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José
Paulo Q. Carneiro
Fala-se
muito hoje (e com razão) na necessidade de motivar os temas da Matemática
a partir de problemas interessantes e realistas. Perdem-se, no entanto,
muitas oportunidades de empregar essa estratégia, ao deixar fora dos
programas do ensino médio a resolução de equações polinomiais de grau
superior a dois. Considere o seguinte problema: Problema
1: Deseja-se construir
um reservatório em forma de um prisma reto de base quadrada, com
capacidade de 2 000 litros, usando, para paredes, fundo e tampa, 20 m2
de um certo material. Quais devem ser as dimensões do reservatório? A
aplicação direta das fórmulas conduz à equação
para a determinação do lado
da base (em metros) e, a partir daí, calcula-se a altura. Acontece que
essa equação é do 3o grau, o que, pelos hábitos
dominantes, torna esse problema proibitivo para os alunos do ensino médio,
pois trata-se de um assunto “fora do programa”. Segue
uma lista de problemas que recaem em equações polinomiais (ou algébricas)
de grau no mínimo três. (Neste artigo, só cuidaremos de equações no
campo real.) Problema
2: Uma televisão,
cujo preço à vista é de R$ 500,00, é vendida em 6 prestações iguais
de R$ 120,00. Qual é a taxa mensal de juros que está sendo cobrada? Problema 3: Calcule as coordenadas dos pontos de interseção da parábola de equação Problema
4: As teclas de sua
calculadora referentes às funções trigonométricas estão defeituosas.
Mesmo assim, pede-se que você calcule, com quatro decimais exatas, o
valor do cosseno de
. Para
aproveitar problemas desse tipo em nosso ensino médio, precisamos
arranjar uma maneira de resolver equações polinomiais de grau maior que
dois. Será possível fazer isso, sem nos afastarmos dos temas usuais do
curso secundário? Num
primeiro momento, poderíamos pensar em aplicar fórmulas que fornecem
diretamente as raízes da equação através de um número finito de operações
algébricas sobre os coeficientes, assim como se faz usualmente para a
equação do 2o grau. É sabido, no entanto, que fórmulas
desse tipo (as chamadas “fórmulas por meio de radicais”) não existem
para equações de grau maior que quatro e, mesmo para graus 3 e 4, as fórmulas
disponíveis são complicadas, exigindo transformações prévias das equações
e uso de trigonometria e números complexos (ver [1], [3], [5], [6]). Felizmente,
porém, há outros caminhos. Depois que as fórmulas por meio de radicais
para as equações do 3o e 4o graus
foram descobertas no início do século XVI, decorreram aproximadamente
300 anos até que os matemáticos se convencessem da impossibilidade de
obter fórmulas análogas para equações de 5o grau em
diante. Já no século XVII, numa linha completamente diversa, outros
matemáticos passaram a desenvolver os chamados métodos numéricos para a resolução
de equações polinomiais (ver [4]). Partindo de um ponto de vista
completamente diferente, nos métodos numéricos procura-se determinar,
para as raízes de uma equação, uma seqüência de valores aproximados
que permita obter as raízes com qualquer grau de aproximação desejada.
Esse tipo de método já vinha sendo usado com sucesso, por exemplo, por
Newton (1642-1727) e aplica-se não só a equações algébricas, mas também
a equações transcendentes.
Existem
muitos métodos “numéricos”, isto é, aproximados, para determinar as
raízes de uma equação algébrica. Porém, o procedimento básico de
cada um deles consiste em: (1)
ter uma primeira idéia, ainda que vaga, de onde se encontram as raízes;
é o que se chama de localizar
as raízes; (2) dentro do domínio onde se localizou uma raiz, escolher para ela um
valor
inicial x0
(uma tentativa); (3)
conceber um processo
iterativo (ou seja, repetitivo) que gere, a partir de
x0,
uma seqüência de valores
que convergem
à raiz procurada, isto é, aproximam-se tanto quanto se quiser dessa
raiz.
Uma
primeira “dica” para situar raízes de um polinômio é o seguinte
fato: “se um polinômio assumir valores de sinais contrários em
a
e em b, então ele terá uma
raiz entre a e
b”. Em termos gráficos,
isso é a tradução do seguinte fenômeno: o gráfico de um polinômio só
pode passar de “acima” do eixo X
para “abaixo” do eixo X (ou
vice-versa), se cortar esse eixo. A
propriedade que estamos usando nada mais é do que uma forma de enunciar o
Teorema do Valor Intermediário para funções contínuas, juntamente com
o próprio fato de que uma função polinomial é contínua. É provável
que a maioria dos professores de ensino médio tenha tomado conhecimento
do conceito e das propriedades funções contínuas em um contexto técnico
e sofisticado. Mas isso não significa que a noção de continuidade em si
seja técnica; técnica foi sua apresentação na universidade (aliás,
necessária para a formação de um professor de Matemática). Na verdade,
esse teorema, apresentado de maneira gráfica, é considerado tão
intuitivo que classicamente serve de motivação para o próprio conceito
técnico de continuidade. No ensino médio, isso pode ser feito
diretamente para funções polinomiais, através de um punhado de exemplos
gráficos, cuja utilização está hoje em dia muito facilitada, pelo uso
das calculadoras gráficas e dos inúmeros aplicativos de computador que
traçam gráficos de funções. Um
observador crítico vai objetar: no exemplo do Problema 3, de onde surgiu
a idéia de calcular
e
? Se alguém tivesse experimentado
e
, não chegaria a conclusão
alguma sobre as raízes da equação. Fica claro que o Teorema do Valor
Intermediário, embora seja muito útil, não é suficiente para localizar
raízes. Um
procedimento válido e muito utilizado para localizar as raízes de uma
equação polinomial
é fazer um esboço do
gráfico da função polinomial
, para ter uma idéia de onde
se situam os pontos em que esse gráfico corta o eixo X.
