José Paulo Q. Carneiro
Rio de Janeiro, RJ

     Introdução

Quando se procuram valores aproximados para a raiz quadrada de um número positivo, em geral se pensa em dar esses valores na forma decimal. Aliás, é assim que eles aparecem em uma calculadora, por exemplo. Isso é equivalente a exigir que o número racional utilizado como aproximação tenha como denominador uma potência de 10. No entanto, os antigos gregos, que nem sequer tinham a notação decimal, sentiam-se satisfeitos com qualquer outro denominador. Quando Arquimedes (287-212 a.C.), em seu notável livro A medida do círculo, aproxima o comprimento da circunferência por meio dos perímetros de polígonos regulares inscritos e circunscritos, usa, sem dar nenhuma explicação, valores aproximados para , tais como 265/153 e 1.351/780. Observamos que   e  .  Os estudiosos têm especulado sobre o método pelo qual os gregos teriam chegado a essas aproximações (ver [6]). À primeira vista, parece que elas provêm das frações contínuas (ver [8] e [3]).

De fato, a fração contínua simples para  ,  ou seja:

(repetindo-se indefinidamente o padrão 1, 2, 1, 2, ...), produz  as  seguintes  aproximações para :

1                               ...

isto é:

1                                              ...

As seis primeiras decimais (não utilizadas naquela época) de cada fração são, respectivamente:

1,000000  2,000000  1,666667  1,750000  1,727273  1,733333  1,731707  1,732143  1,732026  1,732057  1,732049  1,732051 ...

Pode-se observar que as aproximações são alternadamente por falta e por excesso (ver [8]), e que as aproximações usadas por Arquimedes estão nessa lista. Entretanto, é estranho que Arquimedes tivesse em mente essa lista, pois por que teria ele utilizado o 9o e o 12o termos da lista, e não dois consecutivos, como parece mais natural? Além disso, alguns historiadores objetam que a teoria das frações contínuas só teria surgido cerca de 18 séculos depois de Arquimedes, com os italianos Bombelli (1526-1573?) e, principalmente, Cataldi (1548-1626). Essa objeção, porém, não é séria, pois vestígios de uso de frações contínuas aparecem em vários autores da antigüidade, e, além disso, o próprio algoritmo de Euclides (300 a.C.) para o MDC identifica-se essencialmente com a fração contínua para um número racional (ver [9]). contínuas. Um esquema desse tipo para    é mencionado por Thurnbull ([5]), que o chama de “escada de Eudoxo” (matemático ateniense que viveu de 408 a 355 a.C.).

É provável que, já na época de Arquimedes, circulassem listas de aproximações racionais para raízes quadradas, obtidas por diversos métodos. Um desses métodos, que nos parece particularmente atraente, e preserva seu interesse ainda hoje, é o uso de médias. Esse processo já era conhecido pelo matemático grego Herão de Alexandria (100 d.C.), e é atribuído por alguns a Arquitas de Taranto (428-365 a.C.). Mas, na primeira metade do século XX, descobriu-se que ele já era utilizado pelos mesopotâmios (onde hoje é o Iraque), há uns 3500 anos (ver [1]).

 

 

     Médias

Recordemos que, dados dois números positivos a e b, suas médias aritmética  A,  geométrica  G, e harmônica  H  têm as propriedades:

(ii)  

A demonstração dessas propriedades é simples (ver [7]), e as idéias básicas são as seguintes: Como  ,  segue imediatamente que  ,  e que a igualdade só ocorre quando  .  Aplicando-se esse mesmo resultado a    e a   
do cálculo direto. É conveniente observar, para uso na sala de aula, que essas propriedades têm interpretações geométricas muito sugestivas, algumas delas encontradas em [5].

 

     Utilização de médias para aproximar raízes quadradas

Vamos usar esses fatos para calcular, por exemplo, aproximações racionais de . Primeiro, como , temos, pela propriedade (i):

.

Como, pela propriedade (ii), a média geométrica dessas duas novas frações continua sendo igual a , temos:

Aplicando sucessivamente o mesmo procedimento:

,        

(Você observa algum parentesco entre essa lista de aproximações e a anterior, obtida por frações contínuas?)

Em decimais, as aproximações agora obtidas são, aproximadamente:

O último valor já é uma aproximação excepcional, e sua precisão pode ser observada na curiosa desigualdade:

 

     O procedimento geral

Generalizando, o processo consiste no seguinte: dado um número , do qual se quer calcular a raiz quadrada, fatora-se o referido número na forma , com  .  Em seguida, formam-se:

                     

Vamos verificar agora que o processo funciona sempre. Em primeiro lugar, pelas propriedades das médias recordadas no início, tem-se, para todo n:

Além disso:

Isto é, os  são aproximações por falta, cada vez melhores, de , enquanto os  são aproximações por excesso, cada vez melhores, de .

