Geraldo Ávila
Comitê Editorial da RPM

     Introdução

A RPM 46 publicou a prova do Exame Nacional de Cursos (ENC), mais conhecido como Provão, que foi ministrada em junho passado. Essa prova - e as dos anos anteriores - merece alguns comentários e reflexões, que é o que pretendemos fazer aqui.

Comecemos lembrando que até agora foram ministradas quatro provas, referentes aos anos de 1998, 1999, 2000 e 2001. Cabe notar que mais de 50% das questões objetivas de todas essas provas versaram sobre matéria do ensino básico (fundamental e médio). No último exame, em particular, houve 40 questões objetivas, 22 delas versando sobre matemática do ensino básico. (Veja a lista das questões na RPM 46.)

Essas observações são muito importantes, porque os examinandos do ENC são alunos do ensino superior que estão se formando bacharéis ou licenciados em Matemática. Em vista disso, e do fato de que as questões do exame - todas as questões - não são questões difíceis, mesmo as que versam sobre matemática do ensino superior, era de se esperar que as médias das notas fossem razoáveis. Pois bem, nesse último exame, 11 844 alunos fizeram a prova. A média de notas nas questões de múltipla escolha foi 2,53 (na escala de 1 a 10). Nas cinco questões discursivas, os alunos de bacharelado tiveram média 1,67, e os de licenciatura 0,81. A média geral da prova, questões objetivas e discursivas juntas, foi 1,68. Os resultados dos exames anteriores não foram muito diferentes. São resultados ruins, que não têm melhorado ao longo desses poucos anos.

 

     A estrutura do ENC

O ENC é organizado pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), um órgão do MEC.

Tudo começa com a nomeação, por portaria do ministro, de uma Comissão Normativa, composta de sete professores, dentre nomes indicados por reitores e sociedades científicas, como a SBM, a SBEM e a SBMAC. Procura-se nomear pessoas das mais variadas instituições e regiões do país. É uma comissão de conhecimento público.

A Comissão Normativa, como o próprio nome diz, estabelece normas para o exame: os vários objetivos da prova, o conteúdo sobre o qual ela deve versar, e as habilidades que se esperam dos examinandos. E estabelece também o formato da prova. Por exemplo, essa última prova, de 2001, teve quarenta questões objetivas, mais cinco questões discursivas exclusivas para o bacharelado e cinco discursivas para a licenciatura. Essa parte do trabalho da Comissão é feita em sua primeira reunião.

Após essa primeira reunião, o INEP faz a licitação para escolher a instituição que fará a prova. Essa instituição organiza uma Comissão Elaboradora, esta sim encarregada de elaborar a prova. A partir daí o trabalho é sigiloso: nenhum membro da Comissão Normativa, ou do próprio INEP, sabe quem são os membros da Comissão Elaboradora.  

 

     Examinando algumas questões  

Vamos passar a comentar algumas questões das provas. Lembramos, inicialmente, que as questões com percentual de acertos inferior a 16% são consideradas “muito difíceis”; de 16% a 40% são “difíceis”; de 41% a 60% são as de “dificuldade média”; de 61% a 85% são as “fáceis”; e acima de 85% as “muito fáceis”. Neste último exame de 2001 não houve questões fáceis ou muito fáceis, todas foram difíceis ou muito difíceis, e apenas quatro de dificuldade média, a 14 e a 19 (ambas com 41% de acertos), a 36 com 42% de acertos, e a 01 com 43%.

A questão (de múltipla escolha) do ENC-2001 que teve o menor número de acertos foi a de número 28, com 6% de acertos. Ela diz que a soma dos primeiros n termos de uma seqüência numérica é  e pede para calcular o vigésimo termo. Ora, pelos dados do problema,

Como se vê, o problema não é difícil, não exige conhecimento específico, apenas um pouco de imaginação.

Em seguida, com apenas 9% de acertos, está a questão 21, também na categoria das “muito difíceis”. É um belo problema de visualização geométrica. Ela pede o número de planos de simetria de um cubo. Ora, a única coisa que se precisa saber para resolvê-la é a noção de “plano de simetria”, uma noção bastante intuitiva. Desenhe (ou apenas “imagine”) um cubo sobre sua mesa. Você logo perceberá que há quatro planos verticais de simetria, cada um deles cortando o cubo em duas partes simétricas. Em seguida examine o cubo em relação a duas faces laterais opostas; você encontrará três novos planos de simetria (o 4o seria repetição de um dos anteriores). Finalmente, encontre mais dois planos de simetria relativamente às duas outras faces laterais opostas. Portanto, um total de nove planos de simetria.

