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Vez
por outra encontro um artigo tentando explicar os paradoxos
de Zenão (descritos adiante). Mas as “explicações” que eles
apresentam não passam, a meu ver, de tentativas frustadas, que apenas
transferem a dificuldade para outro domínio do conhecimento, sem resolver
o problema. O presente artigo tem por objetivo lançar alguma luz sobre
esses paradoxos e outras questões a eles relacionadas.
Os
paradoxos de Zenão estão relatados em muitos livros: por exemplo, nas págs.
55 e 56 de [1], uma referência conhecida e de fácil acesso. São quatro
paradoxos, mas vamos nos restringir apenas a dois deles. O
primeiro, conhecido como paradoxo da dicotomia, procura interpretar o
movimento de um ponto A
a um ponto B
como uma seqüência infinita de movimentos: antes de se chegar
ao ponto B é preciso chegar ao
ponto C tal que
(figura 1); mas, antes
de se chegar a C, é preciso chegar ao
ponto D tal que
; e assim por diante,
indefinidamente.
A
conclusão de Zenão é que o movimento é impossível, pois sequer se
iniciará.
O paradoxo está na conclusão de que Aquiles nunca alcançará a tartaruga.
De fato, segundo o raciocínio de Zenão, quando Aquiles chegar ao ponto
, a tartaruga já
estará em
; e quando
Aquiles chegar ao ponto
, a tartaruga já
estará em
; e assim por
diante, indefinidamente, um processo que não termina.
Zenão
viveu no século V a.C., era discípulo de Parmênides, que ensinava que só
o ser imutável é real, portanto, é na imutabilidade do ser que se
encontra a realidade e se fundamenta o conhecimento. Essas idéias estavam
em direta oposição às de Heráclito, para quem a realidade fundamental
está no movimento. Heráclito ensinava que tudo no universo está em
permanente mudança, toda a realidade é um “vir-a-ser” contínuo. Ao
que parece, Zenão quis evidenciar, com seus paradoxos, a fragilidade
dessa idéia de Heráclito, apontando para as contradições a que leva a
própria noção de movimento. Até hoje não se sabe ao certo se é isso mesmo que tencionava Zenão, ou se ele tinha outros objetivos em vista, pois não dispomos de nenhum escrito seu, nem sabemos se ele deixou alguma coisa escrita. Seus paradoxos são relatados por Aristóteles, cujo objetivo era refutar Zenão.
Os
dois paradoxos descritos anteriormente são essencialmente iguais: o
primeiro deles decompõe o movimento numa seqüência infinita de
percursos cada vez menores “para trás”, nos trechos
CB, DC, etc.; ao passo que
o segundo decompõe o movimento numa seqüência infinita de percursos
cada vez menores “para a frente”, nos trechos
,
, etc. Assim, a dificuldade
é a mesma nos dois casos. Suponhamos
que, partindo de um ponto A, Aquiles alcance a
tartaruga ao final de duas horas num ponto
B.
Assim contemplado, o movimento se apresenta como realizado por
inteiro, como fenômeno completo e acabado. Outro modo é contemplar o
movimento realizado por etapas, assim: durante a primeira hora Aquiles
percorre o trecho
, sendo
o ponto médio entre
A e
B
(figura 3); durante a meia hora seguinte ele percorre o trecho
, sendo
o ponto médio entre
e
B;
durante mais 15 minutos ele percorre o trecho
, sendo
o ponto médio entre
e
B;
e assim por diante. Em todos esses percursos ele estará sempre atrás
da tartaruga. Poderá Aquiles alcançar a tartaruga no ponto
B? Há
outras maneiras de interpretar o movimento de Aquiles até alcançar a
tartaruga, mediante uma infinidade de movimentos sucessivos; mas basta
essa última interpretação para a análise que faremos em seguida.
Em
geral, as muitas tentativas que têm sido feitas ao longo dos séculos no
sentido de resolver o paradoxo consistem simplesmente em aceitar a soma
infinita dos percursos como resultando no percurso total, que dura duas
horas. Ora, isso não alcança o âmago da questão, apenas transfere a
dificuldade para o domínio das séries infinitas, pois se reduz a afirmar
que
Mas,
somar números, uns após outros, sucessivamente, é uma idéia concebida
para uma quantidade finita de números. Não se adapta ao caso de uma
infinidade de parcelas, pois, por mais que somemos, sempre haverá
parcelas a somar, e o processo de somas sucessivas não termina. E parece
ser precisamente essa a dificuldade que Zenão queria apontar. Os
matemáticos têm consciência das dificuldades com as séries infinitas há
mais de dois milênios. A primeira soma infinita que aparece na Matemática
ocorre num trabalho de Arquimedes, onde ele calcula a área de um segmento
de parábola; e faz isso através de um processo finito, justamente para
evitar envolvimento com uma soma infinita, como no paradoxo de Aquiles
(ver [2]). A
soma infinita é o limite de uma soma finita
, quando fazemos
n
tender a infinito. Mas o que significa isso precisamente? A definição
de limite, adotada no início do século XIX para fundamentar a Análise
Matemática, é feita de maneira a evitar um envolvimento direto com a
soma de uma infinidade de parcelas. Assim, dada uma série infinita.
