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Geraldo Ávila
Ao tratarmos de conjuntos em nosso artigo na RPM 43, tocamos em várias questões dos fundamentos da Matemática, mesmo porque, desde o final do século XIX, a Teoria dos Conjuntos e a disciplina “Fundamentos” desenvolveram-se lado a lado, intimamente interligadas. Portanto, em complementação ao que escrevemos sobre conjuntos, é conveniente que falemos mais sobre fundamentos, e esse é o objetivo deste artigo. A preocupação com os fundamentos da Matemática remonta aos gregos da antigüidade. E a obra conhecida como os Elementos de Euclides é a primeira apresentação da Matemática com pretensões - aliás, muito justificadas! - de ser rigorosamente fundamentada. Falemos um pouco sobre Euclides e os Elementos.
Temos muito pouca informação sobre Euclides, que teria vivido por volta do ano 300 a.C. E esse pouco que dele sabemos nos vem dos comentários de Proclus (410-485), um autor que viveu mais de 700 anos depois de Euclides. Mesmo Proclus tem dificuldade em determinar a época em que viveu Euclides. Euclides escreveu várias obras científicas, a mais famosa das quais, conhecida com o nome de Elementos, reúne quase todo o conhecimento matemático daquele tempo. Em parte por causa disso, e também por tratar-se de uma obra de escol, que reunia a maior parte da Matemática então conhecida, as obras anteriores aos Elementos desapareceram. A única exceção são alguns fragmentos atribuídos a Hipócrates de Quio, que viveu no século V a.C. Assim, os Elementos de Euclides são praticamente tudo o que temos da Matemática grega que se desenvolveu desde seu início com Tales de Miletos, que viveu no século VI a.C., até o tempo de Euclides, um período de cerca de 250 anos, aliás, muito pouco tempo para que a Matemática, logicamente organizada, evoluísse do estágio embrionário em que se encontrava com Tales, até o alto grau de sofisticação que transparece nos Elementos. Não sabemos se Euclides escreveu os Elementos para uso no ensino, ou apenas para reunir o conhecimento matemático da época. Naquele tempo não havia a preocupação pedagógica dos dias de hoje, de sorte que Euclides alcançou os dois objetivos; e os Elementos foram muito usados no aprendizado da Matemática por mais de dois milênios. No século XIX já havia outros livros de Geometria, didaticamente mais adequados ao ensino, notadamente o livro de Legendre, que teve muitas edições em várias línguas, inclusive o português. Esse livro foi muito usado nas escolas brasileiras por quase todo o século XIX (veja nosso artigo Legendre e o postulado das paralelas na RPM 22). Um equívoco que se comete com freqüência é pensar que os Elementos são uma obra apenas sobre Geometria. Na verdade, há muito de Aritmética e Álgebra em vários dos livros dos Elementos. O que é verdade - e isso explica, pelo menos em parte, a origem do equívoco - é que a Matemática grega, na época em que Euclides compôs sua obra, era toda ela geometrizada. De fato, a crise dos incomensuráveis (veja nosso artigo na RPM 5) e a genial solução que lhe deu Eudoxo (veja nosso artigo na RPM 7), aliada a uma excessiva preocupação com o rigor, encaminhou toda a Matemática para o lado da Geometria. Isso se tornou tão arraigado que até cerca de 100 anos atrás os matemáticos costumavam ser chamados de “geômetras”. Um outro equívoco não menos freqüente é pensar que os fatos geométricos dos Elementos sejam expressos numericamente como o são para nós hoje. Para exemplificar, enquanto para nós a área de um triângulo é dada por uma fórmula exprimindo metade do produto da base pela altura, para Euclides a área de um triângulo é metade da área do paralelogramo que se obtém com a junção de dois triângulos iguais ao triângulo dado; a área do paralelogramo é igual à área de um retângulo de mesma base e mesma altura, e assim por diante. Para nós, hoje, a área de um círculo é , mas para Arquimedes (287-212 a.C.), que viveu algumas décadas depois de Euclides, a área do círculo é igual à área de um triângulo de base igual ao comprimento da circunferência e altura igual ao raio do círculo. Para nós o volume da esfera é , enquanto o que Arquimedes nos diz é que o volume da esfera está para o volume do cilindro circular reto a ela circunscrito, assim como 2 está para 3; e isso é informação suficiente. Na Matemática grega, antes e durante o período helenístico, não havia fórmulas como as que conhecemos hoje; tudo era dado em termos de proporções, como no caso do volume da esfera que acabamos de mencionar. E isso perdurou no ocidente por mais um milênio após o declínio da civilização helenística.
