|
|
||||
Sônia
P. Carvalho
Nosso
objetivo é estudar a dinâmica
de um número positivo menor do que 1 pela aplicação da função onde
significa tomar a parte
inteira do número 2x. Este
é um exemplo interessante: apesar de relativamente fácil de ser
estudado, permite observar alguns dos conceitos sofisticados que aparecem
no estudo de sistemas caóticos. Vamos
começar observando como funciona a função
f (x)
. Para
,
. Para
,
. Observe
a tabela
Tomemos
o ponto
e vejamos como ele
evolui se aplicamos sucessivamente a função
. Vemos pela tabela que
é levado pela
f
em
, que, por sua vez, é levado
pela f em
, que é levado em
, que é levado em
, que é levado em
, que volta a ser levado em
e daí forma-se um
ciclo. Esquematicamente podemos escrever:
ou,
se preferirmos, podemos fazer graficamente,
O
chama-se
a órbita do ponto
pela função
. É
um bom exercício para o leitor achar a órbita de
.
Todo
número inteiro positivo, no sistema decimal, é representado como soma de
unidades, dezenas, centenas, etc., isto é, como soma de diferentes potências
de 10, com coeficientes cujo valor vai de 0 a 9. Por exemplo: 2 728 é 2
milhares, 7 centenas, 2 dezenas e 8 unidades, ou seja,
. Na
base 2 as coisas funcionam de maneira análoga. Um número inteiro
positivo na base 2 é representado como soma de potências de 2, com
coeficientes valendo 0 ou 1. Por
exemplo,
. Assim, 7, na base 2, se escreve 111. Podemos
escrever:
No
sistema decimal um número menor do que 1 aparece na forma
onde os
’s tem valor de
0 e
9. Eles correspondem a somas de potências de expoente negativo
de 10. Por exemplo,
. Na
base 2
acontece a mesma coisa, só que com potências negativas de
2 e os coeficientes só
podem valer 0
ou 1. Por exemplo,
é um número menor que
1 representado na base
2, correspondendo, na
base 10, à seguinte soma de potências negativas de
2:
. Os números, representados na base 2, e são, na base 10,
.
Dobrar um número na base 2 é muito bacana. Vejamos num exemplo como funciona. Seja um número representado na base 2.
Logo,
. Logo,
na base 2 temos:
e
. Vemos
que multiplicar por 2, na base 2, é andar com a vírgula para a direita.
Observe também que dividir por 2 corresponde a andar com a vírgula para
a esquerda. Exatamente como acontece na base
10, ao se multiplicar e dividir por
10. De
volta a y = f(x)
= 2x
[2x] Tome
, escrito na base 2. A órbita de
é o conjunto O
, onde
,
,
, etc.
,
,
,
,
, e então
. Observe
também que
, ou, melhor ainda,
que
, para todo
n.
A órbita desse ponto tem um ciclo de período 3. Deixamos
para o leitor achar as órbitas de
,
Elas têm ciclo?
Você
deve ter observado que, se um número escrito na base
2 tem uma representação
finita, a órbita dele vai até o zero e fica por lá. Se o número tem
uma representação periódica, a órbita, a partir de uma certa hora,
começa a se repetir, fazendo um ciclo. E, se a representação é
infinita e não é periódica, a órbita fica “passeando” pelo
segmento
, sem parar em lugar nenhum e
sem formar ciclos. Assim, o comportamento da órbita de
está completamente
determinado pela representação de
na base
2. Um
número real pode ser um racional, isto é, uma fração da forma
, com
p
e q
números inteiros, ou um número irracional, que são os que não são
frações, como
, p,
e, etc. Não
é difícil mostrar que a representação de uma fração na base 2 é
finita se e somente se o denominador é uma potência de 2 (estamos
falando de frações na forma reduzida, isto é, com numerador e
denominador primos entre si). Observemos
agora o que acontece com as representações periódicas. Tomemos
.
, isto
é, uma fração com denominador diferente de uma potência de 2 (e tinha
mesmo que ser, pois já vimos que, se o denominador fosse potência de 2,
então a representação seria finita!). Observemos
agora ao contrário. Tomemos
, uma fração cujo denominador não é uma potência
de 2.
. Vemos
que
é a soma de uma PG,
com
e
. Logo,
e
sua representação na base 2 é
O
que esses exemplos sugerem (e isso pode ser demonstrado) é que uma fração
cujo denominador não é uma potência de 2 dá uma representação periódica
na base 2. Na
verdade, toda fração, ou número racional, quando escrita na base 2, ou
tem um desenvolvimento finito (se o denominador é potência de 2) ou tem
uma representação infinita e periódica (no caso contrário), e
vice-versa. E os números irracionais terão representação infinita e
que não se repete. Juntando
esses fatos com o que sabemos sobre a relação entre representação na
base 2 e comportamento das órbitas, podemos fazer o seguinte resumo: |
Imagine
uma função que apresente as seguintes características: 1)
Existem órbitas
periódicas de todos os períodos. (Embora cada órbita periódica seja
simples, a presença de todos os períodos torna a evolução do sistema
mais complexa.) 2)
Existe
sensibilidade em relação aos dados iniciais, isto é, em todas as regiões
podemos observar pontos que num certo instante estão próximos e após
algum tempo estão muito afastados. (Esse fenômeno de espalhamento das órbitas
torna muito difícil a tarefa de fazer previsões sobre sistemas caóticos.
