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Elon
Lages Lima
Quando
se pensa em ensinar Matemática, dois aspectos que se complementam
precisam ser considerados separadamente. Poderíamos chamá-los o global e
o local, o genérico e o específico, o macro e o micro, a estratégia e a
tática, o planejamento e a execução, a estrutura do curso e a didática
das aulas. De
didática não trataremos aqui. Em vez disso, diremos como o ensino da
Matemática deve ser organizado, levando em conta a natureza peculiar
dessa matéria, os alunos aos quais ela se destina e os motivos de sua
inclusão no currículo. A
fim de familiarizar gradativamente os alunos com o método matemático,
dotá-los de habilidades para lidar desembaraçadamente com os mecanismos
do cálculo e dar-lhes condições para mais tarde saberem utilizar seus
conhecimentos em situações da vida real, o ensino da Matemática deve
abranger três componentes fundamentais, que chamaremos de Conceituação,
Manipulação e Aplicações. Da dosagem adequada de cada um desses três componentes depende o equilíbrio do processo de aprendizagem, o interesse dos alunos e a capacidade que terão para empregar, futuramente, não apenas as técnicas aprendidas nas aulas, mas sobretudo o discernimento, a clareza das idéias, o hábito de pensar e agir ordenadamente, virtudes que são desenvolvidas quando o ensino respeita o balanceamento dos três componentes básicos. Eles devem ser pensados como um tripé de sustentação: os três são suficientes para assegurar a harmonia do curso e cada um deles é necessário para o seu bom êxito.
A
conceituação compreende a formulação correta e objetiva das
definições matemáticas, o enunciado preciso das proposições, a prática
do raciocínio dedutivo, a nítida conscientização de que conclusões
sempre são provenientes de hipóteses que se admitem, a distinção entre
uma afirmação e sua recíproca, o estabelecimento de conexões entre
conceitos diversos, bem como a interpretação e a reformulação de idéias
e fatos sob diferentes formas e termos. É importante ter em mente e
destacar que a conceituação é indispensável para o bom resultado das
aplicações.
A
manipulação, de caráter principalmente (mas não exclusivamente)
algébrico, está para o ensino e o aprendizado da Matemática, assim como
a prática dos exercícios e escalas musicais está para a música (ou
mesmo como o repetido treinamento dos chamados “fundamentos” está
para certos esportes, como o tênis e o voleibol). A habilidade e a
destreza no manuseio de equações, fórmulas e construções geométricas
elementares, o desenvolvimento de atitudes mentais automáticas,
verdadeiros reflexos condicionados, permitem ao usuário da Matemática
concentrar sua atenção consciente nos pontos realmente cruciais,
poupando-o da perda de tempo e energia com detalhes secundários.
As
aplicações são empregos das noções e teorias da Matemática
para obter resultados, conclusões e previsões em situações que vão
desde problemas triviais do dia-a-dia a questões mais sutis que surgem
noutras áreas, quer científicas, quer tecnológicas, quer mesmo sociais.
As aplicações constituem a principal razão pela qual o ensino da Matemática
é tão difundido e necessário, desde os primórdios da civilização até
os dias de hoje e certamente cada vez mais no futuro. Como as entendemos,
as aplicações do conhecimento matemático incluem a resolução de
problemas, essa arte intrigante que, por meio de desafios, desenvolve a
criatividade, nutre a auto-estima, estimula a imaginação e recompensa o
esforço de aprender.
Durante
o período da chamada Matemática Moderna (décadas de 60 e 70), ocorreu
no ensino uma forte predominância da conceituação em detrimento dos
outros dois componentes. Quase não havia lugar para as manipulações e
muito menos para as aplicações. Por um lado, a Matemática que então se
estudava nas escolas era pouco mais do que um vago e inútil exercício de
generalidades, incapaz de suprir as necessidades das demais disciplinas
científicas e mesmo do uso prático no dia-a-dia. Por outro lado, como os
professores e autores de livros didáticos não alcançavam a razão de
ser e o emprego posterior das noções abstratas que tinham de expor, o
ensino perdia muito em objetividade, insistindo em detalhes irrelevantes e
deixando de destacar o essencial.