O volume I de Heath reúne os Livros I e II dos Elementos, o primeiro destes contendo uma boa parte da geometria plana, construções geométricas, teoremas de congruência, áreas de polígonos e o teorema de Pitágoras (que é a Proposição 47). Ainda no volume I de Heath encontra-se o Livro II dos Elementos, sobre o que se costuma chamar de “Álgebra geométrica”. Por exemplo, a Proposição 4 desse Livro II é o equivalente, em linguagem geométrica, da propriedade que hoje conhecemos como “quadrado da soma” (igual ao quadrado do primeiro, mais o quadrado do segundo, mais duas vezes o primeiro vezes o segundo). Euclides enuncia isso geometricamente assim: “se um segmento de reta é dividido em dois, o quadrado construído sobre o segmento inteiro é igual aos quadrados construídos sobre os segmentos parciais e duas vezes o retângulo construído com estes segmentos”. Euclides não fala, mas ele está se referindo a áreas, quando diz “... é igual...”. O volume II de Heath contém os Livros III a IX dos Elementos, tratando do círculo (Livro III), construção de certos polígonos regulares (Livro IV), teoria das proporções de Eudoxo (Livro V), semelhança de figuras (Livro VI) e teoria dos números (Livros VII-IX). Por exemplo, a Proposição 20 do Livro IX é o famoso teorema: “existem infinitos números primos”. Mas Euclides não fala “infinitos”, já que os gregos não admitiam o que Aristóteles chama de “infinito atual”, apenas o chamado “infinito potencial”. Em linguagem de hoje, Euclides diria mais ou menos isso: “Dado qualquer conjunto (finito, entenda-se bem!) de números primos, existe algum número primo fora desse conjunto”. E a demonstração, novamente, é geométrica. Na opinião do matemático inglês Godfrey Harold Hardy (1877-1947), trata-se de uma das mais belas demonstrações da Matemática (veja o artigo de Benedito Freire na RPM 11 e o de Severino de Souza na RPM 19). Finalmente, o volume III de Heath contém os Livros X-XIII, onde são tratados a incomensurabilidade, geometria espacial e os poliedros regulares. O leitor pode ler mais sobre os Elementos no excelente trabalho do Prof. João Bosco Pitombeira sobre essa obra, publicado como volume 5 dos Cadernos da RPM; ou no livro de Asgar Aaboe, intitulado Episódios da História Antiga da Matemática, traduzido e publicado pela SBM.
Foi no início do século VI a.C. que Tales de Mileto inaugurou na Matemática a preocupação demonstrativa. A partir de então a Matemática grega vai assumindo o aspecto de um corpo de proposições logicamente ordenadas: cada proposição é demonstrada a partir de proposições anteriores, essas a partir de outras precedentes, e assim por diante, um processo que não teria fim. Mas os gregos logo perceberam isso e viram que era necessário parar o processo em certas proposições iniciais, consideradas evidentes por si mesmas; a partir dessas, todas as outras são demonstradas. As proposições evidentes por si mesmas são hoje designadas, indiferentemente, “postulados” ou “axiomas”. O aspecto mais importante dos Elementos é essa organização dos fatos, num admirável encadeamento lógico-dedutivo em que um número reduzido de proposições e definições iniciais são o bastante para se demonstrar, uns após os outros, todos os teoremas considerados. Historicamente, os Elementos de Euclides são a primeira corporificação desse “método axiomático”, do qual voltaremos a falar mais adiante.
