|
|
||||
Precedendo o lançamento do primeiro
número da RPM, que ocorreu no
segundo semestre de 1982, a Sociedade Brasileira de Matemática divulgou um
folheto contendo uma pequena amostra das seções que a nova revista traria.
Um dos quadros daquele folheto apresentava uma lista de dez perguntas a
serem respondidas por mim na seção “Conceitos e Controvérsias”. A oito delas
eu de fato respondi, mas as duas últimas ficaram até hoje sem minha
resposta. A fim de resgatar metade da dívida, discutirei agora a pergunta
número 10 da lista.
A pergunta formulada era: “Quantas
dimensões tem o espaço?”. Mas, como ninguém duvida que vivemos num espaço
com três dimensões, é melhor pôr a questão sob a forma do título acima.
O objetivo a que me proponho fica
sendo o de explicitar, entre as proposições básicas da Geometria que
ensinamos, quais as que exprimem, direta ou indiretamente, a
tridimensionalidade do espaço.
A priori,
é evidente que alguns dos teoremas que demonstramos no estudo costumeiro da
Geometria Espacial devem fazer uso, ainda que implicitamente, dessa
tridimensionalidade.
Um dos primeiros postulados da
Geometria Espacial assegura que, fora de qualquer plano dado, existe pelo
menos um ponto do espaço. Isso significa que a dimensão do espaço é pelo
menos igual a três.
Entretanto, os textos usuais de
Geometria não costumam declarar explicitamente qual, entre os postulados que
admitem, é aquele que impede que o espaço tenha quatro, cinco ou mais
dimensões. O único livro elementar de Geometria que conheço onde a
tridimensionalidade do espaço é mencionada explicitamente é a Introdução
à Geometria Espacial, de Paulo Cezar P. Carvalho.
No que segue, destacarei quatro
proposições geométricas que caracterizam a tridimensionalidade do espaço e
provarei que elas são logicamente equivalentes umas às outras.
Um ponto tem dimensão zero, por
definição. É natural admitir isso, pois não há mesmo lugar para nos
movimentarmos dentro de um ponto.
Por outro lado, sentimos que uma reta
deve ter dimensão 1, pois só tem comprimento, mas não largura
nem altura. Já Euclides dizia: “Um ponto é aquilo que não tem partes
e uma linha é um comprimento sem largura”.
Mas que propriedades geométricas
traduzem esse sentimento intuitivo de que uma reta é unidimensional?
Em primeiro lugar, uma reta contém ao
menos dois pontos, logo contém o segmento que os liga. Contendo segmentos, a
reta não tem dimensão zero.
Além disso (e principalmente), se
retirarmos de uma reta r qualquer um dos seus pontos P, ela
ficará decomposta como reunião de duas partes disjuntas
e
,
chamadas as semi-retas (abertas) de origem P, com as
seguintes propriedades:
1)
Se os pontos A e B da reta r pertencem a
uma dessas semi-retas (por exemplo, e
), então o segmento AB está contido
nessa mesma semi-reta ( ).
2)
Se o ponto está numa dessas
semi-retas (digamos ) e o ponto
está na outra (
), então o segmento contém o ponto P.
Para expressar as propriedades 1) e 2)
resumidamente, diz-se que todo ponto separa
a reta r. Diz-se ainda que uma reta tem dimensão 1 porque
é separada por qualquer dos seus pontos.
1)
Se os pontos A e B do plano
pertencem ambos a um desses semiplanos
(digamos,
e ),
então o segmento está contido nesse
semiplano (
).
2)
Se o ponto pertence a um desses
semiplanos e o ponto pertence ao outro,
então o segmento intersecta a reta r.
Resumindo essas duas propriedades,
diz-se que toda reta
separa o plano
. Por ser separado por qualquer de suas
retas e não ser separado por nenhum dos seus pontos, o plano tem
dimensão 2.
Observação.