Um
exemplo flagrante da falta de objetividade (que persiste até hoje em
quase todos os livros didáticos brasileiros) é a definição de função
como um conjunto de pares ordenados. Função é um dos conceitos
fundamentais da Matemática (o outro é conjunto). Os usuários da Matemática
e os próprios matemáticos costumam pensar numa função de modo dinâmico,
em contraste com essa concepção estática. Uma transformação geométrica
é uma função. Mas não é provável que exista alguém que imagine uma
rotação, por exemplo, como um conjunto de pares ordenados. Os próprios
autores e professores que apresentam essa definição não a adotam
depois, quando tratam de funções específicas como as logarítmicas,
trigonométricas, etc. Quem pensa num polinômio como num subconjunto de IR2
? Para
um matemático, ou um usuário da Matemática, uma função
f: X
Y, cujo
domínio é o conjunto X e cujo
contra-domínio é o conjunto Y, é
uma correspondência (isto é, uma regra, um critério, um algoritmo ou
uma série de instruções) que estabelece, sem exceções nem ambigüidade,
para cada elemento x em X, sua imagem
f(x)
em Y. Um purista pode
objetar que correspondência, regra, etc. são termos sem significado
matemático. A mesma objeção, entretanto, cabe na definição de função
como conjunto de pares ordenados, pois, para termos um conjunto,
necessitamos de uma regra, um critério, uma série de instruções que
nos digam se um dado elemento pertence ou não ao conjunto. Além
do mais, a definição de função como uma correspondência é muito mais
simples, mais intuitiva e mais acessível ao entendimento do que a outra,
que usa uma série de conceitos preliminares, como produtos cartesianos,
relação binária, etc. Por isso mesmo ela é utilizada, por todos,
exceto os autores de livros didáticos brasileiros.
A
manipulação é, dos três, o componente mais difundida nos livros-texto
adotados em nossas escolas. Conseqüentemente, abundam nas salas de aula,
nas listas de exercícios e nos exames as operações com elaboradas frações
numéricas ou algébricas, os cálculos de radicais, as equações com uma
ou mais incógnitas, as identidades trigonométricas e vários outros
tipos de questões que, embora necessárias para o adestramento dos
alunos, não são motivadas, não provêm de problemas reais, não estão
relacionadas com a vida atual, nem com as demais ciências e nem mesmo com
outras áreas da Matemática. A
presença da manipulação é tão marcante em nosso ensino que, para o público
em geral (e até mesmo para muitos professores e alunos), é como se a
Matemática se resumisse a ela. Isso tem bastante a ver com o fato de que
o manuseio eficiente de expressões numéricas e símbolos algébricos impõe
a formação de hábitos mentais de atenção, ordem e exatidão, porém não
exige criatividade, imaginação ou capacidade de raciocinar
abstratamente. Deve
ficar bem claro que os exercícios de manipulação são imprescindíveis,
mas precisam ser comedidos, simples, elegantes e, sempre que possível, úteis
para emprego posterior.
Intimamente
ligada ao costume de privilegiar a manipulação formal no ensino da Matemática
está a apresentação da Geometria segundo o que chamaremos de método
peremptório. Este método consiste em declarar verdadeiras certas afirmações,
sem justificá-las. Um dos maiores méritos educativos da Matemática é o
de ensinar aos jovens que toda conclusão se baseia em hipóteses, as
quais precisam ser aceitas, admitidas para que a afirmação final seja válida.
O processo de passar, mediante argumentos logicamente convincentes, das
hipóteses para a conclusão chama-se demonstração e seu uso sistemático
na apresentação de uma teoria constitui o método dedutivo. Esse é o método
matemático por excelência e a Geometria Elementar tem sido, desde a
remota antigüidade, o lugar onde melhor se pode começar a praticá-lo.
