemplos particulares e aceitando esse procedimento como uma demonstração.
Aqui cabe dar exemplos de propriedades que são verdadeiras para muitos números naturais consecutivos, mas deixam de ser a partir de um certo número. Busquemos na RPM.
Por exemplo, a RPM 09 traz na pág. 33 o seguinte:
A afirmação “ não é um quadrado perfeito”. É falsa ou verdadeira?
Para muitos valores do natural n, como , verifica-se que, de fato, não é um quadrado perfeito. Podem-se fazer muitas outras tentativas e verificar que a proposição é verdadeira para um número muito grande de exemplos. Na verdade, o primeiro número natural para o qual é um quadrado perfeito tem 29 dígitos e é
12 055 735 790 331 359 447 442 538 767.
Ainda na RPM 09 temos o conhecido trinômio de Euler , que resulta num número primo para os seguintes valores de x:
Por exemplo, para temos os valores 43, 47, 53.
Mas, para temos que não é um número primo.
Além dessa, há também a prática de
generalizar apressadamente, supondo que certos comportamentos se perpetuam
indefinidamente. Bons contra-exemplos de novo se encontram na RPM:
Há também a prática de generalizar apressadamente, supondo que certos comportamentos se perpetuam indefinidamente |
O problema, que aparece na RPM 12, do número de regiões determinadas por n pontos distribuídos sobre uma circunferência: todos os pontos são ligados de modo que o segmento ligando dois quaisquer não passe pelo ponto de intersecção de outros dois segmentos. Para 2 pontos, obtemos regiões; para 3 pontos, obtemos regiões; para 4 pontos, obtemos regiões; para 5 pontos, obtemos regiões.
Generalizando, para n pontos obtemos regiões? É fácil fazer uma figura e mostrar que, para 6 pontos, o número de regiões obtidas é 31, e não logo, não vale a generalização. A RPM traz a expressão, em função de n, que fornece o número de regiões, assim como sua demonstração.
Na RPM 41 há menção aos números perfeitos. Todos os conhecidos são pares; 6, 28, 496, ... para primo. Então todo número perfeito é par? Não se sabe ainda a resposta.
Depois disso, espero, com fé, que os estudantes estejam convencidos de que, embora verdadeiro para um número muito grande de exemplos, um resultado ainda pode ser falso, espero que sintam a necessidade de demonstrações precisas e gerais, que não deixem dúvidas sobre a veracidade de uma afirmação.
Vamos, a seguir, apresentar algumas proposições que podem ser exploradas de forma bastante interessante, quer seja em disciplinas de um curso de licenciatura, quer seja em aulas do ensino médio ou até fundamental.
Proposição 1. Um número inteiro é par se e somente se seu quadrado é um número par.
Essa proposição exige que se observem duas implicações:
A: “Se um inteiro n é par, então é par.” e sua recíproca,
B: “Se n é um inteiro e é par, então n é par.”
Pode-se perguntar: Como verificar a veracidade da proposição? Quantos números você teria que testar para garantir uma resposta? É possível fazer isso?
Esperando que os alunos dêem uma resposta negativa para a última pergunta, mostra-se, então, a necessidade de representar ou definir genericamente um número par: n é par se n = 2k para algum inteiro k. Agora sim:
Se , então e, como é um inteiro, temos que , com inteiro, logo é um número par.
E a recíproca? Os estudantes invariavelmente fazem:
Se é par, então que implica . E agora, que fazer? Um caminho ilustrativo é demonstrar a implicação:
Se n é um inteiro ímpar, então é ímpar.
Aqui novamente coloca-se a necessidade de uma demonstração que englobe todos os números ímpares. Para isso temos que representar um ímpar genérico.
n é ímpar se
, para algum k inteiro;
logo,
e, como v
é um inteiro, temos
ímpar.
Concluímos então que, se é par, n não pode ser ímpar (caso contrário, seu quadrado seria ímpar); logo, n é par. Olha aí a contra-positiva...
O aluno deve notar que utilizou as duas implicações:
(n par par) e (n ímpar ímpar), para obter a equivalência ( par par) e que também obtém ( ímpar ímpar).
Esses resultados podem ser imediatamente utilizados na prova de que não é um número racional, encontrada na RPM 05, na seção Olhando mais de cima, que apresenta a demonstração por absurdo. Essa técnica, por absurdo, também pode ser vivenciada com a elegante prova feita por Euclides da existência de infinitos números primos, que transcrevemos da RPM 11:
Suponhamos que existe apenas um número finito de números primos positivos.
