Gilberto Garbi
São Paulo, SP

O nome do grande matemático francês Pierre de Fermat (figura), nascido em Beaumont de Lomagne em 1601 e falecido em Toulouse em 1665, tornou-se universalmente conhecido em razão de inúmeras e criativas descobertas por ele feitas em diversos campos da Matemática, em especial na Teoria dos Números. O famosíssimo último teorema de Fermat, também conhecido como a conjectura de Fermat, que demorou três séculos e meio até ser demonstrado em 1993 pelo brilhante inglês Andrew Wiles, trouxe-o novamente à baila em anos recentes e muito foi publicado sobre ele em revistas especializadas (como a nossa RPM) e também nos jornais e periódicos leigos.

Entretanto, parece que o desafio de provar a conjectura de Fermat - a impossibilidade de soluções inteiras para a equação ,   - absorveu de tal maneira a atenção de todos que acabamos nos esquecendo de falar sobre as demais coisas fascinantes que ele nos legou. É de outro belo teorema de Fermat que desejamos falar agora, pois ele contém ensinamentos muito ilustrativos a respeito dos raciocínios utilizados em Teoria dos Números e sobre a forma pela qual certos teoremas são “descobertos”.

Antes de tratar da questão matemática, é interessante dizer duas palavras sobre quem foi Fermat. Para começar, ele não era matemático profissional nem jamais fez nenhum estudo formal em ciências exatas. Sua formação era humanística, especializou-se em línguas clássicas, diplomou-se em direito e foi magistrado em Toulouse durante quase toda a vida.

Católico fervoroso, dividia seu tempo de lazer entre as obrigações para com a Igreja e o estudo amadorístico da Matemática, mas se engana totalmente quem imaginar que o amadorismo de Fermat possa ter significado algo superficial, elementar ou primário. Fermat é conhecido como “O Príncipe dos amadores” porque fez descobertas profundas e sutis na Teoria dos Números, dominou (mas não publicou) as técnicas da Geometria Analítica antes de Descartes, deu início à Teoria das Probabilidades junto com Pascal e chegou às portas do Cálculo Diferencial e Integral. O grande Isaac Newton, o primeiro a desenvolver o Cálculo, conta em um manuscrito que a idéia básica do seu método de traçar tangentes a curvas (e que foi o fundamento do Cálculo Diferencial) foi obtida em um trabalho de Fermat.

Este pequeno relato nos permite avaliar a grandeza do nosso personagem e eliminar, de uma vez por todas, a falsa imagem que se tem da alegada incompatibilidade entre os advogados e a Aritmética.

Agora, vamos ao Outro belo teorema de Fermat. Os números primos, aqueles que somente são divisíveis por si mesmos e pela unidade, sempre encantaram os matemáticos por serem uma espécie de tijolos com os quais toda a Aritmética é construída e por apresentarem características verdadeiramente surpreendentes.

Carl Friedrich Gauss, um dos maiores matemáticos de todos os tempos, afirmou que “o problema de distinguir os números primos dos compostos e decompor os últimos em seus fatores primos é reconhecidamente um dos mais importantes e úteis na Aritmética”. Fermat pesquisou muito as propriedades dos números primos e um dia constatou algo que deu origem ao teorema de que estamos falando.

É sabido que, ao se dividir um número qualquer por 4, os restos da divisão somente podem ser  0, 1, 2 ou 3 (afinal, o resto de uma divisão não pode ser maior ou igual ao divisor, no caso 4). Os números que deixam resto zero são do tipo 4k (múltiplos de 4) e os outros são, evidentemente, do tipo  ,    e  . Os números do tipo  4k  e    são pares e, com exceção de 2, não podem ser primos. Portanto, concluiu Fermat, os números primos, fora o 2, estão divididos em dois grupos, um formado pelos do tipo    e outro pelos do tipo  . Exemplos de primos do primeiro grupo são  5, 13, 17, 29, 37, 41, 53, 61,  etc. e do segundo grupo são  7, 19, 31, 43,  etc.

