Gilda de La Roque Palis e Iaci Malta
PUC - RJ

Em sua autobiografia, Carl Gustav Jung1, um dos grandes pensadores da Psicanálise, lembrando de seus tempos de colégio, diz: “... o que mais me irritava era o princípio:  se    e se  , então  .  Tendo sido dado, por definição, que  a  é diferente de  b, por conseguinte não pode ser igual a  b, e ainda menos de  c. ... dizer que    me parecia uma fraude evidente, uma mentira”.

Assim como Jung, muitos de nossos alunos ficam atordoados ao tomarem contato com a linguagem matemática. Sentem-se como quem está participando de um jogo sem conhecer suas regras.

As regras do jogo do raciocínio matemático abstrato precisam ser aprendidas. Seu conhecimento é de fundamental importância para aprender Matemática e para empregar resultados matemáticos em aplicações nas mais diversas áreas científicas e tecnológicas.

Publicações de Educação Matemática e professores experientes cada vez mais insistem em que essas regras sejam trabalhadas com os estudantes, quanto antes melhor. Por outro lado, é importante desvincular o significado matemático (que é mais restrito) do significado de sentenças análogas na linguagem do cotidiano.

Como trabalhar essas regras e esses significados com nossos alunos, quando não é necessário, nem conveniente, nem possível em geral, lançar mão da linguagem rigorosa da Lógica?

Nossa opção com alunos ingressantes na Universidade tem sido a de trabalhar com exemplos escolhidos nas várias áreas da Matemática. Essa experiência tem alcançado considerável êxito.

Neste artigo, a título de sugestão de abordagem do tema, apresentamos exemplos de explicitação e utilização de algumas dessas regras.

 

     Proposições do tipo se A, então B  

Encontra-se com freqüência um tipo de proposição (sentença, frase) importante em Matemática: as proposições da forma  se A, então B,  onde A e B são frases, como nos exemplos a seguir:

Proposição 1:  Se m e n são inteiros pares, então o produto mn é um inteiro par.

Proposição 2:  Se m é inteiro ímpar, então  , para algum número inteiro  k.

Na proposição 1, por exemplo,  A  é a frase “m e n são inteiros pares”, e B é a frase “o produto mn é um inteiro par”.

É muito comum que, num tal contexto, a frase  A  seja chamada de hipótese da proposição e a conclusão  B  de tese.

Ao ler as proposições acima, um matemático logo dirá que a proposição 1 é verdadeira e a proposição 2 é falsa. Mas, o que significa isso? Eis aqui nossa primeira regra:

Uma proposição  Se A, então B  é verdadeira quando em todas as situações nas quais a hipótese se verifique a tese também esteja satisfeita. E é falsa quando não for verdadeira.

Concluímos que uma proposição é falsa quando existe um objeto matemático2 que satisfaz a hipótese  A  e não satisfaz a conclusão  B. Um tal objeto se diz contra-exemplo para a proposição   se A, então B.

Por outro lado, um objeto matemático que satisfaz a hipótese  A  e a tese  B  se diz um exemplo para a proposição   se A, então B. Em relação às proposições 1 e 2 anteriores, temos:

·  A dupla de inteiros  6 e 8  é um exemplo para a proposição 1, pois  6  e 8  são inteiros pares e seu produto 48 é par. Essa proposição não admite contra-exemplo pois, como já adiantamos, ela é uma proposição verdadeira, o que será mostrado mais para a frente. Então qualquer dupla de inteiros pares é um exemplo para a proposição 1;

·   O inteiro 19 é um exemplo para a proposição 2, pois 19 é ímpar e , enquanto o inteiro 5 é um contra-exemplo para essa proposição. Com efeito, a hipótese se verifica, pois 5 é ímpar, mas a conclusão não é válida porque , qualquer que seja o inteiro  k (ou  seria esse inteiro  k).

Mas, cuidado:

Enquanto um só contra-exemplo permite concluir que um enunciado é falso, não basta exibir exemplos para mostrar que uma proposição seja verdadeira.

Esse é um erro muito comum. Freqüentemente, nossos estudantes examinam alguns casos e já concluem que a proposição é verdadeira, sem atentar para a exigência de que ela só se diz verdadeira se valer para todos os casos.

Um bom exemplo para ilustrar o perigo de tal atitude é dado pela proposição:

“Se  n  é um inteiro positivo, então    é um número primo”.

