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Os primeiros movimentos de reforma do ensino da Matemática no 1o. e 2.º graus datam da década de cinqüenta. Aqui no Brasil os efeitos desses movimentos só se fizeram sentir na prática a partir dos anos sessenta, portanto há vinte anos ou mais. Como conseqüência, muitos dos professores de hoje foram educados nessa escola nova. E como os reformistas davam ênfase excessiva à linguagem da Teoria dos Conjuntos, os jovens que eles formaram também adquiriram o hábito da preocupação exagerada com essa linguagem, exagero este que tem trazido mais prejuízo que benefícios ao bom ensino da Matemática. Já que a Teoria dos Conjuntos — ainda que apenas na sua linguagem — seja tão ensinada nas escolas de 19 e 29 graus, cremos ser do interesse dos leitores um relato sucinto de como surgiu essa teoria e qual seu verdadeiro papel na Matemática. E esse o objetivo do presente artigo. O criador da Teoria dos Conjuntos foi o matemático alemão Georg Cantor (1845-1918). Embora tenha nascido na Rússia, em São Petersburgo (hoje Leningrado), mudou-se para a Alemanha com a família quando era ainda criança. Depois de obter seu doutorado na Universidade de Berlim em 1868, Cantor conseguiu um cargo docente na Universidade de Halle onde, por influência de seu colega mais velho Heinrich Heine (1821-1881), passou a se interessar pro problemas ligados às chamadas séries trigonométricas. Essas séries ocuparam a atenção dos mais eminentes matemáticos durante todo o século XIX; e seu estudo, pelos muitos desdobramentos e ramificações que teve, foi, em verdade, o impulso mais significativo para o progresso da Análise Matemática durante maior parte do século. Através de suas investigações nesse domínio, Cantor foi levado, naturalmente, a se preocupar com o desenvolvimento de uma teoria dos números reais e a criar a Teoria dos Conjuntos. Isso ocorreu porque ele teve de considerar funções que possuíssem descontinuidades. O caso mais simples é aquele em que essas descontinuidades ocorrem em um, dois ou mais pontos da reta, porém em número finito. Passando a considerar descontinuidades em um número infinito de pontos, Cantor penetrou num território novo – o dos conjuntos infinitos! Ao mesmo tempo, uma análise minuciosa dos números, distribuídos como abscissas dos pontos da reta, se fez necessária, o que exigia um estudo cuidadoso dos números reais – racionais e irracionais. Ao longo de toda a história do conhecimento, a idéia de uma coleção infinita de objetos sempre causou dificuldades, tanto a matemáticos, como a filósofos. São famosos os paradoxos de Zeno de Elía[1] todos envolvendo a idéia do infinito atual. Na opinião de muitos sábios, desde Aristóteles, o infinito é algo que só pode ser considerado no seu aspecto potencial, isto é, como possibilidade, mas não como conceito completo e acabado. Gauss (1777-1855), que nunca teve muito apreço pelos filósofos e sua linguagem, afirmou numa de suas cartas (de 1831): “Protesto quanto ao uso de uma quantidade infinita como entidade atual, pois não se pode permitir isso em Matemática, O infinito é apenas uma maneira de falar”. A título de ilustração, quando dizemos que existem infinitos números naturais, isso para Gauss é apenas uma “maneira de falar”; queremos tão somente exprimir o fato de que quando consideramos qualquer conjunto finito de números naturais existe sempre algum número natural fora desse conjunto. Desta maneira estamos expressando a “infinidade” dos números na sua potencialidade, sem precisarmos do conceito atual, completo e acabado de infinito. Um dos primeiros fatos surpreendentes que surge na consideração de conjuntos infinitos diz respeito à possibilidade de haver uma equivalência entre um conjunto e um seu subconjunto próprio. Galileu (1564-1642) já observara que se conjuntos infinitos fossem admitidos em Matemática, então teríamos de aceitar a existência de tantos números pares quantos são os inteiros. Isto pode ser visto, facilmente, através da seguinte correspondência (restrita a números positivos, por simplicidade):
