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O máximo
divisor comum, mdc, de dois números
inteiros é um tema que reaparece sempre em Matemática, tanto em nível básico
quanto em assuntos mais avançados, e por essa razão já foi tratado
diversas vezes na RPM
(ver [2], [4] e [5]). Infelizmente,
algumas abordagens do mdc no
ensino fundamental omitem um fato notável a respeito do máximo divisor
comum de dois inteiros: o de que é possível expressá-lo como uma
combinação linear desses dois números, ou seja: se
m for o mdc
de a e b, então é possível determinar inteiros s
e t
tais que m = sa
+ tb. Essa propriedade do mdc é tão importante em Aritmética, que alguns autores a chamam
de Teorema Fundamental da Teoria dos
Números, mais usualmente conhecido como Teorema de Bézout (ver [1]). Para
ilustrar a força desse teorema, podemos mencionar, por exemplo, que dele
decorre imediatamente que dois inteiros
a e
b
serão primos entre si se, e somente se, existirem inteiros
s e
t
tais que
. Um exercício interessante para o leitor é provar, a partir daí, o
fato básico da Aritmética: se um inteiro for divisor de um produto de
dois inteiros e for primo com um dos fatores, então será divisor do
outro fator. Além
disso, o artigo da RPM
em [4] mostra como esse teorema é utilizado para resolver diversos
problemas práticos de Aritmética. Alguns
colegas talvez estranhem que se esteja falando em coisas tão
importantes, mas que não constam dos programas usuais do ensino
fundamental e médio, ainda que sejam muito mais simples do que outros tópicos
de utilidade mais duvidosa que lá figuram. Bem, esperamos que essa situação
mude, e isso só pode ser feito por nós, professores de Matemática. Ouçamos
o que diz o prof. Miguel de Guzmán [3], atual presidente do Comitê
Internacional de Ensino da Matemática: A Matemática dos séculos XIX e XX tem sido predominantemente a Matemática do contínuo... [mas] ... o advento dos computadores, com suas ... possibilidades para a modelização sem passar pela formulação matemática de feitio clássico, abriu uma multidão de campos diversos, com origem já não mais na Física, como os desenvolvimentos dos séculos anteriores, mas em muitas outras ciências, como a Economia, as ciências da organização, ... A predominância dos algoritmos discretos, usados nas ciências da computação e na informática, ... deu lugar a um deslocamento da ênfase da Matemática atual na direção da Matemática discreta, que apresenta alguns conteúdos suficientemente elementares para poderem figurar com sucesso em um programa inicial de Matemática. ... A teoria elementar dos números, que nunca chegou a desaparecer dos programas de alguns países, poderia ser uma delas.
Bom, em primeiro lugar, é claro, é preciso
calcular o mdc dos números
dados. Os métodos mais populares para isso são: a decomposição dos números
em fatores primos e o algoritmo de Euclides. Qual é o mais indicado?
Nesse caso, a experiência com números pequenos é enganadora, e pode dar
a impressão (que já colhi de alguns professores) de que a decomposição
em fatores primos é mais rápida ou mais prática. Isso só funciona bem
para aqueles números que nós preparamos de antemão para nossos alunos
(são sempre os mesmos, cheios de divisores e com fatores primos baixos:
360, 840, etc.). É só experimentar números um pouco maiores, com poucos
fatores primos, para ver que o algoritmo de Euclides é muito mais
eficiente (ver [2]). E, principalmente, o algoritmo de Euclides depende
apenas de algo bastante elementar, a saber, divisões sucessivas com
resto, e não -
como o outro processo - de uma lista dada de números primos, o que
pode ser simples para números pequenos, mas que pode representar um
problema insolúvel para números grandes. De fato, dado um natural
n, não é conhecido um método
direto e eficiente para conhecer todos os primos que se deve testar como
possíveis divisores de n. O algoritmo de Euclides é realmente o método
mais rápido e conceitualmente mais rico dentre os conhecidos até hoje
para calcular o mdc de dois números
inteiros. E é admirável que seja o algoritmo mais antigo da história da
Matemática. Pois bem, aqui está mais uma vantagem do
algoritmo de Euclides: o melhor método para escrever o mdc de dois inteiros como combinação linear deles consiste em
eliminar os restos nas equações lineares que surgem durante o algoritmo
de Euclides. Exemplo:
Tomemos
e
. Primeiramente, aplicamos o clássico algoritmo de Euclides.
De
fato:
, que é o mdc de
a
e b. É
possível perceber, ao trabalhar com exemplos, que as expressões de
s e t só dependem dos
quocientes obtidos durante o processo (no caso: 2, 13, 1, 2
e 6). Mas a experiência
em sala de aula mostra que, quando se faz essa eliminação com números
concretos – como fizemos aqui –, o iniciante se atrapalha, realizando
indevidamente contas parciais, onde desaparecem os valores que não
deveriam ser eliminados. Esse
é mais um exemplo interessante em que as vezes, contrariamente ao que
pode parecer regra geral, é mais fácil resolver um problema em sua versão
literal do que com números concretos. Por
outro lado, a expressão literal explícita dos coeficientes s
e t
em função dos quocientes não tem aspecto agradável. No entanto,
uma lei de formação bem simples para os coeficientes permite produzir
uma fórmula de recorrência e um dispositivo prático para aplicar essa fórmula.