Podemos verificar que para  , ,  etc. até , tem-se que    é um número primo. No entanto, para  ,  obtemos

que não é primo. Portanto a proposição é falsa. Esse e outros casos estão no artigo Vale para 1, para 2, para 3, ... Vale sempre? (RPM 9, pág. 32).

Então, como mostrar que uma proposição do tipo   Se A, então B  é verdadeira? Antes de responder a essa questão, lembramos que proposições desse tipo podem ter outras formulações equivalentes. Listamos as mais usuais:

·     na forma  A implica B,  abreviada, às vezes, pela notação  A B (daí o fato de esse tipo de proposição ser chamado  implicação).

·      Se  A  for verdadeira, então   B  será verdadeira.

·      Se  A  for válida, então  B  será válida.

·      B  é verdadeira desde que  A  seja verdadeira.

·      B  é verdadeira se  A  for verdadeira.

·      A  é uma condição suficiente para  B.

·      B  é uma condição necessária para  A.

·      A  será verdadeira somente se  B  for verdadeira.

Todos esses enunciados querem dizer a mesma coisa. Ao dizer que todas essas sentenças são reformulações de   Se A, então B,  estamos dando convenções quanto ao uso da linguagem matemática. Em particular, estamos explicitando os significados dos termos condição necessária, condição suficiente  e  somente se  na linguagem matemática. Além disso, proposições implicativas podem estar formuladas sem o emprego da palavra  Se. Observe que a proposição 1 pode ser reformulada das seguintes maneiras equivalentes:

   O produto de dois inteiros pares é um inteiro par.

   Para toda dupla de inteiros pares m e n tem-se que seu produto  mn  é par.

   O produto de inteiros  mn  é par desde que  m e n  sejam inteiros pares.

   Para que o produto dos inteiros m e n seja par, é suficiente que m e n sejam pares.

 

Diferentes modos de provar que uma proposição da forma  Se A, então B  é verdadeira  

Não temos aqui a pretensão de estudar técnicas de demonstração de forma abrangente. Além de essas habilidades só poderem ser tratadas adequadamente em nível mais avançado, não se pode dizer que exista uma prática uniforme, objetiva e bem estabelecida de demonstração em Matemática. Haja vista a recente discussão em torno de provas produzidas por computadores. Neste artigo, chamamos de prova ou demonstração um argumento convincente escrito em linguagem matemática.

Para provar que uma proposição do tipo   Se A, então B   é verdadeira é preciso mostrar, como vimos, que a tese é verdadeira em todos os casos que satisfazem a hipótese. Os métodos mais comuns para fazer essa prova são os seguintes:  

1.  Demonstração direta: verificação direta da tese para todos os casos em que a hipótese é válida.

2.  Demonstração por meio de argumentos lógicos: por      argumentação, verifica-se que a tese é válida para os casos que  satisfazem a hipótese.

3.  Demonstração por contradição (ou por absurdo): verificação de que a presença de um contra-exemplo conduz a um absurdo.  

A seguir, apresentamos alguns exemplos:

 

     Demonstração direta  

Exemplo 1:  “Se  , então n é um número primo”  é uma proposição verdadeira.

Nesse caso, em se tratando de um número finito e pequeno de casos possíveis, basta examiná-los um a um. Como todos os inteiros 3, 17, 31, 19  são primos, a proposição é verdadeira.

 

     Demonstração por meio de argumentos lógicos  

Exemplo 2: Voltemos à proposição 1:  “Se  m  e  n  são inteiros pares, então o produto  mn  é um inteiro par”  para mostrar que é uma proposição verdadeira.

Desta vez não dá para examinar todos os casos um a um pois há infinitos deles. Assim mesmo é possível verificar que a tese é verdadeira em todos os casos que satisfazem a hipótese, escrevendo:

  e  ,  onde  k  e  j  são inteiros.

Fazendo o produto, obtemos  , que é par. Logo, a proposição é verdadeira.

  assume somente valores negativos” é uma proposição verdadeira.

A tendência de nossos estudantes num caso como esse é a de verificar que os valores da função são negativos para alguns valores de  x, o que não é uma demonstração de que a proposição é verdadeira. É preciso mostrar que a função é negativa para todos os números reais positivos.