Existe aqui uma correspondência biunívoca entre elementos dos dois conjuntos (n 2n) de tal sorte que a cada elemento de cada conjunto corresponde um único elemento do outro. Segundo Cantor, dois conjuntos são equivalentes, ou têm a mesma cardinalidade, quando é possível estabelecer entre eles uma tal correspondência. No caso de conjuntos finitos, serem equivalentes corresponde a terem o mesmo número de elementos, de sorte que o conceito de equivalência ou cardinalidade é uma extensão, a conjuntos infinitos, da noção de “número de elementos de um conjunto”. É claro que se todos os conjuntos infinitos tivessem a mesma cardinalidade, essa noção seria de pouca utilidade. A primeira grande descoberta de Cantor nesse domínio foi ter demonstrado que o conjunto dos números reais (racionais e irracionais) tem cardinalidade diferente da dos números inteiros, como veremos mais adiante. Cantor passou a chamar de enumerável a todo conjunto que tem a mesma cardinalidade do conjunto dos números naturais 1, 2, 3, 4, ...Vamos mostrar que os números racionais formam um conjunto enumerável. Por simplicidade restringimo-nos aos racionais positivos, que distribuímos em vários grupos, cada grupo contendo as frações cujos numerador e denominador têm a mesma soma; por exemplo,
é o grupo de todas as frações cujos termos têm soma 5. Vamos fazer uma lista de todos esses grupos, começando com aquele cuja soma dos termos das frações é 2 (e que só contêm a fração 1/1); depois o grupo das frações 1/2 e 2/1, cuja soma dos termos é 3; e assim por diante, sucessivamente. Ao mesmo tempo, riscamos as frações que representam o mesmo número já representado por frações que apareceram antes. Eis a lista:
É claro que esse procedimento resulta numa lista de todos os números racionais. Basta agora enumerá-los na ordem em que aparecem, isto é,
Dessa maneira obtemos uma correspondência biunívoca entre o conjunto dos números racionais (positivos) e dos números naturais, que também podemos expressar assim:
Isso mostra que os números racionais formam, de fato, um conjunto enumerável. Como já dissemos antes, se todos os conjuntos infinitos fossem enumeráveis, tendo, pois, a mesma cardinalidade, este conceito não seria muito útil. O primeiro grande mérito de Cantor foi a descoberta de que os números reais não são enumeráveis. Para demonstrar isso, vamos nos restringir aos números do intervalo [0,1], isto é, os números x tais que . Usaremos a representação decimal. Devemos observar que alguns números tem representação infinita como as dizimas periódicas. 0,353535... e 0,23555...; ou dizima não periódica 0,2022002220002222000022222... Os números que tem representação decimal finita, também podem ser representados por uma dizima periódica. Exemplos: 0,437 = 0,4369999... 0,052 = 0,0519999... 0,031 = 0,030999... 0,601 = 0,600999... Vamos escolher, para cada número, sua representação decimal infinita: assim teremos certeza de que cada número terá uma só representação decimal. O número zero é um caso à parte, com a representação 0,000... enquanto a representação do número 1 é 0,999... Suponhamos agora que fosse possíveis estabelecer uma correspondência biunívoca entre os números de intervalo [0, 1] e os números naturais. Para melhor fixar as idéias, vamos imaginar que essa correspondência fosse assim: 1 x1 = 0,20537... 1 x2 = 0,09504... 3 x3 = 0,61028... 4 x4 = 0,00999... 5 x5 = 0,70298... Mostraremos em seguida que isto nos leva a uma contradição, construindo um número x do intervalo [0, 1] que não esteja na lista acima. para isso vamos formar um número diferente do primeiro acima na 1ª casa decimal; diferente do segundo na 2ª casa; diferente do terceiro na 3ª casa; e assim por diante. Para esclarecer bem o que estamos fazendo, re-escrevemos a lista, destacando, em negrito, as várias casas decimais mencionadas: x1 = 0,20537... x2 = 0,09504... x3 = 0,61028.. x4 = 0,00999... x5 = 0,70298... ....................... Formemos o número x’ com os algarismos da diagonal em negrito, na ordem em que aparecem: x’ = 029098... Agora trocamos todos os algarismos deste número: escrevemos 9 onde o algarismo não for 9 e 5 onde ele for 9. Assim obtemos o número x = 0,95959... que difere de x1 na 1ª casa (9 ¹ 2); difere de x2 na 2ª casa (5 ¹ 9); difere de x3 na 3ª casa (9 ¹ 0); difere de x4 na 4ª casa (5 ¹ 9); difere de x5 na 5ª casa (9 ¹ 8); e assim por diante. Então, x é um número do intervalo [0, 1] que não aparece no conjunto dos números: x1, x2, x3, x4, x5, ... Mas isto é uma contradição com a hipótese inicial de que todos os números do intervalo [0, 1] formassem um conjunto enumerável! Somos, pois, forçados a rejeitar essa hipótese e a aceitar o fato de que esse conjunto não é enumerável. Como o intervalo [0, 1] é um subconjunto do conjunto de todos os números reais, concluímos