Gilda de La Rocque Palis
PUC – Rio

     1.  Introdução

O uso de computadores tem sido considerado um importante catalisador de mudanças positivas no processo de ensino/aprendizagem de Matemática, mas quase sempre levanta duas questões: o que usar e como usar. Este artigo enfatiza aspectos do “como usar”.

Em geral, para que as atividades com computador constituam realmente momentos de aprendizagem, a forma de implementação dessas atividades é mais importante do que a tecnologia. Através de alguns comentários sobre o software Dividir para Conquistar (Divide & Conquer)[1] pretendemos discutir um pouco essa questão.

 

     Sobre o programa Dividir para Conquistar  (Divide & Conquer) [2]

O programa explora o algoritmo da divisão de dois inteiros positivos. Dados dois inteiros positivos  a  e  b,  existem dois inteiros positivos  q  e  r  tais que  a = bq + r, 0 r < b.  Além disso,  q  e  r  são univocamente determinados por  a  e  b.

Pressupõe-se que o usuário saiba efetuar divisões achando o quociente e o resto. Os problemas propostos pelo programa D&C consistem em decodificar dez letras do alfabeto que representam os algarismos de 0 a 9. A decodificação pode ser feita através do exame de “divisões com resto” calculadas pelo programa.

O usuário pode optar entre oito níveis de dificuldade. No nível mais elementar, ao iniciar uma atividade o programa atribui um valor ao Dividendo (um número com dois dígitos numéricos) e mostra na tela as dez letras que devem ser decodificadas. A figura abaixo exibe a tela do computador ao início de uma sessão na qual o Dividendo escolhido pelo programa é  53  e as  letras a decodificar são  R, Q, F, G, E, I, U, T, V e Z.

O usuário pode então atribuir valores ao Divisor (um número com até três dígitos numéricos ou alfabéticos) e o programa fornece, em código, para cada Dividendo e Divisor, o respectivo quociente e resto. Por exemplo, se o Divisor escolhido foi  2, o programa responde:

 

Dividend

Divisor

 

Quotient

Remainder

53

2

=

FG

R

O usuário efetua a conta  53 2, encontra o quociente 26 e o resto 1 e conclui que  ,    e  .

À medida que as letras são decodificadas, os resultados podem ser digitados abaixo delas. A figura ao lado mostra a tela do computador nessa etapa. A atividade prossegue, podendo o usuário atribuir outros valores ao Divisor, bem como solicitar ao programa a seleção de outro Dividendo.

A atividade termina com a decodificação de todas as dez letras. A figura seguinte mostra as respostas do programa e as letras decodificadas para uma possível atribuição de valores ao Divisor (2, 8, 4, Q e I).

As informações obtidas permitem decodificar todas as letras. Se não, vejamos:

Se  53 8 = G   resto  E,  como já sabemos que  G = 6 ,  concluímos que E = 5 .

Como  53 4 = RU   resto  R  e já sabemos que  R = 1 ,  então  U = 3 .

Se    resto  Z,  temos que  53 Q = 5   resto  Z,  pois já sabemos que  E = 5 . Portanto, Q = 9    e  Z = 8 .

E como  53 I = I   resto  T,  então  I = 7   e T =  4 .

Finalmente,  V = 0,  pois  V  é a única letra que falta decodificar e só não conhecemos a letra correspondente ao algarismo  0.

No nível mais avançado, o Dividendo é um número com três dígitos dados por letras. Quando o usuário atribui um valor ao Divisor (um número com dois dígitos, exceto 10), o programa somente fornece o valor numérico do resto da divisão; não há informação sobre o quociente.

Se no início de uma sessão no nível mais avançado o Dividendo é KXZ e as letras a serem decodificadas são V, D, X, Z, W, S, L, J, K e Y , a tabela a seguir exibe uma lista de divisões com resto, calculadas pelo programa após a atribuição de valores ao Divisor. O primeiro Dividendo foi fornecido pelo programa no início da sessão. Os outros Dividendos foram selecionados pelo programa a partir de solicitações do usuário.

 

Dividendo

Divisor

Quociente

Resto

KXZ

2

?

0

KXZ

5

?

0

KXZ

99

?

56

JZX

99

?

13

JJV

2

?

1

JJV

5

?

1

VXL

2

?

1

VXL

5

?

4

XSJ

99

?

83

DDJ

99

?

52

DXY

2

?

