Um Processo Finito para Raíz Quadrada

José Paulo Q. Carneiro
Universidade Santa Úrsula -
RJ
 

1.    Pergunte a um aluno seu: qual é o melhor método para calcular a raiz quadrada de um número (positivo)? O mais provável sou capaz de apostar um bom dinheiro é que responda: coloque o número na calculadora e aperte a tecla da raiz quadrada. De fato, é inegável que esse método tem pelo menos uma vantagem: é o mais rápido. Mas será mesmo o melhor?

Comecemos com um outro problema, muito mais simples: calcular  .  Usando uma calculadora com 8 algarismos no visor, encontra-se:  2,2857142.  Esse valor é uma aproximação que, provavelmente, será satisfatória para a maioria das utilizações. Mas esse resultado tem inconvenientes. O maior deles é que ele não nos dá nenhuma indicação de que estamos diante de uma dízima periódica, e muito menos qual é o seu período (na realidade, ,  ou seja, com período  285714). A questão interessante é a seguinte: na realidade, o que quer dizer calcular 16 7 ? Por que não nos conformamos decimal  desse número. Ora, a representação decimal de um número só irá terminar após um número finito de algarismos, no caso excepcionalmente raro em que o número for da forma  a / b ,  com  a  e  b  inteiros primos entre si, e com  b  só admitindo 2 e 5 como fatores primos (ver [6]), como, por exemplo,     (e, assim mesmo, o número desses algarismos pode ultrapassar a capacidade de exibição da calculadora). Em qualquer outro caso, a representação decimal de um número consiste em uma seqüência infinita de algarismos, periódica  (se o número for racional) ou não (se o número for irracional). Nesse sentido, pode-se dizer que a representação   é finita ou, talvez melhor, completa, porque descreve  de maneira completa, finita e inequívoca a seqüência infinita de algarismos da representação decimal de , enquanto o resultado fornecido pela calculadora é incompleto, pois exibe apenas os primeiros algarismos que aparecem nessa representação, não dando idéia alguma sobre a lei de formação dessa seqüência.

2.    Voltemos então à questão da raiz quadrada. Introduzindo no visor o número 24, por exemplo, e apertando a tecla , encontra-se:  4,8989794. Trata-se de uma excelente aproximação para  . Todavia, esse resultado não nos dá nenhuma informação, por exemplo, sobre se a representação decimal de    termina ou não após o último 4 exibido, ou qual seria o algarismo seguinte, ou se estamos diante de um decimal periódico.

Na realidade, pode-se mostrar que, sendo  n  um natural, então    ou é inteiro ou irracional (ver [3] e RPM 21). Logo, se  n  não for um quadrado perfeito, isto é, o quadrado de um número natural, então    será irracional, e portanto não poderá ter uma expansão decimal periódica.

Existem diversos métodos para calcular a raiz quadrada de um número positivo, a partir apenas das quatro operações elementares. Todos eles envolvem, de um modo ou de outro, um processo de aproximações sucessivas, a partir de uma aproximação inicial (ver, por exemplo, [1] e [2]). Mas será que algum processo conseguirá produzir uma descrição  completa, finita e inequívoca da raiz quadrada de um número? Veremos que sim!

 

3.    Para introduzir o processo que pretendemos considerar aqui, vamos partir de um exemplo: calcular  . O primeiro passo é situar 24 entre dois quadrados perfeitos. Assim,  , ou seja,  . Portanto, podemos escrever que  ,onde, 0< h <1,    

Mais uma vez:

Vamos resumir o que temos até agora:

Como  z  repetiu  x,  então, a partir daí, o processo começa a repetir os mesmos resultados, isto é, estamos com um fenômeno periódico. Na realidade, o que descobrimos foi uma seqüência de aproximações racionais para , a saber:


     que são respectivamente iguais a:



      Podemos então sintetizar o resultado como:

Por causa disso, escrevemos:  , ou, melhor ainda, , onde a barra indica que o padrão  1; 8  se repetirá indefinidamente.

 

4.    Diversas coisas que aconteceram nesse exemplo correspondem, na verdade, a fatos de natureza geral.

(a)   O tipo de desenvolvimento que surgiu no exemplo considerado é o que se chama de fração contínua (simples), e pode ser feito para qualquer número real positivo, resultando num desenvolvimento finito, se o número for racional, ou infinito, se o número for irracional.

Exemplos:

(b)   As sucessivas aproximações racionais que se obtêm no processo são chamadas convergentes. De fato, elas formam uma seqüência que converge à raiz quadrada do número de partida. Além disso, os convergentes  são, alternadamente, aproximações  por  excesso  e  por  falta de  .