Outra questão de visualização geométrica foi a 2 do ENC-2001, que pede a interseção dos planos das faces laterais opostas de uma pirâmide quadrangular regular. Ela teve 27% de acertos e ficou na categoria das questões difíceis. O leitor deve refletir sobre essa questão e resolvê-la. Ela requer apenas alguma familiaridade com um sólido geométrico simples como o cubo. Está no mesmo espírito da questão 14 do ENC-2000, que diz: ABCD e  são faces opostas de um cubo, do qual    é uma aresta (faça o desenho). Pede-se a natureza do polígono que resulta da interseção com o cubo do plano que contém o vértice   e os pontos médios das arestas AB e AD.  Faça o desenho e verifique que se trata de um pentágono. Pois bem, essa questão teve apenas 9% de acertos, ficou na categoria das “muito difíceis” do exame de 2000. (Ver RPM 43.)

Muito boas as questões de geometria plana 34/2001 e 22/2000.

A questão discursiva 2 do exame de 2000 pede para mostrar (o mesmo que demonstrar) que, se um número inteiro a não é divisível por 3, então  deixa resto 1 na divisão por 3.  Ora, pela hipótese, 

, onde  3m  significa “múltiplo de 3”.  Daí segue que  .  Essa última expressão também é do tipo , donde segue o resultado desejado. A partir daqui fica fácil resolver a parte b) da questão, provando que, se 3 divide   ,  então  a  e  b  são divisíveis por 3.

Essa última questão está muito próxima da 3 (objetiva) do exame de 2001, que pode ser enunciada, alternativamente, assim: se N é um número natural, prove que a divisão de    por 6 nunca deixa resto 2. Ora, dividindo N por 6, podemos escrever: ,  onde o resto r pode variar de 0 a 5. Então,   que, como no caso da questão anterior, se escreve como igual a um múltiplo de 6 mais  .  Portanto, o resto da divisão de    por 6 é o mesmo resto da divisão de    por 6. Basta, então, examinar os restos da divisão por 6 dos quadrados de 1 a 5, ou seja, dos números 1, 4, 9, 16 e 25.

Essa questão teve um índice razoável de acertos, talvez por ter sido formulada com alternativas, de forma que sua resolução dispensava o raciocínio feito aqui. Bastava examinar os quadrados dos primeiros números naturais para ver que já com os quatro primeiros ocorrem os restos propostos, exceto 2, donde se descobre a alternativa correta. A questão teve 40% de acertos, ainda no grupo das “difíceis”. Tivesse sido 41% esse índice e ela estaria no grupo das de “dificuldade média”.

Outra questão que merece ser comentada é a 16/2001, sobre gráficos. Ela pergunta, através das alternativas que oferece, o modo de se obter o gráfico da função  a partir do gráfico de . Essa questão teve apenas 13% de acertos, ficando no grupo das “muito difíceis”. É triste constatar que poucos sabem que a resposta é uma translação de uma unidade para a esquerda. Isso deveria ter sido aprendido na 1a série do ensino médio, quando se estudam funções.  

 

     Sistemas lineares  

Desde o primeiro exame, em 1998, a Comissão Elaboradora da prova vem propondo questões sobre sistemas lineares. Merecem destaque a 13/2000 e a 17/2001, com índices de acertos de 17% e 36% respectivamente, portanto, no grupo das “difíceis”. Merecem destaque porque elas focalizam um erro que se tornou muito comum entre os alunos, erro esse que se origina do modo errôneo como alguns autores discutem sistemas lineares com determinantes nulos. (Veja Painel III desta RPM.)  

 

     Material disponível  

O INEP publica, a cada ano, um “Relatório Síntese” do exame referente a cada área; assim, a nós interessa o Relatório Síntese da Matemática, que é enviado a todos os coordenadores de cursos das escolas participantes do Exame. Esse relatório contém todos os dados do Exame, uma profusão de material informativo, estatísticas, tabelas e gráficos de diferentes situações. Uma parte do relatório é dedicada ao exame das questões. Bastante útil é a tabela das questões de múltipla escolha por grau de facilidade. Há uma tabela de percentual de respostas em cada questão objetiva, a qual dá uma boa idéia de questões que foram respondidas mais no “chute” do que por reflexão cuidadosa. Acessando na Internet o portal  inep.gov.br, o leitor encontrará as questões objetivas e os gabaritos de todos os exames já realizados, bem como as respostas esperadas de todas as questões discursivas.  