Mais ainda, a seqüência crescente formada pelos  é limitada superiormente por  (e portanto converge a um número c), enquanto a seqüência decrescente formada pelos  é limitada inferiormente por (e portanto converge a um número d), sendo . Porém,

Se , teríamos , o , o que é impossível, com c e d positivos. Logo, .

Conclusão: as seqüências de médias harmônicas e aritméticas obtidas no processo formam aproximações cada vez melhores de , por falta e por excesso, respectivamente, e aproximam-se de  tanto quanto quisermos tomar termos da seqüência em número suficiente.

 

     A precisão do processo

 Podemos analisar agora o erro cometido nas aproximações.

Como , tanto o erro cometido ao tomar a n-ésima aproximação por excesso, isto é, , quanto o erro cometido ao tomar a n-ésima aproximação por falta, isto é, , são menores que  .

   

Sendo u uma aproximação por falta de , tem-se que , de modo que   

Essa desigualdade permite verificar que o erro decresce muito rapidamente, a partir do momento em que seja menor que 1, o que obrigatoriamente termina por ocorrer, já que   tende a zero.

Por exemplo, suponhamos que se queira calcular . Pode-se tomar , de modo que  .  Isso significa que, se, em alguma etapa do processo,  for, digamos, , então, na etapa seguinte, não excederá a , na seguinte a , e assim por diante, o que representa uma convergência muito rápida.

Não é interessante escolher agora a fatoração  , pois as primeiras aproximações serão muito pobres:

 e , com  e , o que é ridículo.

Mas se tomarmos a fatoração , a situação já é muito melhor:

n

0

6

19

13

4,225

1

3,38

0,285610

2

0,264209

0,001745

3

0,001634

0,000000

O último valor, na realidade, não é 0, e sim 0,00000007, aproximadamente, mas em todo caso mostra que as aproximações seguintes (por falta e por excesso) vão coincidir até as seis casas decimais que estamos usando. O leitor poderá comprovar que são iguais a 10,677078, o que corresponde a  com seis decimais exatas.

Como , vê-se que a convergência será tanto mais rápida quanto mais próximos estiverem os dois fatores escolhidos inicialmente. Por fim, deve-se notar que, se o objetivo é obter somente aproximações em decimais, nada impede que sejam utilizados valores iniciais não inteiros. (Aliás, a utilização de fatores não inteiros será essencial quando M for primo, e mais ainda quando M não for inteiro, já que o processo vale para qualquer número real.) Por exemplo, para  pode-se utilizar   e  , o que equivale a  A convergência será bastante rápida:

 

n

0

10

11,4

1,4

1

10,654206

10,700000

0,045794

2

10,677054

10,677103

0,000049

3

10,677078

10,677078

0,000000

 

 

     Comentários e conclusão

Se, na relação de recorrência (1), se levar em conta que HnAn = M , obtém-se:

                           (3)

Ou seja, cada aproximação por excesso obtida durante o processo é a média aritmética entre a aproximação por excesso anterior An  e M/An. De modo inteiramente análogo, o leitor pode comprovar que cada aproximação por falta  Hn+1 é a média harmônica entre a aproximação por falta anterior Hn  e M/Hn. Isso significa que o processo descrito pela fórmula (3) coincide com o conhecido “método de Newton (1642-1727)” (ver [2], [4] e RPM 21, pág.13).

Mais uma vez se constata que, ao estudar a história da Matemática, o professor pode extrair daí não somente episódios curiosos, mas também questões interessantes, que permitam a seus alunos investigar métodos diferentes dos usuais, e igualmente instrutivos.

 

Referências bibliográficas

[1]  BOYER, Carl Boyer. História da Matemática, Editora Edgar Blucher, 1974.

[2]  CARNEIRO, José Paulo Q. Resolução de equações algébricas, Editora Universidade Santa Úrsula – 1998.

[3]  CARNEIRO, José Paulo Q. Um processo finito para a raiz quadrada, RPM 34, 1997.

[4] CARNEIRO, José Paulo Q. Equações algébricas de grau maior que dois: assunto para o Ensino Médio?, RPM 40, 1999.

[5]  HARIK, Seiji. Média harmônica, RPM 32, 1996.

[6]  HEATH, T.L.  The works of Archimedes, Dover, New York, 1897.

[7]  LIMA, Elon Lages. Meu professor de Matemática e outras histórias, SBM, 1993.

[8]  MOREIRA, Carlos Gustavo. Frações contínuas, representações de números e aproximações, Eureka, no 3, 1998.

[9]   OLDS, C.D. Continued fractions, The Mathematical Association of America, 1963.