0

Essa seqüência de divisões com resto permite decifrar todas as letras:

A primeira linha,  KXZ 2 = ?   resto  0,  nos diz que  Z  é par. A terceira linha, KXZ 5 = ?  resto 0, nos diz que  Z = 0   ou  5.  Como Z é par, então Z = 0.

A partir da  divisão constante  da terceira  linha, KXZ 99 = ?   resto 56,    podemos  dizer que KX0 = n x 99 + 56, sendo n um inteiro entre 0 e 9. Examinando o algarismo das unidades para todas essas possibilidades para  n, vemos que n só  pode  ser  igual  a  6,  e  assim  KX0 = 6 x 99 + 56 = 650. Daí,  K = 6 e X = 5.

Se JZX 99 = ?  resto 13, então J05 = n x 99 + 13. O mesmo tipo de argumento anterior nos leva a n = 8 como única possibilidade para  n.  E assim J05 = 8 x 99 + 13 = 805. Logo, J = 8.

A partir da divisão seguinte JJV 2 = ? resto 1, temos que V é ímpar. Como X = 5 V = 1,3,7 ou 9.

No entanto, a partir da divisão JJV 5 = ? resto 1, vemos que V = 1 ou 6.

Portanto, V = 1.

Se  VXL 2 = ?  resto  1,  então  L  é ímpar. E, como  VXL 5 = ?  resto 4, então  L = 4  ou  9.  Logo,  L = 9.

A divisão seguinte  XSJ 99 = ?  resto 83, ou seja,  5S8 99 = ?  resto  83 permite escrever que  5S8 = n x 99 + 83  para n inteiro. A única possibilidade para  n  é  5.  Daí,  5S8 = 5 x 99 + 83 = 578. E S = 7.

Como  DDJ 99 = ?  resto  52,  então, de maneira análoga, temos que  DD8 = n x 99 + 52.  Então,  n = 4   e  DD8 = 4 x 99 + 52= 448  e  D = 4.

A última divisão  DXY 2 = ?  resto  0  informa que  Y  é par. Como só restam duas letras a identificar,  Y  e  W,  e dois números,  2  e  3,  temos que    Y = 2  e  W = 3.

O programa oferece outras facilidades que podem ajudar a decifrar as letras. O usuário pode testar hipóteses relativas aos valores das letras (ou seqüências de letras) que já apareceram na tela através de quatro perguntas. Por exemplo, com relação à letra  A  pode-se fazer ao programa perguntas:  A é par?  A é ímpar?  A > M?  A < M?  ( 0 M 999). O programa responde com falso ou verdadeiro.

O D & C permite então que o usuário estabeleça um diálogo com o computador, levantando questões, refletindo sobre as relações numéricas obtidas, organizando as informações obtidas de forma a reduzir as possibilidades de valores para as incógnitas, formulando e testando hipóteses até chegar à decodificação de todas as letras, eventualmente generalizando fatos numéricos. Em princípio, o programa visa o trabalho com o algoritmo da divisão, notação decimal posicional, fatores, múltiplos, resto e incógnitas num ambiente de resolução de problemas.

O texto do manual que acompanha a versão americana do programa, obtida através da Sunburst, diz que o software está fundamentado na premissa de que a maioria das crianças pode descobrir idéias matemáticas em circunstâncias apropriadas. O papel do professor muda no novo ambiente, e ele pode então encorajar a reflexão por parte dos alunos, procurar esclarecer seus raciocínios sem sugerir respostas e encorajar o desenvolvimento de linhas de pensamento produtivas no sentido de possibilitar a descoberta, pelos próprios alunos, de relações numéricas específicas, úteis à tarefa de decodificação proposta. Dentre elas:

1.       O produto de um Divisor e um Quociente, mais um Resto, produz o Dividendo.

2.       Em todos os casos de divisão com resto, o Resto deve ser menor do que o Divisor.

3.     Quando o Dividendo tem dois dígitos e o Divisor é 10, então o primeiro dígito do Dividendo é o Quociente e o segundo dígito do Dividendo  é  o Resto.  Por  exemplo,  se MU 10 7 resto U, então M = 7. E se MU 10 M  resto 3, então U = 3.

4.   Se o Dividendo tem dois dígitos, o Divisor tem um dígito e o Quociente é 10, então o primeiro dígito do Dividendo é o Divisor. Por exemplo, se  MU 6 10  resto U,  então  M = 6.