Lamentavelmente a grande maioria dos estudantes brasileiros sai da escola,
depois de onze anos de estudo, sem jamais ter visto uma demonstração. O
método peremptório de ensinar Geometria enfatiza as relações métricas,
ignora as construções com régua e compasso e reduz todos os problemas a
manipulações numéricas.
Evidentemente,
as demonstrações pertencem ao componente Conceituação. Elas devem ser
apresentadas por serem parte essencial da natureza da Matemática e por
seu valor educativo. No nível escolar, demonstrar é uma forma de
convencer com base na razão, em vez da autoridade. Por esse motivo, não
se deve demonstrar o que é intuitivamente evidente, o que todos aceitam
sem hesitação. (Exemplo: que uma reta tem no máximo dois pontos em
comum com uma circunferência dada.) Se demonstrar é uma forma de
convencer por meio da razão, para que perder tempo provando algo de que
todos já estão convencidos? Também não se devem provar resultados que,
embora não sejam de forma alguma óbvios, necessitam, para serem
demonstrados, de argumentos e técnicas difíceis, fora do alcance dos
alunos, como o Teorema Fundamental da Álgebra, segundo o qual todo polinômio
de grau n
possui
n raízes
complexas. Por outro lado, determinados fatos matemáticos importantes não
são intuitivamente evidentes mas possuem demonstrações fáceis e
elegantes. Sem dúvida, o exemplo mais conhecido é o Teorema de Pitágoras,
do qual devem ser dadas pelo menos duas das inúmeras demonstrações
conhecidas.
As
aplicações constituem, para muitos alunos de nossas escolas, a parte
mais atraente (ou menos cansativa) da Matemática que estudam. Se forem
formuladas adequadamente, em termos realísticos, ligados a questões e
fatos da vida atual, elas podem justificar o estudo, por vezes árido, de
conceitos e manipulações, despertando o interesse da classe. Encontrar
aplicações significativas para a matéria que está expondo é um
desafio e deveria ser uma preocupação constante do professor. Elas devem
fazer parte das aulas, ocorrer em muitos exercícios e ser objeto de
trabalhos em grupo. Cada
novo capítulo do curso deveria começar com um problema cuja solução
requeresse o uso da matéria que vai começar a ser ensinada. É muito
importante que o enunciado do problema não contenha palavras que digam
respeito ao assunto que vai ser estudado naquele capítulo. De resto, as
aplicações mais interessantes, durante todo o curso, são os exemplos e
exercícios cujo objeto principal não é o assunto que está sendo
tratado. Por exemplo: problemas sobre logaritmos em que a palavra
logaritmo
não apareça no enunciado ou exercícios que se resolvam com
trigonometria mas que não falem em seno, cosseno, etc. Para resolver
problemas dessa natureza é preciso estar bem familiarizado com a
conceituação dos objetos matemáticos (além, naturalmente, de saber
fazer as contas pertinentes). Por isso é que dissemos no início que a
conceituação é fundamental nas aplicações. A
falta de aplicações para os temas estudados em classe é o defeito mais
gritante do ensino da Matemática em todas as séries escolares. Ele não
poderá ser sanado sem que a conceituação seja bem reforçada. Para
resolver um simples probleminha, o aluno da escola primária hesita se
deve multiplicar, somar ou dividir os dois números que são dados. Para
decidir, ele precisa saber conceituar adequadamente essas operações.
Analogamente, o aluno do ensino médio, diante de um certo problema
proposto, não sabe se deverá modelar a situação com uma função afim,
quadrática ou exponencial. (Problemas da vida não aparecem acompanhados
de fórmulas!) É preciso que ele conheça as propriedades dessas funções
a fim de tomar sua decisão. E assim por diante. O
professor dedicado deve procurar organizar seu curso de modo a obter o
equilíbrio entre os três componentes fundamentais. Assim procedendo, terá
dado um largo passo na direção do êxito na sua missão de educar.
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