Sejam e
os semiplanos abertos que a reta r
determina no plano . Sejam ainda A
um ponto em e B um
ponto em . Qualquer poligonal no plano
que comece em A e termine em B
deve cortar a reta r. Com efeito, ordenemos os vértices ao longo da
poligonal, consecutivamente, partindo de A e chegando a B.
Seja U o último vértice que ainda está em
. Então
, pois
.
Vejamos agora o que acontece no
espaço E, no qual estamos imersos.
Evidentemente, um ponto P não
separa o espaço E: dados os pontos A,
, diferentes de P, podemos ligar
A a B por um segmento, ou por uma poligonal de dois lados, sem
passar por P.
A experiência nos mostra, entretanto,
que, se retirarmos do espaço E um plano arbitrário
, os pontos restantes se repartem em dois
subconjuntos disjuntos S e
,
chamados os semi-espaços (abertos) que têm como fronteira comum o
plano . Os semi-espaços S e
gozam das seguintes propriedades:
1)
Se os pontos A e B pertencem ambos a um desses
semi-espaços, então o segmento está
inteiramente contido nesse semi-espaço.
2)
Se o ponto pertence ao
semi-espaço S e o ponto
pertence
ao outro semi-espaço , então o segmento
intersecta o plano
.
Para facilitar referências
posteriores, destaquemos a proposição:
A)
Todo plano separa o espaço.
Se o espaço em que vivemos tivesse
quatro dimensões (ou mais), um plano não o separaria, do mesmo modo que uma
reta não separa o espaço tridimensional. Com efeito, podemos imaginar, num
espaço quadrimensional Q, dois pontos A, B fora de
um plano . Se o segmento AB
intersecta , então AB e
determinam um subespaço tridimensional
. Fora de E existe um ponto C.
A poligonal liga os pontos A e
B sem passar pelo plano .
Observações:
1)
De modo análogo ao caso do plano, visto antes, mostra-se que, se
A e B são pontos pertencentes a semi-espaços distintos
determinados por um plano , então toda
poligonal que comece em A e termine em B deve conter algum
ponto de .
2)
Sejam A e B dois pontos não pertencentes ao plano
. Se o segmento AB contiver algum
ponto de , então A e B
estão situados em semi-espaços distintos determinados por
.
A propriedade que tem o espaço de ser
separado por qualquer dos seus planos é uma constatação intuitiva,
decorrente da experiência que temos em relação ao ambiente que nos envolve.
Ela é uma formulação, em termos geométricos, da afirmação de que o espaço
não possui mais do que três dimensões. Há outras proposições geométricas que
traduzem a mesma idéia. Qualquer uma delas pode ser admitida como postulado,
demonstrando-se as outras a partir dela, como um teorema. No que se segue,
veremos outras formas alternativas de caracterizar geometricamente a
tridimensionalidade do espaço.
Uma dessas alternativas, que
examinaremos agora, consiste na seguinte proposição:
B)
Se dois planos têm um ponto em comum, eles têm uma reta em comum.
Como se sabe, isso equivale a dizer
que dois planos no espaço não podem ter apenas um ponto em comum. Com
efeito, se os planos e
, que têm o ponto A em comum, forem
obrigados a ter outro ponto B em comum, então a reta AB
está contida em e
pois a reta que tem dois dos seus pontos
num plano está toda contida nesse plano.
A propriedade B) significa que o
espaço em que vivemos não possui suficiente amplitude para conter dois
planos com apenas um ponto em comum. Sua tridimensionalidade permite que uma
reta e um plano se intersectem num único ponto mas não há lugar suficiente
para afastar um plano do outro de modo a que eles se cortem num ponto
apenas.