É o que ocorre com as previsões meteorológicas.) 3)
Existe uma órbita
que se espalha de tal maneira que, não importa onde estejamos, em algum
instante ela se aproximará (arbitrariamente) de nós. O
leitor consegue imaginar tudo isso ocorrendo ao mesmo tempo? É
o caos!
Ou seja, toda função que apresenta as características descritas
nos itens acima, tem uma dinâmica
caótica. Para
muitos cientistas, basta haver sensibilidade em relação aos dados
iniciais para que haja caos. Vamos
ver agora que a função
, definida para
, tem as características
descritas em 1),
2) e 3).
Os
números cuja representação na base 2 é periódica tem ciclos em suas
órbitas. Por exemplo:
tem
como órbita
O
, isto é, um ciclo de tamanho 3.
tem como órbita
, isto é, um ciclo de tamanho 5. Chamamos
de período da órbita o tamanho do ciclo. Então, o período será o número
de casas da parte que se repete na representação do número na base 2.
Como podemos inventar números com partes que se repetem com qualquer
tamanho, teremos órbitas periódicas, com qualquer período.
Para
saber se dois números estão próximos, precisamos calcular a distância
entre eles. Mas calcular a distância entre dois pontos na reta é pegar o
valor absoluto da diferença entre eles, ou seja, distância
. Por
exemplo, se
e
, como
(compare as 7 primeiras
casas depois da vírgula), temos distância
. Assim,
. Mas
, pois
é a soma da PG de razão
e
primeiro termo 1. Assim,
O mesmo raciocínio nos fará concluir que, se dois números têm as k primeiras Observemos
as órbitas de
e
(a distância entre
e
é menor do
Já
a O
(
) começa a se repetir a
partir da oitava casa com
,
,
,
, etc. ..., formando um ciclo de período 2. Observemos também que
está à direita de 1/2, isto é, é maior do que
1/2, e
y9
está à esquerda de
1/2
, isto é, é menor do que
1/2
.
Como
e
, então
dist
, o mesmo acontecendo com
,
. O
ponto
tem o dígito 1 na 2a
casa, está à direita de
e, logo,
dist
, o mesmo acontecendo com
,
. Conclusão:
O que observamos é que, apesar de as órbitas de
e
começarem bem pertinho
(dist
), elas só ficam perto
durante um certo tempo. Para
, dist
, isto é, os pontos se
afastam. Isso é verdade para as órbitas de quase todo par de pontos que
tomarmos. Esse fenômeno chama-se sensibilidade
em relação às condições iniciais e é um dos fenômenos que
caracterizam um sistema caótico.
Vamos
achar um ponto
e mostrar que sua órbita
passeia por todo o intervalo
. Matematicamente, dizer que a órbita passeia é dizer que essa órbita se aproxima de qualquer ponto do
intervalo, tão perto quanto se quiser. Ou seja, dado um ponto
do intervalo O
ponto
será construído por
passos, como mostrado a seguir. Observemos
primeiro que podemos construir blocos de tamanhos variados usando
0’s e 1’s. Por exemplo, com uma casa apenas temos os blocos:
0 e
1. Com duas casas temos 4 blocos:
00, 01, 10 e
11. Com 3 casas temos 8 blocos: 000, 001, 010, 100, 011, 101, 110
e 111. Com 4 casas
temos 16 blocos: 0000, 0001, 0010, 1000, 0100, 0011, 0101, 1001, 0110,
1100, 1010, 0111, 1011, 1101, 1110 e 1111. Por meio da análise combinatória,
sabemos que existem
blocos com k
casas, usando os dígitos 0 e 1 para preenchê-las. O
ponto
é construído
colocando-se 0, vírgula e depois os blocos com 1 casa, seguidos dos
blocos com 2 casas, depois os com 3 casas e assim por diante, dando:
bloco 001 corresponde às 3 primeiras casas de e aparece no grupo dos blocos com 3 casas. Não é difícil ver que e, assim, e têm as 3 primeiras
Assim,
a órbita de
é uma que passeia
pelo intervalo todo! Referências
Bibliográficas e Leituras Recomendadas [1] Fomin, S. V. Sistemas de numeração.
Editorial Mir, Moscou, 1984. [2] Ifrah, Georges. Os números: a história de uma grande invenção. Editora
Globo, 1989. [3] Niven, Ivan. Números
racionais e irracionais. Coleção Fundamentos da Matemática
Elementar, Sociedade Brasileira de Matemática, 1961. [4] Bogutchi, Tânia. Aritmética elementar em computadores, monografias de especialização,
Departamento de Matemática, UFMG, 1991. [5] Gleick, James. CAOS - A criação de uma nova ciência. Editora
Campus, 1991. [6]
Stewart, Ian. Será que Deus
joga dados? A nova matemática do caos. Jorge Zahar Editor, 1991. [7] Ruelle, David. Acaso e Caos. Editora
UNESP, 1993. [8]
Peitgen H.O., Jurgens, H., Saupe D. Fractals
for the Classroom. Springer Verlag, Berlim, 1992. [9]
Devaney, Robert. A First Course in
Chaotic Dynamical Systems. Addison-Wesley Pub. Comp., Inc.,
1992.
__________ |