5.      Quando o Divisor é 1, então o Quociente é igual ao Dividendo e o Resto é 0.

6.      Quando o Dividendo é igual ao Divisor, então o Quociente é 1 e o Resto é 0.

7.     Se o Divisor é maior do que o Dividendo, então o Quociente  é  0 e o Resto é igual ao Dividendo.

O autor do manual acrescenta que esse conjunto de relações numéricas, que os alunos podem descobrir ao longo do trabalho com o D & C, pode ser usado pelo professor no processo de guiá-los na direção delas.

Essas sugestões estão corroboradas em pesquisas realizadas pelo  autor[3] do software e colaboradores. O manual contém inclusive alguns trechos de transcrições de diálogos entre crianças e um entrevistador, em situações de pesquisa nas quais os alunos trabalhavam com o D & C.

Vale observar que uma implementação do tipo de trabalho acima sugerido requer do professor pelo menos uma preparação prévia abrangendo não somente os aspectos matemáticos do tópico específico e familiaridade com o software, mas também um certo domínio de ensino e aprendizagem no nível reflexivo.[4]

Diferentes professores podem encarar as potencialidades e sugerir usos do D & C bastante diferentes da preconizada pelo seu autor. Em um curso para professores na PUC-Rio, no qual os participantes trabalharam com o D & C, opiniões bem distintas sobre esse programa foram expressas por alguns de seus participantes. [5]

Um deles escreveu: “O software não é nada interessante, pois os alunos não raciocinam em algumas partes, pode-se tentar acertar através de adivinhações”.

E outro observou: “ É preciso ter cuidado para o software não ser um jogo só de sorte”.

De fato, para que os objetivos do trabalho com esse tipo de software sejam alcançados é necessário que o contrato didático entre o professor e os alunos esteja bem estabelecido pois a atividade pode resvalar com facilidade para uma série de tentativas aleatórias, na qual o usuário entra com palpites para o valor das letras digitando-os abaixo delas. Quando o palpite está incorreto, o programa não aceita o valor digitado.

O usuário também pode utilizar  uma estratégia de busca binária para decodificar as letras, a qual, apesar de muito interessante, não envolve nenhuma reflexão sobre o algoritmo da divisão e fatos numéricos que se deseje institucionalizar a partir das tentativas e informações obtidas pelos alunos.

W  <  5

Verdadeiro

W  <  2

Falso

W  <  3

Verdadeiro

K  <  5

Verdadeiro

K  <  2

Falso

K  <  3

Falso

K é par

Falso

P é par

Falso

P  <  5

Falso

P  <  7

Verdadeiro

Por exemplo, dado o Dividendo PWK, o aluno pode descobrir os algarismos P, W e K através de uma busca binária, a partir das respostas que obtém (que constam da coluna da direita da tabela, ao fazer ao programa as perguntas da coluna da esquerda da mesma tabela.

A partir das informações ao lado não é difícil concluir que PWK = 523.


Um outro participante escreveu:

“O programa não ensina os conceitos de divisão. O aluno já precisa conhecer o funcionamento de uma divisão. Com o programa ele apenas confirma se está sabendo dividir. Entretanto o programa pode servir para desenvolver o raciocínio lógico”.

Esse mesmo professor salientou a necessidade de pedir ao aluno que decodifique as letras somente usando informações obtidas através dos resultados de divisões com resto fornecidas pelo software.

Como o professor é o principal agente catalisador de mudanças educacionais, podemos concluir que é de suma importância que o professor reflita sobre o uso de computadores como ferramenta auxiliar de ensino a fim de não ser inadvertidamente mobilizado por expectativas sem fundamento nem desperdiçar possibilidades valiosas de melhorar a qualidade do aprendizado de seus alunos.

 

Gilda de La Rocque Palis é doutora em Matemática pelo IMPA e professora associada do Departamento de Matemática da PUC – Ri o.


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[1] Este programa da Sunburst Communications (http://www.SUNBURSTonline.com) é comercializado no Brasil pela Educare Informática  (www.educareinfo.com.br).

[2]  Desenhado pelo Dr. D. Carraher.

[3]  Carraher, D.W. “Understanding the Division Algorithm from New Perspectives.”In: G. Booker, P. Cobb & T. Mendicutti (eds.). Proceedings of the XIV Annual Meeting of the International Association for the Psychology of Mathematics Education, pp. 215-222. Mexico: International Group for the Psychology of Mathematics Education, 1990.

[4] Para uma discussão acessível sobre esse tema ver Bigge, M.L. Teorias da Aprendizagem para professores. E.P.U.

[5]  Transcrições de trechos de trabalho final de curso dos participantes.