Foi aí que Fermat detectou uma diferença fundamental entre os primos dos dois grupos: os do primeiro podem ser sempre e de um único modo, a menos da ordem das parcelas, decompostos como somas de dois quadrados perfeitos. Por outro lado, os do tipo    nunca podem ser decompostos daquela maneira. Abaixo encontram-se as decomposições dos exemplos dados de primos do tipo  :

Entretanto, por mais que tentemos, não encontramos formas de desdobrar  7, 19, 31, 43,  etc. em somas de quadrados. Fermat foi mais além, descobrindo que números não primos podem ter mais do que uma forma de decomposição em somas de quadrados. Por exemplo, 65 é    ou  .  Aliás, se um número tem mais do que uma forma de ser decomposto em somas de quadrados, pode-se garantir que ele não é primo, mesmo que não consigamos exibir nenhum de seus fatores.

A prova de que números primos do tipo    nunca podem ser decompostos em somas de quadrados é simples. Se existissem dois números que, elevados ao quadrado e somados, produzissem um primo, eles não poderiam ser, evidentemente, ambos pares ou ambos ímpares porque as somas seriam obrigatoriamente pares. Portanto, a única alternativa a considerar seria um par e outro ímpar. O quadrado de um número par é da forma    e o de um ímpar é da forma  ,  ou seja,  . Somando, teríamos  ,  e isso nunca pode ser do tipo    já que é do tipo  .

Infelizmente, a demonstração da outra parte, a que afirma que os primos do tipo    podem ser sempre e de uma única forma decompostos em somas de quadrados é muito complexa para ser explicada aqui.  Fermat, aliás, deixou apenas uma vaga indicação de como seria tal prova e foi Leonhard Euler quem, quase um século depois, a elaborou completamente.

Continuando a estudar os primos do tipo  , Fermat descobriu que, se elevarmos qualquer deles a uma potência inteira  s,  o número obtido é hipotenusa de  s  diferentes triângulos retângulos de lados inteiros.

Realmente, parece uma coisa de doido, mas é possível explicar isso através de um exemplo. Considere-se o menor dos primos do tipo  , ou seja, o número 5. Sua potência de ordem 1 só é hipotenusa de um único triângulo retângulo de lados inteiros, o famoso  (5, 4, 3).  Sua potência de ordem  2,  ou seja,  25,  é hipotenusa de  2  triângulos retângulos distintos de lados inteiros, a saber,  (25, 20, 15)  e  (25, 24, 7).  Sua potência de ordem  3,  ou seja,  125,  é hipotenusa de três triângulos retângulos distintos de lados inteiros, a saber,  (125, 100, 75),  (125, 120, 35)  e  (125, 117, 44).  E assim por diante.

É a esse pacote de propriedades dos primos do tipo    que estamos aqui chamando de Outro belo teorema de Fermat. Sobre ele, o matemático e autor norte-americano Willian Dunham disse tratar-se de um dos mais maravilhosos teoremas dentre todos, surpreendente, decisivo, preciso e totalmente não intuitivo. De fato, é algo tão singular que nos levanta a pergunta de como é que Fermat o descobriu. É muito difícil imaginar que Fermat tenha chegado a ele de uma forma dedutiva, parecendo mais provável que ele tenha visto alguma coisa que o levou a tirar aquelas conclusões. Em outras palavras, quem vê esse teorema fica a perguntar-se: o que estava fazendo Fermat quando o descobriu? Evidentemente, não é admitida a resposta trivial: “Estava descobrindo teoremas”.

Jamais encontramos na literatura especializada qualquer resposta a tal pergunta, o que não significa que ela não esteja por aí em algum livro não consultado. Entretanto, recentemente, de forma puramente acidental, estivemos em uma situação que pode ter sido a mesma vivida por Fermat quando “achou” seu teorema. Tudo começou quando escrevíamos um capítulo de um livro sobre a história da Geometria e decidimos mostrar como podem ser gerados todos os triângulos retângulos cujos lados são expressos por números inteiros. Quando, no ginásio, aprendemos o teorema de Pitágoras, logo nos dizem que  (5, 4, 3)  ou  (13, 12, 5)  são exemplos daqueles triângulos, mas as coisas costumam parar por aí.

Ocorre que a solução geral da equação    em inteiros é um belo exemplo dos raciocínios utilizados em Teoria dos Números e era isso o que se pretendia demonstrar e que vamos repetir aqui.

