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Ana
Catarina P. Hellmeister
Estamos
no ano 2000 e uma pergunta que tenho ouvido com freqüência é: como será
que era determinada coisa (a medicina, o teatro, a literatura, o ensino,
...) no ano 1000? Vamos
tentar dar alguma idéia de como era o ensino de Matemática, que afinal
é o que nos interessa, no ano 1000 e pouco antes dele. Obviamente, este
artigo não é, nem de longe, um texto completo sobre o ensino de Matemática
na Idade Média, tem apenas a intenção de mostrar alguns de seus
aspectos interessantes.
Vamos
começar, talvez por feminismo, apresentando Rosvita,
uma monja beneditina do convento de Gandersheim, norte de Göttingen,
Alemanha, que viveu aproximadamente de 935 a 1002, e é considerada a
primeira poetisa da literatura alemã. Ela nasceu, muito provavelmente, em
uma família aristocrata e há registros de que seu nome aparece numa
gravura esculpida em madeira como Helena von Rossow. Rosvita
ingressou muito jovem no convento de Gandersheim, famoso centro de
estudos, onde seu extraordinário talento encontrou abrigo e cultivo
criterioso. Inicialmente Rosvita foi orientada por um professor e
posteriormente ficou sob a supervisão de uma sobrinha de Otto I (monarca
da época) de nome Gerberg, considerada a mulher modelo de seu tempo.
Gerberg, que foi abadessa do convento entre 959 e 1001, tinha um interesse
especial pela obra poética de Rosvita, a qual, segundo a abadessa,
“contribuiria para o engrandecimento da glória de Deus”.
Antes
de comentar a peça em particular, para melhor ligar Rosvita à Matemática,
vamos transcrever um trecho do livro Cuentos
y cuentas de los matematicos, de Rodriguez Vidal, R. e Rodriguez
Rigual, M. C. Editorial Reverte, 1986, pág. 137.
“[...]A
idade média na Europa não islâmica limita seus conhecimentos de Matemática
aos textos comentados de Alexandria e Bizâncio, sem que apareçam indícios
de criação original. Desta época são os escritos de Rosvita, monja de
um convento alemão, do século X, mais interessantes como literatura e
filosofia do que como Matemática. Entretanto demonstram bom conhecimento
da Arithmetica de Boécio e
aludem a questões relativas a números deficientes e perfeitos, citando o
6, 28, 496 e 8128, que eram os números perfeitos conhecidos na sua época.
O número perfeito seguinte é 33 550 336 [...].” Há
divergências entre os historiadores sobre se as peças teatrais escritas
por Rosvita eram mesmo encenadas ou se seriam meros textos didáticos, nada
tendo a ver com o teatro. Lembrando que o ensino na Idade Média era ministrado
quase que exclusivamente nos mosteiros, sem dúvida, encenados ou não, os
textos de Rosvita tinham claros propósitos didáticos, como é possível
perceber em Sabedoria, que
passamos a transcrever de [3].
Paixão
das santas virgens Fé, Esperança e Caridade. Foram levadas à morte pelos
diversos suplícios a que as submeteu o imperador Adriano em presença da
sua santa mãe, Sabedoria, que, com seus maternos conselhos, as exortou a
suportar os sofrimentos. Consumado
o martírio, sua santa mãe, Sabedoria, tomou de seus corpos e, ungindo-os
com bálsamo, deu-lhes sepultura de honra a três milhas de Roma. Ela, por
sua vez, no quarto dia, após a oração sacra, enviou também seu espírito
ao céu. Vamos
transcrever apenas o trecho da peça que traz a lição de Matemática. Trata-se
de um diálogo entre Sabedoria e o imperador Adriano: Adriano:
Dize, que vieste fazer entre nós? Sabedoria:
Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da verdade para o
aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar minhas filhas
a Cristo. Adriano:
Dize os nomes delas. Sabedoria:
A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade. Adriano:
Quantos anos têm? Sabedoria:
(sussurrando) Agrada-vos, ó filhas, que perturbe com problema aritmético
a este tolo? Fé:
Claro, mamãe. Porque nós também ouviremos de bom grado. Sabedoria:
Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade
um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número
deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas
imparmente par. Adriano:
Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são! Sabedoria:
Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não
uma única resposta. Adriano:
Explica de modo mais claro, senão não entendo. Sabedoria:
Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança, 2 lustros; Fé, 3 olimpíadas. Adriano:
E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros, são
números deficientes? E por que o 12 que completa 3 olimpíadas se diz número
excedente? Sabedoria:
Porque todo número cuja
soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor que esse número
chama-se deficiente, como é o caso do 8. Pois os divisores de 8 são: sua
metade – 4, sua quarta parte – 2, e sua oitava parte – 1; que
somados dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5; sua quinta parte é
2; e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é, portanto, 8, que é
menor que 10. Já o contrário se diz número excedente, como é o caso do