Talvez entendamos melhor a situação se
imaginarmos, mais uma vez, um espaço quadridimensional Q contendo o
plano . Neste plano, fixamos um ponto A
e, fora dele, outro ponto B. A reta AB e o plano
determinam um subespaço tridimensional
E. Como Q tem dimensão 4, podemos tomar um ponto C,
fora de E. Então C não pode estar na reta AB,
logo A, B e C determinam um plano
. Os planos
e , no espaço Q a 4 dimensões,
têm em comum apenas o ponto A. Com efeito, se houvesse outro ponto
, comum a
e , o plano
conteria os três pontos não colineares
A tridimensionalidade do espaço pode
ainda ser caracterizada mediante a seguinte proposição.
C)
Por um ponto dado num plano passa uma única reta perpendicular a
esse plano.
Lembremos que uma reta se diz
perpendicular a um plano quando é perpendicular a duas (e portanto a todas
as) retas que passam por seu pé nesse plano.
Observemos ainda que, se um ponto
P está fora do plano , o fato de que
exista uma única reta AP, perpendicular a
, com
, nada tem a ver com a tridimensionalidade
do espaço. O ponto A, pé da perpendicular baixada de P
sobre o plano , é simplesmente o ponto de
situado à mínima distância de P.
Não pode haver outro ponto B em
situado a essa mesma distância mínima de P porque, nesse caso,
todos os pontos do segmento AB, base do triângulo isósceles ABC,
pertenceriam a e estariam mais próximos
de P do que A e B.
Por assim dizer, a única perpendicular
ao plano a partir de um dos seus pontos
define a única dimensão adicional do espaço, além das duas dimensões desse
plano.
Seja
IR o conjunto dos números reais.
O símbolo IR3
representa o conjunto cujos elementos são os ternos ordenados
com x, y e z em
IR.
Um sistema de coordenadas no
espaço E é uma bijeção (ou correspondência biunívoca)
IR3
. Dado o ponto P em E, se
diz-se que x, y e z são as coordenadas do ponto
P no sistema .
Quando não há dúvidas a respeito do
sistema de coordenadas que se está usando, escreve-se
, em vez de
.
Dizemos que
IR3
é um sistema de coordenadas retilíneas quando o seguinte for
válido:
Se
e , então o ponto
pertence ao segmento de reta
se, e somente se, tem-se
, ,
, com
.
A quarta maneira que mencionaremos
como caracterização da tridimensionalidade do espaço E é expressa
pela proposição abaixo:
Os sistemas de coordenadas retilíneas constituem a base da Geometria Analítica Espacial. A tridimensionalidade do espaço se traduz então pelo fato de que cada um dos seus pontos tem a posição determinada por 3 coordenadas. Noutras palavras, dim porque E admite IR3 como modelo aritmético. Do ponto de
vista da Geometria Analítica, um espaço Q a quatro dimensões
admitiria um sistema de coordenadas retilíneas
IR4.
Num tal espaço seria muito fácil dar exemplo de dois planos e com um
único ponto em comum. Se representarmos por
as coordenadas de um ponto arbitrário de Q, basta considerar o
plano II formado pelos pontos do tipo ,
cujas duas últimas coordenadas são iguais a zero, e o plano , cujos
pontos têm as duas últimas coordenadas
nulas. Então a interseção se reduz ao único ponto
, origem do sistema de coordenadas.
A breve
discussão que acabamos de fazer destaca quatro afirmações que, cada uma a
seu modo, contêm a propriedade de que o espaço onde vivemos tem três
dimensões. Elas são:
A)
Todo plano separa o espaço.
B)
Se dois planos têm um ponto em comum, eles têm uma reta em comum.
C)
Por um ponto dado num plano passa uma única perpendicular a esse
plano.
D)
Dado qualquer plano, existe um sistema de coordenadas retilíneas
no espaço tal que os pontos desse plano são aqueles que têm a terceira
coordenada igual a zero. Vamos agora
provar que essas afirmações são logicamente equivalentes, isto é, admitindo
qualquer uma delas como axioma, as outras podem ser demonstradas. Nessas
demonstrações, usaremos os conceitos e resultados elementares da Geometria
Espacial que são formulados e estabelecidos sem recurso à
tridimensionalidade do espaço. Nossa referência básica é o livro
Introdução à Geometria Espacial, de Paulo Cezar P. Carvalho, da
Coleção do Professor de Matemática da SBM. Devemos então
provar as implicações A)
Þ B)
Þ C)
Þ D)
Þ A).
