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Geraldo
Ávila
Já
faz 40 anos que a noção de conjunto foi introduzida no ensino
fundamental e médio; e trouxe mais malefícios que vantagens. Nos países
desenvolvidos, o ensino de conjuntos começou a diminuir já faz uns 30,
anos, e em nosso país também já se observa um declínio pronunciado
desse ensino, a ponto de haver bons livros de autores competentes que
reduziram muito o ensino de conjuntos. É esse o caso dos livros dos
professores Luiz Márcio Imenes e Marcelo Lellis. Eles só introduzem
conjuntos na oitava série, assim mesmo de maneira prudentemente reduzida. Neste
artigo vamos apresentar tópicos pouco sabidos da teoria dos conjuntos,
mais para informar os mestres além daquilo que ensinam. Já escrevemos um artigo sobre conjuntos e ensino na RPM 4; e, para evitar repetições, sugerimos que o leitor reveja aquele artigo.
Bernhard
Bolzano (1781–1848) foi quem primeiro falou livremente de conjuntos
infinitos em Matemática. Ele escreveu um livro sobre os paradoxos do
infinito, publicado postumamente em 1859, no qual aborda questões de
natureza filosófica e matemática acerca dos conjuntos infinitos.
Richard Dedekind (1831–1916) foi mais longe que Bolzano, usando a noção
de conjunto na construção dos números reais, como já explicamos na RPM
4. Mas foi Georg Cantor (1845–1918) quem mais avançou no estudo dos
conjuntos. Logo no início de um de seus trabalhos sobre os números
transfinitos, ele define conjunto com as seguintes palavras: Por
conjunto entenderemos qualquer coleção numa totalidade
M
de objetos distintos, produtos de nossa intuição ou pensamento. A
rigor, isso não é bem uma definição, pois exige que já saibamos o que
seja “coleção”, vocábulo esse que é sempre tomado como sinônimo
de conjunto. Na verdade, Cantor está apenas explicando, em linguagem
imprecisa que seja, sua percepção do conceito de conjunto, que, diga-se
de passagem, era a única que poderia ocorrer a qualquer matemático de
seu tempo. Veremos que esse conceito, utilizado livremente, pode levar a sérias
contradições.
Na
RPM 4
introduzimos a noção de cardinalidade (ou potência) de um conjunto e
demonstramos que o conjunto dos números naturais e o dos racionais têm a
mesma potência, um fato bastante surpreendente, pelo menos para quem se
inicia nesse estudo. Seria até de se esperar que todos os conjuntos
infinitos tivessem essa mesma potência, caso em que esse conceito nem
teria razão de ser. Lembremos que conjuntos com a mesma potência do
conjunto dos números naturais são chamados conjuntos
enumeráveis. Foi, portanto, uma enorme surpresa a demonstração da não-enumerabilidade
dos números reais feita por Cantor em 1874. Só então, o conceito de potência
adquiriu importância e permitiu que Cantor introduzisse e estudasse os números
transfinitos, que nada mais são do que as potências dos conjuntos
infinitos. Em particular, Cantor mostrou como ordenar os conjuntos segundo
suas potências. Assim, denotando as potências com os mesmos símbolos
com que estamos denotando os conjuntos, podemos escrever
N=P=I=Q<R, onde N, P, I, Q
e
R denotam
os conjuntos dos números naturais, dos pares, dos ímpares, dos racionais
e dos reais, respectivamente. |
Vamos
mostrar agora como Cantor logrou construir toda uma infinidade de números
transfinitos, ou seja, uma infinidade de conjuntos infinitos, todos com
diferentes potências. Primeiro vamos ilustrar a construção no caso de
um conjunto finito bem simples, com apenas três elementos, digamos, o
conjunto
M = {a,b,c}. Vamos
formar o conjunto de todos os subconjuntos de
M.
Denotando, como de costume, o conjunto vazio por
, esses
subconjuntos são os oito conjuntos seguintes:
,
,
,
,
,
,
,
. O
conjunto de todos esses subconjuntos, chamado conjunto das partes de
M,
costuma ser denotado por P(M). Assim,
. Já
observamos que a noção de potência permite ordenar os conjuntos. Assim,
no caso do conjunto M que estamos considerando, temos, em termos de suas potências,
M<P(M). Esse
fato, aqui ilustrado no caso de um conjunto de três elementos, pode ser
facilmente demonstrado para qualquer conjunto finito; e pode ser
demonstrado, sem muita dificuldade, para qualquer conjunto infinito, como
fazemos no Apêndice, resultado esse que também é devido a Cantor.