12. Pois sua metade é 6; sua terça parte, 4; a quarta parte, 3; a sexta
parte, 2; e a duodécima parte, 1. Somadas as partes dão 16. Quando
porém o número não é maior nem menor que a soma de suas diversas
partes, então esse número é chamado número perfeito. É
o caso do 6, cujas partes – 3, 2 e 1 – somadas dão o próprio 6. Do
mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos. Adriano:
E quanto aos outros números? Sabedoria:
São todos excedentes ou deficientes. Adriano:
E o que é um número parmente par? Sabedoria:
É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas
iguais, e assim por diante até que não se possa mais dividir por 2
porque se atingiu o 1 indivisível. 8 e 16, por exemplo, e todos que se
obtenham a partir da multiplicação por 2 são parmente pares. Adriano:
E o que é parmente ímpar? Sabedoria:
É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não
admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm
multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número
anterior, porque, naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível;
neste, só o termo maior é apto para a divisão. Adriano:
Não sei o que é isto de denominação e quantidade. Sabedoria:
Quando os números estão em “boa ordem”, o primeiro se diz menor e o
último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, denominação é
quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte, é o que
chamamos quantidade. Adriano:
E o que é imparmente par? Sabedoria:
É o que – tal como o parmente par – pode ser dividido não só uma
vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a
indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1. Adriano:
Oh! Que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas
menininhas!
Sabedoria:
Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável
do Artífice do mundo: pois não só no princípio criou o mundo do nada,
dispondo tudo com número, peso e medida; como também nos deu a
capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais
até mesmo sobre o suceder-se do tempo e das idades dos homens. Observem
que os números parmente pares são as nossas potências de 2, os parmente
ímpares são aqueles que são o dobro de um ímpar; os imparmente pares são
os produtos de um ímpar por um parmente par. Denominação e quantidade são
os atuais quociente e divisor. Uma
fala de Sabedoria que também chama atenção é sua afirmativa de que
todos os números, além de 6, 28, 496 e 8128, são excedentes ou
deficientes. Isso mostra o desconhecimento, por parte dos estudiosos da época
da obra os Elementos de
Euclides, que contém, no livro IX, a demonstração de que qualquer número
da forma
é perfeito se
for primo. Com esse
resultado, já para
, obtém-se
o próximo perfeito que é o número 33 550 336. Essa perda
de contato com os ensinamentos de Euclides ficará bastante evidente nos
problemas de geometria da seção a seguir.
Ainda
para mostrar que na Idade Média se entendia de ensino de Matemática,
voltemos um pouco no tempo mudando o século e os personagens. É
extremamente interessante a seleção de Problemas
para aguçar a inteligência dos jovens, encontrada em Patrologiae
cursus completus, séries latina,
atribuída a Beda, qualificado de O
Venerável, que nasceu e viveu na Inglaterra entre
673 e 735, tornando-se
um dos maiores professores das escolas religiosas medievais. As soluções
apresentadas também estão em Patrologiae
cursus completus, séries latina
(ver [3]) e são algumas atribuídas a Beda e outras a Alcuíno (séculos
VIII-IX). Os
enunciados dos problemas traduzem bem a cultura popular da época, com a
pouca Matemática que se conhecia apresentada e ensinada de modo atraente
e bem-humorado, privilegiando o desenvolvimento da inteligência dos
alunos, como pretendemos fazer hoje. Também já contemplavam a idéia
hoje muito difundida de usar situações do cotidiano como motivadores do
aprendizado. Vejamos,
então, alguns dos problemas da seleção de Beda, encontrados em [3], que
certamente surpreenderão muitos dos leitores que acreditam que certos
problemas e soluções são de épocas mais recentes. 1.
Problema
do lobo, da cabra e da couve:
Certo homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma
cabra e um maço de couves. E não pôde encontrar outra embarcação, a não
ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido
ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem puder, como fez ele a
travessia?
Solução:
Não apresentamos a solução por ser bem conhecida, pois esse problema é
proposto até hoje em diferentes versões. O surpreendente é que seja tão
antigo. 2.
Problema do boi: Um
boi que está arando todo o dia, quantas pegadas deixa ao fazer o último
sulco?
Solução: Nenhuma em absoluto. Pois o boi precede o arado e o arado segue o
boi; e, assim, todas as pegadas que o boi faz na terra trabalhada, o arado
as apaga. E, deste modo, não se encontrará no último sulco nenhuma pegada. 3.
Problema
da escada de 100 degraus:
Numa escada de 100 degraus, no 1o degrau está pousada 1
pomba; no 2o, 2; no 3o, 3; no 4o,
4; no 5o, 5; e assim em todos os degraus até o 100o.