 

     O que se deve ver e o que se pode fazer  

Os poucos exemplos que examinamos são suficientes para mostrar que muitos dos nossos formandos não sabem demonstrar teoremas, não têm boa visualização geométrica espacial e terminam seus cursos superiores com graves deficiências de formação. Ora, essas deficiências, se existem no ensino superior, estão também presentes no ensino básico, ou melhor, começam no ensino fundamental e se propagam por todos os níveis do ensino. Em conseqüência, o problema de melhoria do ensino não é só da universidade, mas também do ensino básico.

A deficiência do ensino em todos os níveis tem várias causas, que não vamos analisar aqui em detalhe; teríamos de nos alongar muito e sair do rumo que devemos seguir em nossos comentários.

Mas, mesmo sem atentar para as causas dessa situação, devemos nos conscientizar de que há muita coisa que nós professores podemos fazer para melhorar significativamente o nível do nosso ensino. Temos de nos voltar para dentro de nós mesmos, em busca de atitudes novas diante do ensino. A primeira coisa é competência em conteúdo, pois ninguém pode ser bom professor de coisa alguma se não tiver um firme domínio do conteúdo que vai ensinar.

Você, leitor, seja professor do ensino básico, seja aluno de bacharelado ou licenciatura, deve verificar se está devidamente preparado na Matemática que ensina ou que vai ensinar. Você precisa saber bem toda essa Matemática e muito mais. Tenha coragem de reconhecer suas  deficiências e trabalhar para saná-las. Estudar Matemática é, em grande parte, resolver problemas. Teste sua competência resolvendo todas as questões do ENC-2001 e, se possível, dos exames anteriores também. Você terá muito proveito com isso. Se você se sentir seguro, ótimo. Do contrário, faça a sua parte, conscientize-se de que é dever de cada um de nós cuidar de aprender o que ainda não sabemos, ou que não sabemos bem. A Matemática é uma ciência cumulativa, que exige pré-requisitos a todo momento, por isso mesmo temos de estar sempre recordando e cultivando a matéria já aprendida, ou que nos foi “ensinada”.  

 

     O que mais você pode fazer  

Se você já é professor, já está trabalhando na sala de aula, há muito mais que você pode fazer. Na verdade, você é o agente mais importante de qualquer melhoria do ensino, você está no alicerce do edifício! Se seu trabalho tiver deficiências, essas se propagarão e contaminarão o ensino em todas as suas etapas posteriores - o chamado “efeito dominó”.

É comum o professor dizer: os alunos são desmotivados, não têm interesse em aprender, não respondem ao ensino do professor, etc. Você pode reclamar de outras dificuldades que encontra pela frente, como a falta de apoio da direção da escola, as turmas numerosas, etc.; mas nunca pode culpar seus alunos. Em vez disso, olhe para dentro de si e procure descobrir o que você pode fazer para despertar neles interesse e dedicação no estudo. Isso pode até ser uma platitude, mas vale a pena repetir: pense menos em “ensinar” e mais em ajudar seus alunos a aprender Matemática. Temos de aprender a promover a participação dos alunos na sala de aula, a ajudá-los no hábito de leitura e de utilização do livro para estudar por conta própria. A sociedade moderna é complexa e cada vez mais dinâmica, exige que o cidadão se exercite na arte de “aprender a aprender”, não apenas receber passivamente o que lhe é ensinado.

Procure, pois, tornar suas aulas interessantes e agradáveis. Há muita matéria na RPM que pode ajudá-lo a organizar muitas historinhas interessantes para apresentar na aula, quebrando a monotonia das preleções e despertando o interesse dos alunos pela Matemática.

Como você bem sabe, as pessoas, ou gostam de Matemática ou a detestam, quase não há meio termo. É claro que você tem de se situar no grupo dos que gostam e amam a Matemática; ou jamais será um bom professor, jamais poderá passar aos seus alunos esse elã de entusiasmo tão necessário para um bom aprendizado.

Uma última palavra: que os maus resultados do provão, ao invés de desanimá-lo, o estimulem a melhorar o seu ensino, seja como estudioso da Matemática, seja como professor. Acredite nas suas possibilidades, no seu talento, na sua capacidade de promover mudanças e estar sempre fazendo melhor.