Vamos
descrever um dos primeiros paradoxos1
da teoria dos conjuntos, surgido com o próprio Cantor. Aceitando a definição
de conjunto dada por Cantor, podemos conceber o conjunto U
de todos os conjuntos. Esse conjunto U
seria, por assim dizer, o conjunto
universal; portanto, teria potência máxima, já que reuniria todos
os conjuntos passíveis de consideração. Em particular, ele teria de ser
um elemento de si mesmo, o que já é, em si, um pouco estranho. Pior que
isso é que, ao considerarmos o conjunto
Dentre
os muitos outros paradoxos que foram sendo descobertos, merece especial
atenção o chamado paradoxo de Russell, que está contido numa carta que
Bertrand Russell (1872–1970) escreveu a Gottlob Frege (1848–1925) em
1902. Frege
recebeu a carta de Russell no momento em que estava para publicar o
segundo volume de uma obra em que fundamentava toda a aritmética na
teoria dos conjuntos. Ele
reagiu com as palavras: “nada mais indesejável para um cientista do que
ver ruir os fundamentos do edifício, justamente no momento em que ele está
sendo concluído. Foi nessa incômoda situação que me encontrei ao
receber uma carta do Sr. Bertrand Russell no momento em que meu trabalho já
estava indo para o prelo”. Para
explicar o paradoxo de Russell, começamos observando que um conjunto pode
ser elemento de outro conjunto, como já vimos atrás, no caso do conjunto
das partes de um dado conjunto. Outro exemplo: uma reta é um conjunto de
pontos; e podemos formar o conjunto das retas de um dado plano, portanto,
um conjunto de conjuntos. |
Pode
um conjunto ser elemento de si mesmo? Consideremos o conjunto de todas as
idéias abstratas. Não é esse conjunto também uma idéia abstrata? Então
ele é um elemento de si mesmo. Outro exemplo: o conjunto de todos os
conjuntos que possuem mais de dois elementos é um elemento de si mesmo,
pois certamente possui mais de dois elementos. Não
se perturbe o leitor se achar muito estranha essa idéia de um conjunto
pertencer a si mesmo. Falamos dela somente porque desejamos, isso sim,
considerar conjuntos que não pertencem a si mesmos, como o conjunto dos números
naturais, dos inteiros, dos divisores de 360, o conjunto dos vértices de
um poliedro, etc. Vamos
considerar o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si
mesmos, e que denotaremos por
M.
Assim, de maneira simbólica e explícita,
M={x/x
x}. Pergunta:
? Não, pois
M
seria um certo
x
tal que
, donde,
pela definição de
M, x
M, isto
é,
Será
então que Estamos
diante de um paradoxo, que surgiu da consideração do conjunto
M
de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos.
Nada
há de errado com o raciocínio que acaba nos levando tanto ao paradoxo de
Cantor como ao de Russell. Se não há nada de errado, como então fomos
chegar a esses paradoxos? Os
paradoxos surgem porque o universo do discurso é muito amplo; e acaba
abarcando essas contradições. O próprio conceito de conjunto, segundo
Cantor, foi originariamente concebido de maneira muito livre, e acabou
levando Cantor, inclusive, a um paradoxo insuperável. Este
exemplo, mostra a que nos leva o uso muito livre da linguagem: um rei
mandou dizer a um condenado que ele morreria na fogueira se suas (do
condenado) últimas palavras encerrassem uma verdade; e morreria na forca
se falasse uma falsidade. O condenado disse: vou morrer na forca. Em
conseqüência, o rei não pôde executá-lo nem na fogueira (se não o
condenado teria dito uma falsidade), nem na forca (se não o condenado
teria falado a verdade). E por que esse impasse? Simplesmente porque a
decisão final depende de algo fluido, aquilo que o condenado ainda vai
falar. Isso não pode ser permitido; o universo do discurso tem de ser
devidamente restrito para não abrigar possíveis contradições ou
impasses. Por
causa dos paradoxos, alguma coisa tinha de ser feita. Foi então que vários
matemáticos cuidaram de formular um sistema de axiomas, a partir dos
quais fosse possível estabelecer os resultados da teoria, libertando-a,
ao mesmo tempo, dos paradoxos que vinham surgindo e de outros mais que
pudessem aparecer. |
Ernst
Zermelo (1871–1953) foi um dos matemáticos que mais sucesso tiveram nesse
empreendimento de axiomatizar devidamente a teoria dos conjuntos. Nascido
em Berlim, Zermelo estudou Matemática, Física e Filosofia nas
universidades de Berlim, Halle e Freiburg. Foi professor em Göttingen e
Zurique. Ainda cedo em sua vida profissional, Zermelo teve de interromper
sua carreira por problemas de saúde e, mais tarde, por problemas com o
regime nazista de Hitler. Embora seus principais trabalhos situem-se na
área de lógica e fundamentos da Matemática, Zermelo também possui
contribuições em Mecânica e Análise Aplicada.