Embora muito admirado e aplaudido, o modelo axiomático dos Elementos, no que se refere ao quinto postulado, ou postulado das paralelas1, suscitou questionamentos. Já na antigüidade vários matemáticos acreditavam que ele pudesse ser demonstrado com base nos outros postulados e tentaram fazer tal demonstração. Essas tentativas foram retomadas nos tempos modernos pelo matemático italiano Girolamo Saccheri (1667-1733), que publicou, pouco antes de morrer, um opúsculo no qual pretendia ter demonstrado o postulado pelo método de redução ao absurdo. Assim, negando o postulado, ele demonstrou uma série de teoremas, concluindo ter chegado a uma contradição. Mas, no fundo, no fundo, não havia contradição nas conclusões de Saccheri, embora isso só fosse notado muito mais tarde, quando Eugênio Beltrami (1835-1900) descobriu o trabalho de Saccheri. Por volta de 1830 já havia sérias suspeitas de que o postulado das paralelas não pudesse ser demonstrado a partir dos outros. Suspeitava-se que ele fosse independente dos outros quatro, e que se pudesse desenvolver uma geometria a partir de negações do postulado das paralelas, ao lado dos outros postulados de Euclides. Foi nessa época que o matemático húngaro János Bolyai (1802-1860) e o russo Nicokolai Ivanovich Lobachevsky (1792-1856) publicaram, independentemente um do outro, a descoberta de geometrias não-euclidianas, ou seja, geometrias que negam o postulado das paralelas 2. Mas as publicações de Bolyai e Lobachevski não foram suficientes para convencer o mundo matemático da possibilidade das geometrias não-euclidianas. Esses trabalhos eram parecidos com o de Saccheri: negavam o postulado das paralelas e desenvolviam uma série de teoremas sem chegar a contradição alguma. Mas, e daí? Quem garante que a contradição não está para aparecer logo no próximo teorema que ainda não foi demonstrado? Quem garante que todos os teoremas já foram enunciados e demonstrados? Aliás, foi somente após essas questões terem sido levantadas em conexão com as tentativas de construir geometrias não-euclidianas que os matemáticos começaram a perceber que a própria Geometria de Euclides também estava sujeita aos mesmos questionamentos. Quem poderia garantir que os cinco postulados de Euclides não poderiam levar a uma contradição? Afinal, Euclides demonstrara apenas um número finito de teoremas. Quem sabe a contradição apareceria no próximo teorema, como alguém que, depois de tanto percorrer as areias de um deserto à procura de um oásis, quando não mais acredita que ele exista, pode - agora por felicidade e não desdita - encontrá-lo do outro lado da próxima duna!... Foi Beltrami quem primeiro exibiu um modelo de geometria não-euclidiana, que permitia interpretar os fatos dessa geometria em termos da própria geometria euclidiana. Outros modelos foram construídos por Felix Klein (1849-1925) e Henri Poincaré (1854–1912), estes também, como o de Beltrami, apoiando-se na geometria euclidiana.
Foi a partir de então - após esses vários matemáticos haverem exibido modelos euclidianos das geometrias não-euclidianas - que essas geometrias ganharam total credibilidade3. Provava-se que elas eram consistentes, isto é, livres de contradições internas. Mas tais provas apoiavam-se na geometria euclidiana, de sorte que elas tornavam ao mesmo tempo evidente a necessidade de provar a consistência da própria Geometria de Euclides. Os matemáticos começaram então a estudar a consistência dos postulados de Euclides, e logo perceberam que eles eram insuficientes para provar os teoremas conhecidos, sem falar nos demais que viessem a ser considerados no futuro. Analisando os Elementos desse novo ponto de vista, eles descobriram que a axiomática euclidiana era muito incompleta e continha sérias falhas. Euclides, em suas demonstrações, apelava para fatos alheios aos postulados. Era necessário reorganizar a própria geometria euclidiana, suprindo, inclusive, os postulados que estavam faltando. Isso foi feito por vários matemáticos no final do século XIX, dentre eles David Hilbert (1862-1943), que, em 1889, publicou o livro Fundamentos da Geometria, no qual ele faz uma apresentação rigorosa de uma axiomática adequada ao desenvolvimento lógico-dedutivo da geometria euclidiana.