formamos
a soma finita
e
dizemos que o número S
é a soma da série, isto é, dizemos que
se
a diferença
puder ser feita menor
do que qualquer número positivo, desde que se faça
n
suficientemente grande. Em linguagem mais precisa, isso quer
dizer o seguinte: dado qualquer número
, existe um índice
N tal que, para
, é verdade que
. Observe
bem: atribuímos significado à “soma infinita”
através de uma definição
que “evita o infinito”. S
não é a soma de todos os
termos da série infinita; ele é o número do qual as somas parciais finitas
vão-se aproximando
mais e mais quanto
maior for o índice n. Em
vista dessas considerações, para comparar o movimento da figura 3 a uma
soma infinita, temos de decompô-lo na seqüência
,
,
,
,
e
, pois é essa seqüência,
à execução do último trecho
, que corresponde à soma
parcial
. Aí a dificuldade
desaparece por completo, não importa quão grande tomemos
n,
pois estaremos evitando o infinito, exatamente como se faz no
tratamento das somas infinitas. Mas esse expediente, como se vê,
desfigura completamente o paradoxo, e é justamente por isso que não há
como resolvê-lo em termos de séries infinitas.
Vale
lembrar aqui um artigo sobre o infinito, de um dos mais eminentes matemáticos
do século XX, David Hilbert (1962–1943). A partir de 1917, ele se
dedicou a investigar os fundamentos da Matemática e em 1925 pronunciou
uma conferência que deixou escrita e ficou famosa, na qual aborda a
natureza do infinito. Para nós aqui interessa lembrar que nessa conferência
Hilbert insiste, de maneira bastante convincente, que o infinito não
existe na explicação matemática de fenômenos físicos, certamente
estamos procedendo a uma idealização, que necessariamente, passa a ser
um modelo que não mais corresponde exatamente à realidade física. É
precisamente isso o que acontece quando construímos modelos matemáticos
para movimentos físicos. Por exemplo, quando dizemos que uma bola de
bilhar está animada de um movimento com velocidade uniforme de 3 m/s e
escrevemos a equação horária do movimento
(s representando o espaço percorrido em metros e t
o tempo em segundos), estamos, tacitamente, representando a bola por
um de seus pontos, digamos, o centro de massa. A partir desse momento,
passamos a contemplar o modelo matemático, deixando para trás o fenômeno
físico! O movimento “matemático”, regido pela equação
, é contínuo, isto é,
nele o ponto se desloca ao longo de uma reta, passando por todos os
(infinitos) pontos que se situam entre a posição inicial do móvel e a
posição final. Completamente
outra é a situação do movimento físico. Primeiro que um corpo físico
qualquer – seja uma bola de bilhar, uma bola de gude, um grão de areia,
ou mesmo Aquiles ou um tartaruga – é sempre uma coleção finita de
partículas. Quando esse corpo está em movimento, cada uma de suas partículas
executa um movimento particular. Mesmo quando procuramos simplificar,
falando em corpo rígido, centro de massa, partícula ou elemento
material, já estamos idealizando, portanto, saindo do domínio
estritamente físico... Na
verdade, estamos tão acostumados a descrever o movimento por meios matemáticos,
que acabamos identificando o fenômeno físico “movimento” com seu
“retrato matemático”. As coisas que se movem no mundo físico são
partículas, não pontos matemáticos. E não há como, rigorosamente,
identificar a trajetória de um próton ou um elétron, por exemplo, com
uma reta ou curva contínua. É um equívoco imaginar que o móvel físico
possa passar por uma infinidade de posições mesmo porque, como nos
ensina Hilbert, o infinito não existe no mundo físico.