Em suas considerações sobre os paradoxos, notadamente os de Cantor e
Russell, Zermelo percebeu que duas coisas não poderiam coexistir: a
consideração livre de conjuntos, como o conjunto universal, e a
caracterização de um conjunto por uma propriedade de seus elementos. Ora,
essa última condição era muito natural e não deveria ser descartada.
Zermelo optou pela impossibilidade de considerar conjuntos sem nenhuma
restrição, como no caso do conjunto de todos os conjuntos, ou o conjunto
de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos. Ele teve a intuição
de que seria possível considerar conjuntos infinitos, porém, sempre a
partir de algum conjunto preexistente. Assim, de posse do conjunto dos
números naturais
N,
podemos considerar o conjunto dos pares de números naturais
,
com
, a partir dos quais construímos o conjunto dos números
racionais; a partir desse conjunto podemos construir o conjunto dos
números reais, depois o dos números complexos. Conjuntos mais e mais
amplos, em termos de cardinalidade, podem ser formados a partir de
qualquer conjunto
M,
em particular a seqüência crescente
etc.
Foi seguindo essa linha de raciocínio que Zermelo formulou o seguinte
axioma, que veio a ser chamado
axioma da especificação:
Dados um conjunto A e uma propriedade
P(x),
existe um conjunto M cujos elementos são os elementos de A que satisfazem
a propriedade
É interessante observar que estamos, a toda hora, usando esse axioma na
formação de novos conjuntos a partir de um conjunto dado, freqüentemente
sem perceber a interveniência do axioma. Considere, por exemplo, as
afirmações: o conjunto das raízes reais do polinômio
; o conjunto dos triângulos de base
AB
e altura
h;
o conjunto dos coeficientes binomiais de ordem 7.
Em todos esses casos estamos formando conjuntos com a ajuda do
axioma da especificação.
Vários outros axiomas são necessários para construir axiomaticamente a
teoria dos conjuntos. E o conceito de conjunto aparece então como
conceito primitivo, sem definição, em termos de noções precedentes,
sendo delimitado apenas pelos axiomas.
Mas
será mesmo que o axioma da especificação terá exorcizado todo e
qualquer paradoxo da teoria dos conjuntos? Faremos um teste, tentando
construir o conjunto de todos os números naturais que podem ser descritos
com menos de 20 palavras na língua portuguesa. Exemplos de tais números:
o maior divisor primo do número 4056; o número de pessoas registradas no
cartório de Planaltina de Goiás; o número de gols válidos marcados em
partidas jogadas no estádio do Maracanã desde 1950. Todos esses números
estão bem-definidos com menos de 20 palavras da língua portuguesa.
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Seja
M
o conjunto que estamos especificando, isto é,
M
é o conjunto dos números naturais que podem ser descritos com
menos de 20 palavras. Trata-se de um conjunto finito, pois finito é o número
de arranjos de todas as palavras da língua portuguesa em grupos de menos
de 20 palavras; e de todos esses grupos interessa considerar apenas uma
fração, justamente aqueles grupos que resultam em definições
significativas de números naturais. Portanto, o complementar
de
M
é um subconjunto infinito do conjunto dos números naturais; e,
como tal, possui um menor elemento. Seja
m esse
menor elemento
de
. O
que é m?
Resposta: m é
o menor número natural que não pode ser descrito com menos de 20
palavras da língua portuguesa. Ora, acabamos de escrever
m com
apenas 19 palavras! Como
se vê, estamos diante de um novo paradoxo (o paradoxo de Richard),
resultante da construção de um conjunto com o axioma da especificação.
Como podemos evitar mais esse paradoxo da teoria?
