O Professor que não Falava

 

O mestre Camargo, professor de Cálculo Diferencial e Integral até o ano de 1963, era na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo “a polêmica em figura”, sendo, portanto, alvo de críticas e de elogios. Uma certeza havia (pelo menos até antes da publicação desta presente crônica): era dificílimo aprender com o mestre ou com sua apostila. Se alguém tentasse estudar por algum outro livro, o mestre não aceitava. Se alguém ousasse simplesmente portar (mesmo sem ler) o livro do Granville, adotado no Mackenzie, era reprovação na certa por desrespeito e desacato ao mestre. Poderia um professor tão dogmático como esse criar algo de revolucionário na didática da Matemática? Pôde, e  vou contar como, pois aconteceu com a minha turma, a formada em 1965.

Estávamos em outubro de 1961 e minhas notas em Cálculo eram, como as da maioria dos alunos, péssimas. Embora eu fosse um bom aluno, adorasse Lógica e discussões e por causa disso devesse ir bem em Cálculo, eu não entendia, não gravava e não ligava as partes, apesar de lutar por estudar na apostila do professor. Pensei até em abandonar a Engenharia, pois algo de grave provavelmente estava acontecendo comigo (e com 90% dos alunos do primeiro ano, diga-se), pois o mestre dizia que para aprender Cálculo bastava saber somar e raciocinar. Como eu sabia somar, eu devia estar despreparado para raciocinar! Como resultado de tudo isso, fui direto para a segunda época em Cálculo, mas completamente desesperançoso de aprender o necessário.

Por norma, todo aluno de segunda época do Prof. Camargo, mesmo indo bem no exame escrito, obrigatoriamente ia para o exame oral (o mestre tinha regras que o Regulamento da Escola não atingia). Nos exames escritos e orais, o Prof. Camargo resumia as indagações a vinte teoremas que cobriam praticamente toda a matéria (lema da Inclusão Sucessiva, teorema de Bolzano Weiestrass, etc.). Quem soubesse os vinte teoremas e suas demonstrações (como na apostila oficial) era vitorioso, mas como entendê-los? Com essa negra perspectiva pela frente, considerei perdidas as férias e talvez uma dependência pela frente, fato que acontecia com mais de 30% dos alunos de todas as turmas. Eis que, para minha surpresa, o auxiliar do Prof. Camargo, o Sr. Covelli (bedel), colocou, no mês de novembro, um aviso no quadro: a segunda época seria em fevereiro do próximo ano, mas se faria a seguinte experiência didática:

      haveria, em janeiro, vinte manhãs de aula com a presença de um professor assistente;

      em cada uma das vinte manhãs seria demonstrado um e somente um dos vinte teoremas;

      o professor assistente estava proibido de falar, cabendo a um aluno previamente escolhido fazer na lousa a demonstração do teorema do dia, cabendo ao professor apenas, no final da aula, fazer um balanço da exposição.

À primeira vista nada de especial, mas o resultado foi inacreditavelmente estupendo. Fui escalado para o terceiro dia, mas estudava a cada dia o teorema do dia seguinte. No primeiro dia o aluno escalado (acho que foi um colega de nome Simão) foi para a lousa, como verdadeiro mártir, demonstrar ou melhor, tentar demonstrar) o primeiro teorema. Simão, como os outros, estudara esse teorema todo o dia anterior, mas só entendera uns 40% da demonstração e o resto literalmente decorara. Lá na frente o pobre do Simão ia tentando fazer a demonstração e o professor assistente no fundo da sala, em silêncio. Com o colega na lousa não havia inibição e, com as dúvidas que tínhamos, cravejávamos o coitado de perguntas. Aí aconteceu o milagre, o surpreendente, o maravilhoso. As dúvidas de uns não eram as dúvidas dos outros e, quando Simão podia, respondia, quando não sabia, sempre havia um outro que conseguira descobrir o ponto obscuro e dava a explicação. Para surpresa geral, no final, o teorema estava entendido, estraçalhado, debulhado. Tão entusiasmado ficou um colega que ao fim da demonstração pediu para ir para o lugar do mártir, que virara pódio de vencedores, e fez um resumo de tudo. Foi uma gargalhada geral, pois todos (ou, se quisermos ser rigorosos, praticamente todos) estavam sabendo tudo do teorema. Ao final, o assistente deu explicações, não mais sobre o teorema (se ele ousasse explicar o que quer que fosse, seria vaiado, pois tudo já estava claro), mas mostrou o porquê de algumas dúvidas que tivéramos até antes do início da aula.

Se na primeira manhã só havia uns vinte alunos (dos quase duzentos para segunda época); na segunda manhã a notícia correra e já havia uns quarenta alunos esperando o segundo milagre, ou seja, não só aprender um teorema do mestre, como dominar o teorema. Essa era literalmente a sensação que eu sentia e que corria por toda a turma. Dia após dia, os vinte teoremas foram sendo, perdoem-me, mas a sensação ainda hoje, trinta anos depois, é essa, desmistificados. Além de nos sentirmos obrigados a estudar antes de nos expormos na frente dos colegas, sinergicamente atuavam também para o sucesso do método:

      o entusiasmo pela competição na qual todos ganhavam;

      a evolução no raciocínio e na formação de cada um pelo treinamento progressivo;

      a entrada no mundo quase incognoscível do raciocínio do mestre.

Terminados os vinte teoremas, lá fomos para os exames. Fui muito bem no exame escrito, mas havia a exigência camargueana do exame oral. Nesse exame o mestre sempre chegava cedo, temendo que algum assistente iniciasse os exames e aprovasse um aluno com o qual ele desejasse fazer um último teste. Conto agora algo pessoal por orgulho, humano orgulho. Eu também chegara cedo na Cidade Universitária e às 8 horas havia poucos alunos e só um ou dois assistentes, além do mestre. Apresentei-me e disse ao catedrático:

– Graças ao método que o senhor criou (elogio é sempre bom), eu sei tudo.

O mestre ficou bastante surpreso com minha irreverência e ousadia, mas, como adorava competições, aceitou o desafio e mandou-me para a lousa, cravejando-me de perguntas. Possivelmente para surpresa dele, eu respondia a tudo com a serenidade dos justos. Tirei nota dez no oral. Outros colegas também, demonstrando a genialidade da descoberta didática. Acho que todos passaram no exame oral sem problemas.

Eu não sei se o mestre percebeu que tinha criado algo inovador, diferente de tudo o que eu tinha visto na faculdade, cursinho ou colégio. Talvez essa experiência didática tenha se perdido. Cumpro meu dever de contar. Embora, no meu modo de ver, o rendimento escolar no Brasil seja baixo, eu diria baixíssimo, já houve um mês na Politécnica onde se adotou um tipo de aprendizado que, em determinadas circunstâncias, pode e deve ser tentado.

 

 
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