Antes de
deduzir o dispositivo prático, vamos vê-lo funcionando no exemplo
citado. Forma-se uma matriz com duas colunas, intituladas “q” e
“s, t”.
Primeiramente, preenche-se a coluna “q”
com os quocientes obtidos no algoritmo de Euclides (desprezando o último,
correspondente ao resto zero), na ordem contrária ao de seu aparecimento
no algoritmo, e deixando em branco a primeira linha. Na coluna “s,
t”, coloca-se o número 1 na primeira linha (é sempre 1
mesmo), e na segunda linha repete-se o valor do quociente que
aparece ao seu lado na primeira coluna. No nosso exemplo, fica:
A
partir daí, cada valor seguinte da coluna
“s, t”
vai sendo obtido de acordo com o seguinte esquema auto-explicativo:
Há a questão
dos sinais, isto é, o esquema só fornece os valores absolutos de
s
e t.
Para decidir sobre os sinais, aplica-se a seguinte regra: se o número de
quocientes aproveitados (ou seja, o número de linhas preenchidas na
coluna “q”) for ímpar, então
s é positivo e
t
negativo; se for par, ocorrerá justamente o contrário:
s é negativo e
t
é positivo. Deve ser notado que se pode também, em vez de decorar
mais uma regra, experimentar, comparando os valores de
e
. No exemplo,
e
, ficando claro que, para obter o mdc 3,
é necessário fazer
e
. Outro
exemplo:
e
.
Formando
então a matriz:
onde
mdc (a,
b). Os quocientes já foram
numerados de trás para frente, isto é, o último quociente
(correspondente ao resto 0) é q0,
o penúltimo é q1,
etc., e o primeiro é qn, para manter coerência com o dispositivo prático. Desprezando,
como se fez nos exemplos, o último quociente
q0, vê-se, da primeira equação, que
r1 pode
ser escrito como uma combinação linear de
a
e b,
ou seja,
. Substituindo esse valor na penúltima equação, vê-se que
r2 também
pode ser escrito como uma combinação linear de
a
e b, a saber,
. E assim por diante, para todos os r.
Em particular, calcula-se
m=n=sa+tb. Repare
que acabamos de demonstrar o Teorema Fundamental da Teoria dos Números.
Se o leitor não estiver satisfeito com o “e assim por diante”, pode
formalizar a demonstração por indução. É realmente fácil. Basta
observar que uma combinação linear de combinações lineares de
a e b é também uma
combinação linear de a
e b. Mas
para sentir como vão ser essas expressões dos
r
em função de a
e b, o leitor é
convidado a fazer experimentos (literais) com diversos valores crescentes
de n,
o número de restos não nulos. À medida que aumenta o número
n de quocientes
aproveitados, as expressões para os coeficientes da combinação linear
(vamos chamá-los de sn
e tn
) vão-se complicando, e as primeiras são as seguintes
(verifique!): |
A
lei de formação é clara (e pode ser verificada por indução):
com os valores iniciais:
s1 = 1 e t1 =
q1
. Observando
que cada s
repete o t
anterior, basta trabalhar com os
t e notar que, ao final do processo, o último valor é o
t
procurado, enquanto o penúltimo é o
s.
Foi por isso que introduzimos a coluna “s,
t” na matriz da nossa regra prática.
Além disso, levando em conta a alternância dos sinais, é suficiente
lidar com os valores absolutos de t,
tomando o cuidado de, no final, fazer a correção de sinal conveniente,
conforme n
seja par ou ímpar. Com essas providências, a lei de formação
fica:
, que
é justamente o que se fez na regra prática. Alguém
pode ainda perguntar: quando se escreve o máximo divisor comum de dois
inteiros como uma combinação linear deles, essa representação é única?
A resposta é não (ver [4], para maiores detalhes). Uma vez encontrados
s
e t tais que
, basta tomar um inteiro qualquer u,
e também será verdade que
, onde
e
, como pode ser verificado diretamente por substituição. Em nosso
primeiro exemplo, tomando
, temos:
s'=85+1143=1228, enquanto t'=5397248=7728. Verificando: s'a+t'b=
1228x7248+(7787)x1143=
89005448900541=3. Referências Bibliográficas [1]
Brucheimer, M. & Arcavi, A. A
visual approach to some elementary Number Theory. Mathematical
Gazette, 79, pág. 471, Nov. 1995. [2] Carvalho, J. B. Pitombeira de. Euclides, Fibonacci e Lamé. Revista do Professor de Matemática, 24, pág. 32, 1993. [3] Guzman, Miguel de. Tendencias inovadoras en Educación Matemática. Olimpiada
Matematica Argentina, 1992. [4] La Roque, Gilda & Pitombeira, J. B.. Uma equação diofantina e suas
resoluções. Revista do Professor
de Matemática, 19, pág. 39, 1991. [5] Oliveira, Z. C. Uma interpretação geométrica do mdc.
Revista do Professor de Matemática,
29, pág. 24, 1995. [6]
Ore, Oystein. Number Theory and its
History. Mc-Graw-Hill, 1948.
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