Procuremos ternos  a, b e c  inteiros que satisfaçam a igualdade    e suponhamos que não existam fatores (divisores) comuns aos três. Ao impor essa condição, estamos buscando as chamadas soluções primitivas, a partir das quais podem ser encontradas todas as outras, bastando multiplicar os 3 números por um fator inteiro qualquer  k. Por exemplo, encontrada a solução  (5, 4, 3),  também serão soluções  (5k, 4k, 3k).

Inicialmente, vemos que  b  e  c  não podem ser ambos pares, pois isso faria com que  a  também o fosse, de modo que os três números teriam o fator comum 2, contrariamente à hipótese. Se ambos fossem ímpares, teríamos    e  ,  de modo que    .

Não existe um número  a  inteiro satisfazendo tal condição, já que ele deveria ser par mas seu quadrado não seria divisível por 4 (deixaria resto 2), o que é impossível. Logo, entre  b  e  c,  um é par e outro é ímpar, o que obriga, também,  a  a ser ímpar. Suponhamos que  b  seja ímpar e  c  seja par (supor o inverso levaria ao mesmo resultado). Se  c  é par, ele é da forma  ,  onde    são fatores primos diferentes de  2 e    seus respectivos expoentes na decomposição de  c.

Como  ,   .

Analisemos a soma    e a diferença    dos números  a  e  b  que, como vimos, são ímpares.

Se     e  ,

   e 

Como vemos, a soma e a diferença têm o fator  2  em comum mas, se    e    são da mesma paridade,    é divisível por  2  apenas uma vez. Se    e    são de paridade diferente, é    que é divisível por  2  apenas uma vez. Ou seja, ou a soma ou a diferença de dois números ímpares é divisível por  2  apenas uma vez.

Se  c  contém  a  vezes o divisor  2,  então

.

Para acharmos    e    é preciso dividir este grupo de fatores primos em 2 blocos, sendo que um deles contém  2  apenas uma vez. Além disso, nenhum outro fator primo que aparecer em um dos blocos poderá aparecer no outro, porque, caso contrário, tal fator, dividindo    e  ,  dividiria a soma  2 a  e a diferença  2 b,  e, sendo ímpar, dividiria  a  e  b  e, conseqüentemente,  c,  o que contrariaria a hipótese.

Logo, os dois blocos são da forma

Assim, ou

ou

Na primeira alternativa tem-se

Chamando-se    de  m  e    de  n,  tem-se finalmente:

com  m  e  n  primos entre si e de paridades diferentes.

A outra alternativa conduziria a expressões com a mesma forma e está encontrada a maneira de gerar todos os ternos de números inteiros que medem os lados de triângulos retângulos, a partir de parâmetros  m  e  n  satisfazendo aquelas condições.

Isso posto, imaginamos que os leitores gostariam de ver uma tabela contendo, digamos, as  100  primeiras soluções (correspondentes aos menores valores de  m  e  n) primitivas da equação  . A tabela foi, realmente, gerada e está parcialmente mostrada neste artigo. Ao olhá-la com um pouco de atenção pudemos ver que ali estava o Outro belo teorema de Fermat, exibindo-se sem nenhum constrangimento!

Se não, vejamos. Todos os a’s da tabela, pela própria maneira como foram gerados, são somas de quadrados e, sejam primos ou não, são todos do tipo    e nenhum do tipo  . Veja-se, por exemplo, na tabela a hipotenusa  65 (número não primo): ela aparece em  2  triângulos. Já as hipotenusas que são números primos, como  73,  só aparecem em um triângulo.

O perspicaz Fermat não teria jamais deixado de observar isso se tivesse tido tal tabela em suas mãos e cremos que foi, realmente, o que aconteceu. Mas e o resto do teorema, aquela questão da potência  s  dos primos do tipo    serem hipotenusas de  s  triângulos retângulos distintos de lados inteiros? Ela também está na tabela, mas para vê-la é preciso de um cuidado especial, ou seja, lembrar que ali somente estão as soluções primitivas. Seja, novamente, o menor daqueles primos, o 5. Só há um triângulo primitivo de hipotenusa  5,  um primitivo de hipotenusa  25,  um primitivo de hipotenusa  125,  um primitivo de hipotenusa  625  e, de um modo geral, um primitivo de hipotenusa . Mas basta multiplicar os lados dos triângulos primitivos cujas hipotenusas são  , com  j  variando de    a  1,  por  5, 25, 125,  etc. que teremos os  s  triângulos de que falava Fermat, somente um deles sendo primitivo. Isso fica mais claro quando lembramos que, por exemplo, dos três triângulos mostrados anteriormente com hipotenusa  125,  somente  (125, 117, 44)  era primitivo. Os outros dois,  (125, 120, 35)  e  (125,100,75),  eram, respectivamente,  5  vezes o primitivo  (25, 24, 7)  e  25 vezes o primitivo  (5, 4, 3).