 

     Demonstração por contradição (ou por absurdo)  

Esse método é bastante utilizado no caso de proposições cuja verdade ou falsidade queremos determinar e não conseguimos mostrar que a tese é satisfeita em todas as situações nas quais a hipótese se verifica, nem conseguimos produzir um contra-exemplo.

Exemplo 4: “Se  n  é um inteiro e    é par, então  n  é par” é uma proposição verdadeira.

Seja  n  um inteiro, tal que  é par. Suponhamos que  n  não seja par, isto é, que  n  é ímpar. Então  , onde  k  é um inteiro e   . Temos então que    é ímpar, contradizendo o fato de    ser par. Logo a proposição é verdadeira.

Exemplo 5: “As funções polinomiais   e    não têm um zero comum”  é uma proposição verdadeira.

Observe que essa proposição pode também ser escrita da seguinte forma:

“Sejam   e  . Se    e  , então  ”.

Uma demonstração direta de que essa proposição é verdadeira consiste em calcular os zeros das funções  f  e  g,  e verificar que nenhum dos zeros de  f  é também um zero de  g. A demonstração alternativa que sugerimos a seguir é por absurdo e bem mais compacta.

Suponhamos que a proposição é falsa, ou seja, que as funções dadas têm um zero comum, que denotaremos por  a.  Então  ou

,  ou  ,

e daí,  , o que é uma contradição, pois  0  não é solução nem de   nem de  . Logo a proposição dada é verdadeira.

Observe que demonstrações por contradição (ou por absurdo) podem ser detectadas por apresentarem no seu início frases como  “Suponhamos que a proposição seja falsa (isto é, admite contra-exemplo)”,  e ao final sentenças como   “e assim chegamos a uma contradição (ou absurdo), logo a proposição é verdadeira”.

Exemplo 6:  “Se há  n    pessoas em uma festa, então há pelo menos duas pessoas que têm o mesmo número de amigos na festa.”  é uma proposição verdadeira3.

Inicialmente observe que uma pessoa qualquer na festa pode ter   ou  amigos presentes. Ou seja, há  n  possibilidades quanto ao número de amigos que uma pessoa pode ter na festa.

Supondo, por absurdo, que nenhum par de pessoas na festa tem o mesmo número de amigos presentes, cada pessoa terá um número diferente de amigos na festa, isso significa que uma pessoa que chamaremos de   tem 0 amigo na festa, uma pessoa    tem 1 amigo na festa, uma pessoa    tem 2 amigos na festa, etc., até que finalmente uma pessoa    tem    amigos na festa.

A pessoa  , que tem    amigos na festa, é então amiga de todas as outras pessoas presentes, isto é, de   e  . Chegamos assim a um absurdo, pois    é amiga de  ,  que não tem amigos na festa. Logo a proposição é verdadeira.

Observação 1: Quando não existe objeto satisfazendo a hipótese  A, a proposição   Se A, então B   se diz verdadeira (por vacuidade). Nesse caso, um contra-exemplo seria um elemento no conjunto vazio e esse seria o absurdo. Esse tipo de verificação é também chamado implicação vazia. É o que se dá no exemplo a seguir.

Exemplo 7: “O conjunto vazio é subconjunto de qualquer conjunto”, que pode ser traduzido como: “Se , então A”.

Observação 2: Há demonstrações em que várias implicações são empregadas em cadeia. Assim, uma demonstração de que  A implica B  pode ser realizada através de uma cadeia de proposições como as seguintes:
A implica C,  C implica D  e  D implica B.  

 

     Recíproca da proposição  Se A, então B  

Dada uma proposição   Se A, então B,   a sentença   Se B, então A   é chamada  recíproca  da primeira.

É claro que a recíproca da recíproca de uma proposição é ela própria, daí falarmos também de duas  proposições recíprocas.

Embora ligando as mesmas frases, como a hipótese de uma vira tese de outra e vice-versa, uma proposição e sua recíproca podem não ter a mesma natureza:  uma pode ser verdadeira e a outra, falsa; ambas podem ser verdadeiras ou ambas podem ser falsas.

Exemplo 8: A recíproca da proposição 1 é a proposição  “Se o produto  mn  de dois inteiros é par, então cada um dos inteiros  m, n  é par”.

Embora a proposição 1 seja verdadeira, sua recíproca é falsa, como se vê com o contra-exemplo    e  .