Há,
porém, uma questão tão ou mais importante, e que nos parece crucial
para o ensino médio. É que, quando
a equação deriva de um problema concreto, a localização da raiz (ou raízes)
procurada(s) decorre muitas vezes dos próprios dados do problema,
não necessitando nem mesmo do gráfico do polinômio em questão. Para
ilustrar esse ponto, que nos parece crucial para o ensino médio, vamos
aproveitar para equacionar os problemas apresentados acima.
Problema
1:
Faz-se: lado da base
e altura
(tudo em metros),
e elimina-se
h nas equações
e
, recaindo na equação
. É claro que as raízes procuradas são positivas. Aqui não é evidente
uma cota superior para as raízes. Porém, experimentando os primeiros
valores inteiros, constata-se logo que
e
e, portanto, há uma
raiz entre 0 e 1.
O único problema agora será achar essa raiz
r, pois a divisão do
polinômio por
fará a procura das
outras raízes (se houver) recair em uma equação do 2o
grau. Problema
2:
Se j
for a taxa de juros, trazendo todos os valores para a data inicial
(estamos supondo que a primeira prestação é a entrada), a equação
crucial é:
Problema
3:
Já vimos que há uma raiz entre -2 e -1,
o que também poderia ser constatado fazendo um esboço gráfico
dessas duas curvas muito conhecidas (mais fácil do que fazer o gráfico
do polinômio
).
, com
e
chega-se à equação
. É claro que
Como
se viu, não foi necessária nenhuma teoria sofisticada para localizar as
raízes dessas equações.
Uma
vez localizado um intervalo onde está a raiz que se procura, a idéia dos
Métodos Numéricos, como vimos, é escolher um valor inicial
nesse intervalo e
formar uma seqüência
que proporcione a obtenção
de valores aproximados para essa raiz. Existem vários processos para
isso, mas vamos nos fixar no método
de Newton (1669), também conhecido como método de
Newton-Raphson (1690). Para
entender o método de Newton, vamos tomar primeiramente a equação geral
do 3o grau
e proceder do seguinte
modo: Divide-se por , obtendo um quociente , do 2o grau, e um resto Divide-se
por
, obtendo um quociente
, do 1o grau, e um resto
. Divide-se
por
, obtendo um quociente
, do grau 0, e um resto
. O
conhecido dispositivo
de Briot-Ruffini produz imediatamente
o quociente e o resto da divisão de um polinômio por
. Em particular, as divisões
aqui descritas podem ser feitas através de um mesmo dispositivo de
Briot-Ruffini, como ilustra o esquema:
Se
tomarmos
como uma primeira
aproximação de uma raiz da equação
p(x) = 0
, e
x1 = x0
+ h
como uma segunda
aproximação (possivelmente melhor), deveremos ter , isto é:
A
idéia de Newton foi que, se
estiver bastante próximo
da raiz exata, h
será muito pequeno e portanto, para uma primeira aproximação,
podemos desprezar os termos em
e
, ficando com a equação do
1o grau aproximada
, de onde
O
método de Newton, para encontrar uma raiz real da equação polinomial
, pode então ser resumido assim: 1) Escolha uma primeira aproximação
para a raiz. 2) Para
uma vez de posse de
, use Briot-Ruffini para
dividir duas vezes
por
, obtendo os restos
e
.
Vamos
exemplificar com o Problema 1. Já sabemos que a equação
p (x) = x3
10x + 4 = 0tem uma raiz entre 0
e 1.