A
fundamentação racional do conhecimento se originou com Tales, no século
VI a.C.; e adquiriu grande impulso com Pitágoras, que teve a genial idéia
de que todos os fenômenos se fundamentam no número e podem ser
explicadas em termos puramente numéricos. No fundo, o que Pitágoras propõe
é a possibilidade da matematização do universo, coisa que só vem se
tornando realidade – e com muito sucesso, diga-se de passagem – nos últimos
400 anos, desde os tempos de Galileu, Kepler e Newton. Com
o surgimento da fundamentação racional do conhecimento na Grécia
antiga, vários sábios passam a se ocupar do exercício da racionalidade
na análise das idéias então em voga. São eles os sofistas,
que eram verdadeiros “disseminadores do conhecimento”, que até então
houvera sido cultivado em sociedades mais ou menos fechadas, como a dos
pitagóricos. Dentre os sofistas havia os menos escrupulosos – e até
charlatães, como acontece mesmo nos dias de hoje, em todas as profissões
– e aqueles que usavam de suas habilidades até mesmo para exibição e
divertimento, como bem retrata a história seguinte: Dois
personagens, Protágoras e Euatlus, chegaram a um acordo, segundo o qual
Protágoras concordava em ensinar Euatlus a prática do Direito por um
certo preço, que deveria ser pago em duas vezes, a metade durante o curso
e a outra metade quando Euatlus começasse a praticar a profissão e
ganhasse seu primeiro caso num tribunal. Acontece
que Euatlus, após terminar o curso, nunca iniciava sua prática. Protágoras
foi ficando impaciente, cobrava e recebia sempre a mesma resposta de
Euatlus: “pelo nosso trato, não tenho de lhe pagar ainda, pois não
ganhei meu primeiro caso perante um tribunal”. Com sua paciência
esgotada, Protágoras decidiu processar Euatlus para conseguir receber o
que ele lhe devia. Mas
antes mesma da formalização do processo, numa última tentativa, Protágoras
procurou Euatlus e o alertou: “em qualquer hipótese você vai ter de me
pagar, pois, se o tribunal decidir a meu favor, você terá de obedecer a
essa decisão e me pagar; e, se o tribunal decidir a seu favor, aí você
terá ganho seu primeiro caso como advogado e, de acordo com nosso trato,
terá de me pagar. Portanto, melhor me pagar antes que eu recorra à justiça”. “Você
está enganado”, respondeu Euatlus a Protágoras, “pois, se o tribunal
decidir a meu favor, obedecerei a tal decisão e não lhe pagarei; e, se
decidir a seu favor, aí ainda não terei ganho meu primeiro caso,
portanto, de acordo com nosso trato, não terei de lhe pagar!” Zenão,
ao que parece, era filósofo sofista (dos sofistas sérios, é claro!),
um crítico dos instrumentos que então se criavam para o estudo racional
dos fenômenos. Assim, já naquela época se questionavam
as bases do conhecimento, pondo em evidência as próprias limitações da
racionalidade. Decerto que já se faziam perguntas mais ou menos deste
tipo: o intelecto humano é realmente capaz de “penetrar” os fenômenos,
de desvendar os segredos da Natureza? Até que ponto o homem realmente
adquire o conhecimento? Será esse conhecimento uma revelação completa
dos fenômenos? Ou tem apenas um caráter relativo e limitado? Ou será
mesmo totalmente ilusório? Questões
como essas são tão atuais nos dias de hoje como teriam sido há mais de
dois milênios, nos tempos de Sócrates, Platão, Aristóteles, e mesmo de
seus predecessores. É
interessante notar que, com o progresso científico, principalmente a
partir do século XVIII, sobretudo no terreno da Física e da Matemática
neste nosso século XX, as bases do conhecimento nunca se revelaram tão
frágeis. Os físicos têm hoje plena consciência de que suas teorias –
que vivem numa permanente busca de conciliação e consistência – nada
mais são do que instrumentos frágeis de interpretação da realidade,
nunca um desvendamento completo dessa realidade. Dissemos
que é provável que Zenão estivesse procurando, com seus paradoxos,
evidenciar as deficiências das bases racionais do conhecimento. A ser
isso verdade, poderíamos então dizer que Zenão seria muito atual em
nossos dias! Os
matemáticos, por seu turno, depois de perseguirem, por séculos, a
fundamentação última de suas teorias, sabem hoje que isso é impossível.
E um dos elementos centrais das dificuldades de se atingir tal objetivo e
o infinito, do mesmo modo que o infinito é a pedra de tropeço dos
paradoxos de Zenão.
__________ Referências
Bibliográficas [1]
Boyer, C. B. História da Matemática.
São Paulo: Edgard Blücher, 1974. [2]
Ávila, G. Ainda as séries
infinitas. RPM 31, págs. 9
e 10.
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