Exemplo 9: A recíproca da proposição  “Se  m e n  são inteiros ímpares, então o produto  mn  é ímpar” é a proposição  “Se o produto  mn  de dois inteiros é ímpar, então cada um dos inteiros  m, n  é ímpar”. Deixamos a cargo do leitor verificar que ambas as proposições são verdadeiras.

 

     Proposições do tipo A se, e somente se, B   

Se queremos considerar simultaneamente a proposição   Se A, então B   e sua recíproca   Se B, então A,   usamos a frase   A se, e somente se, B.

Proposições desse tipo podem ser formuladas de várias outras maneiras, dentre elas:

·      A  implica  B  e reciprocamente,  abreviada às vezes pela notação   A Û B;
·      Se  A,  então B e reciprocamente;
·      A  é verdadeira se, e somente se,  B  for verdadeira;
·      A  é uma condição necessária e suficiente para  B;
·      A  e  B  são proposições equivalentes.

E eis aqui uma outra regra:

Uma proposição do tipo   A se, e somente se, B   é verdadeira quando   Se A, então B   e   Se B, então A   são ambas verdadeiras. Caso contrário é falsa.  

Pelo exemplo  9  anterior, vê-se que a proposição  “O produto mn  de dois inteiros é ímpar se, e somente se, cada um dos inteiros  m, n  é ímpar”  é verdadeira.

O exemplo  8  mostra que a proposição   “O produto  mn  de dois inteiros é par se, e somente se, cada um dos inteiros  m, n  é par” é falsa, embora seja válida num dos sentidos.

 

     Negação de uma proposição  

Para o iniciante nem sempre é fácil negar uma proposição. No entanto, saber enunciar a negação de uma proposição é freqüentemente útil em demonstrações. Designamos a negação de uma proposição P  por   não P. A negação de uma proposição  P  tem a propriedade que sua negação é  P,  isto é,   não (não P)  é  P.

Exemplo 10: Enunciamos, para exemplificar as negações das proposições 1 e 2, dadas no início deste artigo:

Negação da proposição 1: Existe uma4 dupla de inteiros pares m e n cujo produto  mn  não é um número par. (Falsa)

Negação da proposição 2: Existe um inteiro ímpar m tal que    qualquer que seja o inteiro k. (Verdadeira)  

Dizemos que   não P   é verdadeira quando  P  é falsa e dizemos que   não P   é falsa quando  P  é verdadeira.  

Apesar de não pretendermos nos estender sobre o problema delicado de negar proposições, alguns comentários que faremos abaixo podem auxiliar essa tarefa.

A proposição:   “Se  m  é um inteiro múltiplo de 3, então  m  é um múltiplo de 9”   pode ser reformulada no seguinte enunciado “Para todo inteiro  m  que goza da propriedade de ser múltiplo de  3  tem-se que  m é um múltiplo de 9”. E sua negação é: “Existe um inteiro  m  que é múltiplo de 3 e não é múltiplo de 9”.

Observe que isso é uma regra geral:  

A negação de uma proposição do tipo: Para todo objeto, com uma certa propriedade, algo acontece é: Existe um objeto com a certa propriedade, tal que aquele algo não acontece.  

E vice-versa:

A negação de uma proposição do tipo: Existe um objeto, com uma certa propriedade, para o qual algo acontece é: Para todo objeto com a certa propriedade, aquele algo não acontece.

Finalmente, observamos que a grande queixa do Jung era anterior a essa discussão lógica. No dizer dele próprio, sua grande confusão vinha da substituição dos números, que ele compreendia, por letras, o que ele nunca aceitou!

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1 C.G. Jung. Memórias, sonhos, reflexões. Editora Nova Fronteira, 1961. págs. 38-39.

2 Um objeto matemático é um número, uma expressão algébrica, uma função, uma figura geométrica, etc.
3  Esse é um problema bastante conhecido; a versão que apresentamos encontra-se em A Matemática do Ensino Médio, Volume 1. Coleção do Professor de Matemática, SBM (1996), pág. 47.
4 Em “existe uma” ou “existe um”, esse “uma” ou “um” deve ser entendido no sentido de “alguma” ou “algum” isto é, no sentido de “pelo menos uma” ou “pelo menos um”, não no sentido de “somente uma” ou “somente um”, salvo menção explícita, quando se diz, em geral, “existe um e um só” ou “existe um único”.