1a implicação: A)
Þ B). Sejam e
planos que têm o ponto P em comum. Sejam M, N
pontos de tais que M, N e P não sejam
colineares. Podemos admitir que M não pertence a pois, se esse
fosse o caso, a reta MP estaria contida em e a demonstração
estaria acabada. Tomemos um ponto no
prolongamento do segmento MP. Então M e
pertencem a semi-espaços opostos do
plano . (Observação 2, seção 2.)
Antes de
demonstrar a próxima implicação, reafirmamos que, se o ponto P está
fora do plano , a existência e a unicidade da perpendicular baixada de P
sobre não estão ligadas à tridimensionalidade do espaço. O mesmo ocorre
com a existência da perpendicular a levantada por um ponto P
em : basta tomar um ponto qualquer fora de , baixar por ele uma reta r
perpendicular a e, em seguida, passar por P uma reta s
paralela a r. A reta r é a perpendicular procurada. Assim, apenas
a unicidade da perpendicular a um plano levantada por um ponto desse
plano é que caracteriza a tridimensionalidade do espaço. Dito isso, provemos
a
2a implicação: B)
Þ C).
Admitida a
validez de B), suponhamos, por absurdo, que existam duas retas distintas
r e s, ambas perpendiculares ao plano e ambas contendo o
ponto P. Seja o plano determinado pelas retas r e s.
3a implicação: C)
Þ D). Consideremos
dois eixos ortogonais OX e OY sobre o plano dado e um
eixo OZ, perpendicular a . O sistema de coordenadas
IR3
, que vamos estabelecer no espaço, atribuirá a cada ponto P
do plano as coordenadas
, onde
são as coordenadas de P relativamente aos eixos OX e OY.
[Quem garante
que Q pertence ao plano Q0OZ? Resposta:
considere, neste plano, a reta ,
perpendicular a OQ0, logo paralela a OZ e por
conseguinte perpendicular a . Pela unicidade C), as retas Q0Q
Q0Q' coincidem, portanto Q pertence ao
plano Q0OZ.] A aplicação
IR3
é claramente sobrejetiva. Para provar a injetividade, sejam P,
pontos do espaço, com
e
.
Se , então, em particular,
e
.
Assim, as perpendiculares baixadas de P,
sobre o plano têm o mesmo pé P0.
Segue-se da unicidade C) que essas perpendiculares PP0
e coincidem. Os pontos P e
estão no plano P0OZ
e, relativamente ao sistema de eixos OP0 e OZ
nesse plano, têm a mesma abcissa e a mesma ordenada
. Logo
.
Isso conclui a prova de que
IR3 é uma bijeção. Os
argumentos tradicionais da Geometria Analítica Espacial se aplicam ipsis
litteris para mostrar que
é
um sistema de coordenadas retilíneas.
4a implicação: D)
Þ A). Para provar
que um plano arbitrário separa o espaço E, supondo válida a
hipótese D), introduzimos no espaço um sistema de coordenadas retilíneas
, relativamente às quais os pontos de
são aqueles que cumprem a condição
.
Portanto, se chamarmos de S o conjunto dos pontos do espaço cuja
terceira coordenada z é positiva e de
o conjunto dos pontos com
, teremos
reunião disjunta. Sejam
e
pontos fora de . Então
e
. O ponto
pertence ao segmento se, e somente
se, , com
. Se A e
pertencem a S, então
e
,
logo para todo
, portanto o segmento
está contido em S. Analogamente
se vê que A, . Finalmente, se
e ,
então e
, logo o número é positivo, com
e
,
logo, para , o ponto do segmento
dado por
pertence ao plano . Isso mostra que
vale a condição A) e conclui a demonstração. |