que este conjunto também não é enumerável, como queríamos demonstrar. Cantor publicou uma demonstração complicada desse fato em 1874. O raciocínio que expusemos acima é essencialmente a demonstração que ele publicou em 1891, bem mais simples que sua demonstração anterior. Com essa descoberta, Cantor estabeleceu um fato muito surpreendente, qual seja, o de que existem pelo menos dois tipos diferentes de infinito: o do conjunto dos números naturais e o do conjunto dos números reais. Cantor provou outro fato não menos perturbador: o de que, dado um conjunto qualquer, é sempre possível construir outro conjunto “maior ainda”, isto é, cuja cardinalidade é “maior” que a do conjunto dado. Ele obteve assim um modo de construir toda uma infinidade de conjuntos infinitos com cardinalidades diferentes, e ordenou os conjuntos infinitos de acordo com sua cardinalidade, do mesmo modo que se ordenam os conjuntos finitos de acordo com o número de seus elementos. As descobertas de Cantor tiveram grandes impactos no mundo matemáticos de fins do século passado e começo do presente século. Para bem apreciar o que então acontecia, é bom lembrar que desde o início do século XIX era crescente a preocupação com o rigor, primeiro na Análise Matemática, porém mais tarde também na Geometria, depois das descobertas das geometrias não euclidianas. A partir de 1870, quando Cantor iniciava sua vida profissional, as atividades de pesquisa na área de axiomatização e fundamentos intensificavam-se rapidamente. E a Teoria dos Conjuntos, que então se desenvolvia, revelou-se muito adequada para ser o fundamento de toda a Matemática. Há uma outra razão por que a Teoria dos Conjuntos é importante em Matemática, fora da área dos fundamentos propriamente dita. É que desde os tempos de Cantor muitas disciplinas matemáticas novas surgiram e se desenvolveram extensamente, como a Topologia, a Álgebra Abstrata, a Teoria da Medida e Integração, a Teoria da Probabilidade, a Análise Funcional e outras mais. E em todas essas disciplinas – que, ao contrário de estanques e separadas, no mais das vezes se entrelaçam através de fronteiras indistinguíveis – em todas elas como vínhamos dizendo, a linguagem, a notação e os resultados da Teoria dos Conjuntos se revelaram instrumento natural de trabalho, a ponto de ser impossível conceber o desenvolvimento de toda essa Matemática sem a Teoria dos Conjuntos. Tentando uma analogia, diríamos que a Teoria dos Conjuntos é aqui tão necessária e indispensável como a notação literal é necessária e indispensável à Álgebra Elementar. Para concluir este artigo queremos deixar bem claro que a Teoria dos Conjuntos é uma disciplina cuja importância é difícil exagerar, não só para a Matemática, mas para o conhecimento humano de um modo geral. Ela não é importante, isto sim, para o ensino elementar da Matemática, nas escolas de 1o. e 2o. graus, onde foi introduzida de maneira forçada e artificial. Pretendemos ilustrar concretamente o que acabamos de dizer, num futuro artigo, com exemplos tirados dos textos didáticos que andam por aí. Por enquanto limitamo-nos a recomendar ao leitor interessado alguns livros cuja leitura muito lhe ajudará a bem entender o que dizemos aqui. Os professores Fernando Trotta, Luiz Imenes e José Jakubovic são autores de uma obra em três volumes, para o ensino de 2o. grau, chamada “Matemática Aplicada”, publicada pela Editora Moderna Ltda (Rua Dr. Elísio de Castro, 369, CEP 04277, São Paulo). Lendo-a a gente vê que é possível ensinar matemática sem usar tanta linguagem de conjunto! E que assim é preferível e bem melhor! Esses autores também escreveram o Telecurso do 1o. grau, que se encontra nas bancas de jornais e que é outro livro muito bem feito e altamente recomendável. São obras diferentes, que trazem uma valiosa contribuição ao ensino.
Outro livro que desejamos mencionar aqui
chama-se “O Fracasso da Matemática Moderna”, de autoria de Morris Kline e
publicado pela IBRASA (Rua 21 de Abril, 97, CEP 03047, São Paulo).
Trata-se de uma crítica do ensino nos Estados Unidos, porém muito válida também
no caso brasileiro. Nesse livro o autor explica, de maneira muito clara, a
origem, o porquê e as deformações dos movimentos de reforma do ensino. Ele
aborda todos os aspectos do mal ensino da Matemática e não apenas os exageros do
uso da linguagem de conjuntos. Sua leitura é muito recomendável.
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