Danado esse tal de Fermat! Que olhos de lince tinha ele para enxergar tudo isso pela primeira vez! Depois que ele nos mostrou o caminho, tudo ficou simples, mas somente um gênio como ele teria a percepção necessária para encontrar tal tesouro no meio daquela selva...

O prezado leitor tem o direito e até a obrigação de dizer que olhar uma tabela e sair enunciando teoremas tão complexos não é coisa que se espere de um matemático rigoroso. A resposta a essa observação é sim e não.


m

n  

1

2

3  

4  

5  

6  

7

8

9

10  

11

12

13

14

15

1

 

5
3
4

 

17 15
8

 

37 35 12

 

65 63 16

 

101 99 20

 

145 143 24

 

197 195 28

 

2

 

 

13
5
12

 

29 21 20

 

53 45 28

 

85 77 36

 

125 117 44

 

173 165 52

 

229 221 60

3

 

 

 

25
7
24

 

X

 

73
55
48

 

109
91
60  

 

X

 

205
185  
84


4  

 

 

 

 

41
9
40  

 

65
33 56  

 

97 65 72

 

137 105 88

 

185 153 104

 

241 209 120  

5

 

 

 

 

 

61 11 60

 

89 39 80  

 

X

 

169 119 120

 

221 171 140

 

6

 

 

 

 

 

 

85 13 84  

 

X

 

157 85 132

 

205 133 156

 

X

7  

 

Os espaços preenchidos com  X representam duplas (m, n) divisíveis por algum fator comum. Por exemplo, m=15 e n=6 (divisíveis por 3)   leva ao triângulo

(261, 189, 180), que é semelhante a

(29, 21, 20)  

 

 

113 15 112

 

149 51 140

 

193 95 168

 

X

 

8

 

 

 

145 17 144

 

185 57 176

 

233 105 208

 

289 161 240  

9

 

 

 

 

181 19 180

 

X

 

277 115 252

 

10

 

 

 

 

 

221 21 220

 

269 69 260

 

X

11

 

 

 

 

 

 

265 23 264

 

317 75 308

 

12

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

313 25 312

 

X

13

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

365  
27
364

 

14

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

421 29 420  

O que acontece é que, ao contrário do que muita gente pensa e afirma, as verdades matemáticas nem sempre são descobertas por dedução. As provas, sim, são deduzidas, mas as descobertas podem surgir daquilo que se chama de reconhecimento de um padrão que dá origem a conjecturas que, se provadas, transformam-se em teoremas.

Levantar c onjecturas a partir do conhecimento de um padrão é uma coisa legítima e muitos teoremas surgiram assim, mas é preciso tomar muito cuidado antes de fazer afirmações precipitadas.

Em meados do século passado, por exemplo, o matemático francês Polignac levantou a conjectura de que todo número ímpar pode ser expresso como a soma de uma potência de 2 com um número primo. Embora tenha relatado que não havia ainda encontrado a prova, afirmou que testara sua conjectura para todos os ímpares abaixo de 3 000 000. Infelizmente, para Polignac, alguém destruiu sua conjectura mostrando que o ímpar 127, muito abaixo dos 
3 000 000 até onde ele afirmara ter checado, não pode ser decomposto daquela maneira. Foi um triste fiasco, mas o próprio Fermat também levantou uma conjectura inválida. Em uma de suas cartas a Pascal, ele afirmou que os números do tipo    são primos, embora tenha dito que não conseguira encontrar a prova. Um século mais tarde o grande Euler provou, por um belíssimo raciocínio, que    é divisível por  641,  destruindo a conjectura de Fermat.

No nosso caso, entretanto, as conjecturas que produziram o Outro belo teorema de Fermat foram demonstradas e é por isso e muito mais que nosso herói é lembrado com carinho até hoje.

 

Um método é um truque que funciona mais de uma vez
                                                                                                     George Polya