Sejam todos eles e consideremos o número inteiro . Como N é um inteiro maior que 1, N ou é primo ou divisível por um primo (Teorema Fundamental da Aritmética); mas N não é divisível por nenhum dos primos , caso contrário, 1 o seria. Logo, N é primo, o que é uma contradição (ou um absurdo), pois é diferente de todos os primos já listados anteriormente.
É importante também apresentar exemplos de proposições que podem ser verificadas por envolverem um número finito de casos, como a seguinte:
Proposição 2. Se n é um número natural, então n e têm o mesmo algarismo das unidades.
Para demonstrar a proposição, os alunos devem considerar o algarismo das unidades igual a 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 ou 9 e verificar o que acontece em cada caso ao multiplicarmos n por ele mesmo nove vezes.
É interessante observar e discutir as diferentes abordagens feitas pelos estudantes e, eventualmente, usar congruência, caso os alunos já tenham estudado o assunto.
Ainda na aritmética, os critérios de divisibilidade, que podem ser encontrados nas RPMs 10 e 2, fornecem exemplos de demonstrações que permitem o trabalho com a lógica:
Proposição 3. Um número de quatro algarismos é divisível por 3 se e somente se a soma de seus algarismos é divisível por 3.
Inicialmente pode-se pedir aos alunos que verifiquem a afirmação com alguns exemplos, destacando as duas implicações, A e sua recíproca B, envolvidas no enunciado, que são:
A: Se um número inteiro de quatro algarismos é divisível por 3, então a soma de seus algarismos é divisível por 3.
B: Se a soma dos algarismos de um número inteiro de quatro algarismos é divisível por 3, então o número é divisível por 3.
Nessa altura os estudantes já devem exigir uma demonstração razoável, que, nesse caso, é simples:
Representemos os algarismos do número por a, b, c e d, de modo que o número seja
, logo,
.
Agora fica fácil verificar as duas implicações exigidas:
divisível por 3 divisível por 3 e
divisível por 3 divisível por 3
Pode-se solicitar aos alunos que notem que a demonstração feita também se aplica para divisibilidade por 9 e pedir um enunciado e uma demonstração precisos de uma regra de divisibilidade por 9.
O mesmo processo pode ser utilizado para elaborar enunciados e fazer demonstrações de regras variadas de divisibilidade por outros inteiros.
Ainda com divisibilidade, pode-se trabalhar o papel dos contra-exemplos. Uma proposição de demonstração bastante fácil é:
Proposição 4. Um número inteiro múltiplo de 9 é múltiplo de 3.
Como escrever a frase “matematicamente”? E a recíproca? Qual é? É verdadeira? Existe um contra-exemplo? Aqui, espera-se que os alunos não tenham dificuldades em exibir, por exemplo, os números 6, 15, 21, etc., que são múltiplos de 3 sem serem de 9. Discute-se, então, a demonstração da falsidade de uma proposição.
Trabalhando com a Geometria |
Pode-se ainda integrar, nos cursos de Licenciatura em Matemática, a disciplina de Lógica com atividades de um Laboratório de Ensino, utilizando materiais concretos para experimentações que os alunos poderão usar quando se tornarem professores. Vale também a sugestão de atividades para os nossos leitores que já estão atuando numa sala de aula. Vejamos:
Há muitos quebra-cabeças interessantes para verificar, por exemplo, o teorema de Pitágoras, alguns encontrados na RPM 13. Alunos do ensino fundamental apreciam muito esse tipo de atividade e elas são importantes para motivar e direcionar a intuição na busca de resultados. O professor deve, entretanto, chamar a atenção para a necessidade de uma demonstração formal, mostrando por que um quebra-cabeça não é uma demonstração satisfatória. É interessante, aqui, apresentar a demonstração feita por Euclides, nos Elementos, e introduzir o aluno na fascinante história da axiomatização da Geometria. No ensino médio, já é possível apresentar alguns axiomas e dar uma visão simplificada da estrutura da teoria axiomática.
Na seção O Leitor Pergunta da RPM 44 encontra-se um quebra-cabeça que pode ser utilizado no estudo de sólidos para incentivar a demonstração do resultado: num tetraedro regular, ABCD, a seção determinada pelo plano que passa pelos pontos médios das arestas AB, BC, CD e AD é um quadrado. Novamente, ao discutir a demonstração formal, pode-se destacar o raciocínio lógico-dedutivo.
A seção Artefatos, por exemplo das RPMs 28 e 31, traz vários trabalhos com material concreto que levam a resultados interessantes de Geometria e, ao percebê-los, esperemos que nossos alunos nos peçam ansiosamente suas demonstrações.
Esperamos ter conseguido mostrar que é
possível recuperar o aspecto lúdico e criador que a Matemática tem, mesmo
lidando com conteúdos simples, que podem ser tratados desde o ensino
fundamental.