O
leitor pode confirmar que o próximo valor
já
não difere de
nas suas seis primeiras
decimais, ilustrando a grande velocidade de convergência do método. Deve
ser observado que: 1)
Estávamos procurando uma raiz entre
0 e
1. Se tivéssemos começado com o valor
, teríamos obtido uma convergência um pouco mais lenta (mais dois passos
para obter a mesma precisão), o que era de esperar, já que a raiz está
mais próxima de 0
do que de 1. Começando
por 0,5, a convergência
seria mais rápida ainda. 2)
O último esquema de Briot-Ruffini que apareceu já indica que, ao
se dividir o polinômio
por
, obtém-se o quociente
(e resto “quase”
0). Logo, as outras soluções da equação
são as raízes da equação
do 2o grau
. A raiz positiva
é portanto outra solução
do problema. (Aos dois
valores calculados do lado da base x,
correspondem para a altura, respectivamente,
e
.) 3)
Se, em vez de calcular
e
, como fizemos, o leitor tivesse calculado
e
, poderia ter achado diretamente a solução 2,939235 pelo método de
Newton, partindo de
ou (muito melhor) de
. Confira! 4)
O exemplo ilustra o fato de que a velocidade de convergência (e,
aliás, a própria convergência) do método de Newton depende não
somente dos coeficientes da equação, mas também do valor inicial
escolhido
. Uma discussão mais acurada
desses fatos pode ser encontrada em livros de Análise Numérica. Na prática,
quando aparecer algum problema na aplicação do método de Newton,
sugere-se que se experimente outro valor inicial. 5)
Os cálculos desse exemplo (ou de outro) podem ser efetuados em uma
calculadora de mão ou, muito mais rapidamente, em um computador. Existem
até aplicativos que fornecem rapidamente as raízes de uma equação,
bastando para isso que se entre com os coeficientes e se obedeça a uma
sintaxe preestabelecida, dependendo de cada um. Tal procedimento é muito
útil quando a resolução da equação é apenas um passo intermediário
para a resolução de um outro problema no qual se tenha maior interesse.
Mas quando se deseja compreender
o que está sendo feito para
resolver a equação (e esse é o caso, suponho, em muitas situações de
ensino), parece mais interessante utilizar um aplicativo menos
especializado, menos “matemático”, como é o caso das planilhas eletrônicas
(inventadas com fim comercial e administrativo), cuja organização
matricial torna-as especialmente convenientes para trabalhar com o
dispositivo de Briot-Ruffini. A mais popular delas, atualmente, é o Excel da Microsoft, cuja utilização é bastante simples.
Aplicando
o método de Newton, como se fez com o Problema 1, o leitor poderá
verificar as soluções dos outros problemas propostos no início do
artigo. Problema
2:
Problema
3: A interseção é o
ponto:
. Problema
4:
Os
métodos numéricos ainda não ocuparam até hoje o lugar que merecem na
Matemática elementar. Aparentemente, isso ocorre por três razões. A
primeira é que muitas pessoas consideram-se insatisfeitas em obter
valores “aproximados”, em vez de uma resposta “exata” tal como
, que só será útil se, por
sua vez, aproximarmos as raízes cúbicas, quartas, etc., por valores
racionais obtidos através de métodos também “numéricos”. Um
outro motivo alegado é que os métodos numéricos “dão muito
trabalho”. Esse tipo de argumento podia fazer algum sentido até pouco
tempo atrás, antes das calculadoras eletrônicas e dos computadores. Hoje
em dia, ao contrário, com os métodos numéricos, os professores de Matemática
têm nas mãos uma excelente oportunidade para introduzir seus alunos em
problemas realistas, e para fazê-los trabalhar matematicamente com o
computador, esse companheiro cada vez mais inseparável do profissional do
século XXI. A
terceira razão é de ordem mais técnica. Os professores, em sua maioria,
tomaram conhecimento dos métodos numéricos no curso superior, onde eles
aparecem, em geral, em uma disciplina de Cálculo Numérico, com um
tratamento que, no mínimo, supõe o conceito de derivada. Isso
invalidaria seu uso no ensino médio. Esperamos ter mostrado que, pelo
contrário, a resolução numérica de equações polinomiais é um tema
relevante para o ensino médio, por aparecer naturalmente em diversos
problemas interessantes, e um assunto perfeitamente tratável nesse nível,
além de se beneficiar imensamente da atual explosão do uso de
computadores, colaborando simultaneamente para que esse uso se canalize
para a compreensão da Matemática. Referências
bibliográficas [1] Carneiro, J.P.Q. Resolução de equações algébricas, Ed. Univ. Santa Úrsula,
1998. [2]
Carneiro, J.P.Q. Vindicating the
early introduction of numerical methods – An experiment in teachers
continuous education, Anais do 50a CIEAEM, Neuchâtel,
Suisse, 1999. [3] Garbi, G.G. O romance das equações
algébricas, Makron Books. [4]
Goldstine, H.H. A history of
numerical analysis from the 16th Century trough the 19th
Century, Springer-Verlag, 1977. [5]
Milies, C.P., A solução de
Tartaglia para a equação do terceiro grau, Revista do Professor de
Matemática 25, 1o semestre de 1994, págs. 15-22. [6] Moreira, C.G.T., Uma solução das
equações de 3o e 4o graus, Revista do
Professor de Matemática 25, 1o semestre de 1994, págs. 23-28. [7] Morgado, A.C.; Wagner, E.; Zani, S.C., Progressões
e Matemática financeira, IMPA/VITAE, 1993. |