O
paradoxo anterior nos põe diante de um problema sério, que é a
linguagem que usamos para nos comunicar. Ora, a linguagem, por mais
correta que seja, contém muitas imprecisões e ambigüidades. Vejamos
alguns exemplos: A
testemunha forneceu informações aos membros da CPI que poderão ajudar
na descoberta do esquema de corrupção. O que ou quem vai ajudar, as
informações ou os membros da CPI? O
importante na Matemática são as idéias, não a notação e o
formalismo, como pensam muitos professores. O que pensam os professores,
que o importante são as idéias ou a notação e o formalismo? A
diretoria pediu que o professor comunicasse aos alunos sua alegria pelo
progresso que eles vinham fazendo nos estudos. Alegria da diretoria ou do
professor? A
oposição acha que o governo está dividido e quer impedir a votação da
matéria. Quem quer impedir, a oposição ou o governo? Todas
essas frases são perfeitamente normais na linguagem corrente; nada de
errado com elas, embora não resistam às demandas do rigor lógico. E não
é por isso que vão deixar de ser usadas. Pelo contrário, às vezes até
certas omissões no uso da linguagem são necessárias para valorizar um
trecho escrito ou falado. Isso é freqüente em obras literárias, prosa
ou poesia. E, mesmo quando se conta uma anedota, é comum usar de meias
palavras ou omitir alguma coisa, para deixar à esperteza do ouvinte uma
parte na interpretação do resultado final. Kurt
Gödel (1906–1978), um dos maiores lógicos do século XX, disse certa
vez: |
“Quanto
mais reflito sobre a linguagem, tanto mais me admiro que as pessoas
consigam se entender umas com as outras.”
A
conclusão é simples: a linguagem corrente não atende às exigências do
rigor lógico. Alguma coisa tinha de ser feita para evitar paradoxos como
o último que mencionamos atrás. Isso aconteceu em 1922, quando dois
matemáticos, Fraenkel e Skolem, propuseram que a linguagem corrente fosse
completamente banida da Matemática e substituída por uma linguagem
formal, construída com poucos símbolos e as regras de sintaxe necessários
para se conduzir o raciocínio dedutivo. Os símbolos incluem os
conhecidos símbolos matemáticos, como os sinais de adição, subtração,
igualdade, etc., além de outros, como
(significando implica),
(significando existe),
(significando para todo), (significando pertence), os sinais de parênteses, símbolos para as variáveis, etc. Por
exemplo, lidando com o conjunto dos números naturais N, quando escrevemos
,
. A
propriedade que utilizamos acima para definir um conjunto, qual seja,
conjunto de todos os números naturais que podem ser descritos com menos
de 20 palavras na língua portuguesa, não é passível de ser expressa em
linguagem formal; portanto, está excluída de considerações matemáticas.
E desde a proposta de Fraenkel e Skolem, em 1922, ninguém conseguiu ainda
formular uma propriedade em linguagem formal que conduzisse a algum
paradoxo.
Dissemos
acima que a linguagem corrente ficaria banida do universo matemático,
sendo permitida apenas a linguagem formal. Isso apenas em tese. A importância
da linguagem formal é a de ser um instrumento para estudar a consistência
das teorias matemáticas, não para ser usada no dia-a-dia do matemático.
Nem os lógicos que estudam os fundamentos da Matemática insistem no
desatino de fazer tudo em linguagem formal; nem isso é possível! No mais
das vezes é difícil, ou mesmo uma tarefa hercúlea, traduzir o enunciado
de um teorema em linguagem formal. Não
se perturbe, pois, o professor, com seu hábito de usar linguagem corrente
em Matemática; não há razão alguma para trocá-la por linguagem
formal. Mas
também não perturbe seus alunos com exemplos de conjuntos que podem
causar dificuldades também a você, professor. Não queira, pois, falar
no conjunto dos fios da barba do imperador D. Pedro II, pois não há como
saber, ao certo, onde termina a barba e onde começam os fios do pescoço...
ou os cabelos da cabeça! E esse conjunto seria aquele de quando o
imperador tinha 23 anos de idade? Ou 47? No dia do aniversário? Ou três
meses depois? Afinal, por que perturbar seus alunos com essas coisas que não
têm nada a ver com a Matemática?... Também não queira falar no
conjunto dos dígitos que aparecem infinitas vezes na expansão decimal de
; você
não tem nem como saber se 3 está ou não nesse conjunto, como pode então
saber se isso é mesmo um conjunto? |
Teorema:
Qualquer que seja o conjunto
M,
sua potência é sempre menor do que a potência de
, isto
é,
. Demonstração:
A aplicação
é
injetiva; portanto, prova que
. Para
provar que efetivamente
, seja
uma
aplicação qualquer de
M
em
, onde
é
o subconjunto de
M, que
é a imagem de
m pela referida aplicação.
Em seguida consideramos o conjunto
, que
é um subconjunto de
M,
podendo mesmo ser o conjunto vazio. Vamos
mostrar que ele difere de qualquer
, com
m variando
em M.
De fato, qualquer que seja
, B
e
diferem
pelo elemento
m,
pois
e
. Sendo
B
diferente de todo
, com
m
variando em
M,
vemos que não existe aplicação de
M
sobre
, muito
menos biunívoca (ou bijetora). Concluímos, pois, que
, como
queríamos provar.
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