(c)   Para um número da forma    (onde  n  é natural), o desenvolvimento será sempre periódico!  É justamente essa propriedade que torna o processo atraente, pois permite descrever, de forma completa, e apenas com um número finito de naturais, uma seqüência infinita.

A justificativa desses fatos, bem como de outros que serão aqui apresentados sem demonstração, é trabalhosa, porém “elementar”, e pode ser encontrada em [4] ou em [5].

5.    A natureza sistemática do processo descrito sugere que haja um algoritmo que gere rapidamente os convergentes. De fato, há. Para o exemplo da  , considere o seguinte quadro:

a

p

q

decimal

 

 

 

 

 

-

0

1

-

 

-

1

0

-

 

4

4

1

4

4

1

5

1

5

5

8

44

9

1

49

10

8

436

89

436/89

4,8988764...

A primeira coluna contém os valores que são obtidos pelo processo descrito no exemplo. Os valores da segunda e da terceira colunas podem ser obtidos (independentemente) a partir dos da primeira, por uma lei de formação simples. Especificamente, cada valor  p  da segunda coluna é obtido em função dos dois valores anteriores de  p  e do valor correspondente de  a, segundo a regra:  . Por exemplo:

Para a obtenção da terceira coluna, isto é, os  q’s, a regra é análoga:

Os  0’s  e  1’s  que foram colocados artificialmente nas duas primeiras linhas servem para obter, pela mesma regra, os valores iniciais de  p  e  q:

(p) 

(q) 

6.    À luz dessas observações, vejamos outro exemplo:  .

Portanto, o processo está encerrado, pois teremos:

.

Os convergentes podem ser achados pelo artifício de sempre:

a

p

q

decimal

 

 

 

 

 

-

0

1

-

-

-

1

0

-

-

1

1

1

1

1,0000

1

2

1

2

2,0000

2

5

3

5/3

1,6667

1

7

4

1,7500

2

19

11

19/11

1,7273

 

 

 

 

 

7.    Algumas categorias especiais de naturais podem ser tratadas de uma forma generalizada. 
Por exemplo, se  , onde  c  é natural, tem-se:

Portanto,  .  Em particular:

A fração contínua para   é especialmente atraente:

Seus convergentes são:

O leitor poderá mostrar, como um interessante exercício, que , sendo  c  um natural, ou descobrir outras fórmulas semelhantes.  Os resultados que achamos para    e para    eram casos particulares desta fórmula, assim como o são ,  , etc.

Trabalhando  em  outros  casos, o  leitor  vai  constatar  também  que, de  um  modo  geral,  os  períodos  podem  ser  muito  mais  longos  do que os encontrados nos exemplos vistos até aqui. Por exemplo:   (verifique!).

8.    Um dos métodos mais utilizados (ver [2]) para obter a raiz quadrada de um número  n  a partir apenas das quatro operações é o processo iterativo definido por:

{

Escolhe-se    tal que  .

Desde que o valor inicial    seja escolhido convenientemente, esse método propicia uma convergência muito mais rápida, em geral, do que o processo das frações contínuas. Por exemplo, para    e  , obtém-se a seqüência de aproximações para  :

Os valores dessa seqüência (após o primeiro) são justamente os convergentes de ordem    da fração contínua  , ou seja, convergem com uma velocidade muito maior. No entanto, o método das frações contínuas permanece com seu interesse próprio, pelos seguintes dois motivos:

(1)  Contrariamente às aproximações expressas por decimais, as frações contínuas fornecem uma representação periódica para  .

(2)  As frações contínuas permitem muitas outras elaborações (ver [4] e [5]), tais como: discutir a ordem de aproximação de irracionais por racionais; mostrar a existência de números transcendentes; discutir e resolver equações em várias variáveis e números inteiros; e assim por diante.

 

Referências Bibliográficas

[1] Barone Jr., M. O algoritmo da raiz quadrada, RPM 2, p. 23.

[2] Carneiro, J.P. Cálculo numérico da raiz quadrada, Boletim do GEPEM, 27, 2o  semestre, 1990.

[3] Figueiredo, D. Números irracionais e transcendentes, Sociedade Brasileira de Matemática.

[4] Níven, I. & Zuckerman, Introducción a la Teoria de los Números México: Editorial Limusa-Wiley, 1969.

[5] Olds, C.D. Continued fractions, The Mathematical Association of America, 1963.

[6] Lima, E.L. Voltando a falar sobre dízimas, RPM 10, pág. 23.