Paralelamente ao que acontecia em Geometria, as preocupações com o rigor se faziam presentes também na Análise Matemática a partir de aproximadamente 1815. Os desenvolvimentos que vinham ocorrendo na Geometria, na Álgebra e na Análise durante todo o século XIX convergiram, no final do século, para uma preocupação com os fundamentos de toda a Matemática. Por duas razões importantes, os matemáticos acabaram se convencendo de que todas as teorias matemáticas teriam de se fundamentar, em última instância, nos números naturais. De um lado, os números complexos, os números reais, os racionais e os inteiros puderam ser construídos, de maneira lógica e consistente, uns após outros, começando nos números naturais. De outro lado, Hilbert estabelecera uma correspondência entre os elementos geométricos do plano - pontos, retas e círculos - com os entes numéricos da geometria analítica. Os pontos podem ser caracterizados por pares ordenados de números reais, e as retas e círculos por suas equações. Isso permitiu reduzir o problema da consistência da Geometria à consistência da Aritmética. Provando-se a consistência desta, ficaria também provada a da Geometria. Assim, a Geometria, que desde a antigüidade era considerada o modelo de rigor lógico, estava agora dependendo da própria Aritmética para sua efetiva fundamentação. Leopold Kronecker (1823-1891) dizia que Deus nos deu os números naturais e que o resto é obra do homem. Com isso ele queria dizer que esses números deveriam ser tomados como o ponto de partida, o fundamento último de toda a Matemática. Não obstante isso, Richard Dedekind (1831-1916) mostrou ser possível construir os números naturais a partir da noção de conjunto, noção essa que seria mais extensamente desenvolvida por Georg Cantor (1845-1918)4. A possibilidade de construir toda a Matemática a partir da teoria dos conjuntos intensificou o interesse por esse campo de estudos. Porém, esses estudos estavam ainda incipientes e os matemáticos já começavam a encontrar sérias contradições internas na teoria (a propósito, veja o artigo que publicamos na RPM 43). Muitas dessas contradições foram resolvidas, até que, em 1931, o lógico austríaco Kurt Gödel (1906-1978) surpreendeu o mundo matemático com a publicação de um trabalho em que demonstrava que o método axiomático tem inevitáveis limitações, que impedem mesmo a possibilidade de construir um sistema axiomático abrangendo a Aritmética. Para bem entender o que isso significa, devemos lembrar que um sistema axiomático deve satisfazer três condições seguintes: ser consistente, quer dizer, os postulados não podem contradizer uns aos outros, por si mesmos ou por suas conseqüências; deve ser completo, no sentido de serem suficientes para provar verdadeiras ou falsas todas as proposições formuladas no contexto da teoria em questão; e, por fim, cada postulado deve ser independente dos demais, no sentido de que não é conseqüência deles, sob pena de ser supérfluo. Pois bem, Gödel prova, dentre outras coisas, que a consistência de qualquer sistema matemático que englobe a Aritmética não pode ser estabelecido pelos princípios lógicos usuais. Isso ele prova como conseqüência deste seu outro resultado, conhecido como o teorema da incompletude: se uma teoria formal abrangendo a Aritmética for consistente, ela necessariamente será incompleta, o que significa dizer que haverá alguma proposição sobre os inteiros que a teoria será incapaz de decidir ser verdadeira ou falsa. Seria errôneo pensar que os estudos de Fundamentos terminam com os resultados de Gödel, ou que esses resultados, pelos seus aspectos negativos, condenam a Matemática a uma posição inferior no contexto do conhecimento humano. O resultado de Gödel certamente mostra que é falsa a expectativa acalentada desde a antigüidade de que o conhecimento matemático, com seu caráter de certeza absoluta, possa ser circunscrito nos limites permitidos por um sistema axiomático. Além de revelar as limitações do método axiomático, os resultados de Gödel mostram, isto sim, que as verdades matemáticas, na sua totalidade, escapam aos figurinos formais dos sistemas axiomáticos.
Hermann Weyl
(1885-1955),
que está entre os maiores matemáticos do século XX, disse, espirituosamente:
Deus existe porque certamente a Matemática é consistente; e o demônio existe
porque somos incapazes de provar essa consistência.
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