Diga, quem puder, quantas pombas há no total?
Solução:
Calcule-se assim: tome a pomba do 1o degrau e some-a às
99 do 99o, o que dá 100. Do mesmo modo, as do 2o
com as do 98o somam 100. E assim degrau por degrau,
juntando sempre um de cima com o correspondente de baixo, e obterá sempre
100. Some-se tudo junto com as 50 do 50o degrau e as 100
do 100o degrau que ficaram de fora, e obter-se-á 5 050.
Reconhecem
aqui os leitores a famosa solução de Gauss, aos sete anos de idade,
respondendo ao problema de somar 1
+ 2 + ... + 100? 4.
Problema
dos dois caminhantes que viram cegonhas:
Dois homens andando pelo caminho viram cegonhas e disseram entre si:
Quantas são? E, contando-as, disseram: Se
fossem outras tantas, e ainda
outras tantas; e, se somasse metade de um terço do que deu e ainda se
acrescentassem mais duas, seriam 100. Diga, quem puder, quantas cegonhas
foram vistas por eles inicialmente?
Solução:
28. Pois 28 com 28 e 28 dá 84. Metade de um terço, 14, que somado com
84, dá 98, que, acrescido de 2, resulta 100. 5.
Problema do comprador:
Disse certo negociante: Quero com 100 denários comprar 100 suínos; mas
cada porco custa 10 denários, cada leitoa, 5, e cada 2 porquinhos, 1 denário.
Diga, quem entendeu, quantos porcos, leitoas e porquinhos devem ser
comprados para que o preço seja exatamente 100 denários, nem mais nem
menos? Solução:
9 leitoas e 1 porco custam 55 denários e 80 porquinhos, 40. Já temos 90
suínos por 95 denários. Com os restantes 5 denários compram-se 10
porquinhos. 6.
Problema
da tela: Tenho uma
tela de 100 cúbitos de comprimento e de 80 de largura. Quero daí fazer
telinhas de 5 por 4. Diga pois, ó sabido, quantas telinhas podem-se
fazer?
Solução:
De 400, 5 é a octogésima parte e 4, a centésima parte. Seja 80
multiplicado por 5, ou 100 por 4, sempre encontrará 400. Problemas
como o 4,
5 ou
6 eram resolvidos sem equações, incógnitas, etc., recursos
desconhecidos na época, mas por processos de tentativa. É interessante
observar que esse procedimento medieval é bastante recomendado pelos
educadores de hoje para incentivar o raciocínio e a criatividade dos
estudantes. O
problema a seguir mostra que as soluções obtidas por tentativa nem
sempre eram completas, deixando de lado alternativas válidas. 7.
Solução:
11 vezes 3 dá 33; 15 vezes 2, 30; 74 vezes meio, 37. 11 vezes mais 15
mais 74 é 100; e, do mesmo modo, 33 mais 30 mais 37.
Hoje,
usando equações e incógnitas, faríamos:
Os
problemas 8 e 9 a seguir mostram, em suas soluções incorretas, as deficiências
da época em questões de geometria, denunciando o desconhecimento dos
resultados da escola grega. 8.
Problema
do campo triangular:
Um campo triangular mede de um lado 30 pérticas, de outro também 30 e de
frente 18. Diga, quem puder, quantos aripenos [um aripeno eqüivale a 144
“pérticas quadradas”] compreende?
Solução:
Os dois lados de 30 somados perfazem 60, cuja metade é 30 que
multiplicado por 9 (que é a metade de 18) dá 270 (que é o cálculo da
área em “pérticas quadradas”). Para expressar a área em aripenos é
necessário dividir por 144, etc. Observem
que no cálculo da área do triângulo a medida da altura relativa a um
dos lados era substituída erroneamente pela média das medidas dos outros
dois lados. 9.
Problema
do campo circular:
Quantos aripenos tem um campo circular de 400 pérticas de circunferência.
Solução:
A quarta parte de 400 é 100; 100 multiplicado por 100 dá 10 000, que é
a área. Para expressar em aripenos, divide-se por 144, etc.
por
4, que é bastante
grosseira. Os
progressos nos textos geométricos, na Idade Média, só se iniciaram com
Gerberto (950-1003) mas aí já é uma outra história... Referências
bibliográficas:
[1]
Eves, H. E. An introduction of the
History of Mathematics. New York: Holt, Rinchart and Winston, Inc. [2] Boyer, C. B. História da Matemática.
São Paulo: Editora Edgar Blucher, 1996. [3] Lauand, L. J. Educação, teatro e
Matemática Medievais. São Paulo: Editora Perspectiva., 1986. [4]
Internet:
The Catholic Enciclopedia – Hroswitha.
Roswitha
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2/2 by Julio Gonzalez Cabillon
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