Nilza Eigenheer Bertoni
Brasília, DF

Um assunto que nem sempre é bem compreendido por nossos alunos é a passagem da escrita de um número racional, como quociente entre números inteiros, na forma de uma fração, para sua forma decimal. Perguntas como: onde colocar a vírgula?, quando se escreve  0  no quociente?, quando se passa para a casa seguinte sem colocar o 0 ? mostram que o estudante está tentando reproduzir uma técnica sem compreender o que está fazendo.

Neste artigo, fazemos e discutimos essa passagem, da notação de fração para a escrita decimal, usando também outras bases de numeração. Mais do que simples elucubração ou exercício de raciocínio, o que pretendemos é relacionar, comparar e fazer analogias com o objetivo de levar a uma compreensão mais sólida dos fatos matemáticos que justificam a técnica usada.

O conhecimento de como se pode fazer a divisão do numerador pelo denominador em outras bases de numeração pode esclarecer o verdadeiro significado desse procedimento tão corriqueiro e automatizado no sistema decimal.

Pensar nessas coisas desenvolve um relacionamento diferente, mais íntimo e profundo com a Matemática. Forma também um conhecimento mais reflexivo e interiorizado, no qual podemos buscar respostas para nossos próprios questionamentos ou para as intempestivas e curiosas perguntas dos nossos alunos.

 

     Os sistemas posicionais de numeração

O nosso sistema de numeração é posicional e de base 10, o sistema decimal. Conseguimos escrever qualquer número natural apenas com os símbolos usados para indicar os números naturais de 0 a 9, aqueles menores que 10, a base escolhida. Assim, se escrevemos uma seqüência desses símbolos ou algarismos, como  an an-1 an-2 . . . a1 a0 , sabemos, pelos princípios que regem esse sistema, que tal notação significa  an . 10n + an-1 . 10n-1 + . . . + a1 . 101 + a0 . 100 .

Os princípios gerais desse sistema aplicam-se igualmente a outro sistema posicional, com uma outra base  b  escolhida. Nesse caso, símbolos serão atribuídos aos números  ,  menores que a base, e o significado de uma seqüência  an an-1 an-2 . . . a1 a0   desses símbolos nesse sistema será an . bn + an-1 . bn-1 + . . . + a1 . b1 + a0 . b0 .

Como exemplo, se temos  603  em nosso sistema decimal, representando  6  . 100 + 3 ,  e queremos escrevê-lo no sistema de base 6, devemos procurar expressá-lo em grupos de potência de 6. Verifica-se que 603 = 2 . 63 + 4 . 62 + 4 . 6 + 3, logo 603 se escreve como (2443)6 .

 

     A notação posicional para as frações

Um tal sistema pode ser estendido, ou ampliado, de modo a poder representar também números não inteiros. A idéia-chave é a seguinte: observando que, na representação de um número inteiro na base 10, cada posição da esquerda para a direita corresponde a um grupo 10 vezes menor que o anterior, se continuamos uma casa à direita da casa das unidades, ela deve representar  uma quantidade  10  vezes menor que a unidade, ou seja, deve representar o que chamamos de  décimo.

  Vale observar que essa idéia simples e brilhante passou por percalços históricos, antes de ser definitivamente adotada. Os babilônios já a conheciam, por volta de 2000 a.C. Eles usavam um sistema posicional sexagesimal (base 60) e estenderam sua escrita para as casas fracionárias significando 1/60, 1/602, etc.

Entretanto, não tinham um símbolo para o zero nem um símbolo que fizesse a separação entre casas inteiras e fracionárias. Num mundo com pouquíssima comunicação, essa notação não se generalizou. Os hindus tinham o sistema decimal com o zero, mas paravam nas unidades, não usando casas fracionárias. Para as frações usavam notação com dois símbolos, semelhantes a numerador e denominador.

Analogamente ao que aconteceu com o zero, que só foi usado muito tempo depois dos outros naturais, também a notação para as frações num sistema posicional só foi retomada ou reinventada, agora com separação entre a parte inteira e a parte fracionária, muito mais tarde, no século XVI, por vários matemáticos.(*)

 

     Da notação fracionária para a posicional

Se temos um número racional escrito em duas notações - a fracionária (com numerador e denominador) e a posicional (com casas após a vírgula) -, como obter uma da outra? Neste texto, vamos explicitar a lógica do que se chama passar para a forma decimal, isto é, a passagem da notação fracionária para a forma posicional, com vírgula e casas após a vírgula (no Brasil e em muitos outros países, usa-se a vírgula para indicar a separação entre a parte inteira e a fracionária; em países de língua inglesa, usa-se o ponto, como nas calculadoras (ver RPM 21, pág. 25).

Sabemos como fazer isso em nosso sistema, de base 10. Tudo o que temos a fazer é dividir o numerador pelo denominador, sem parar no resto inteiro. Por exemplo, em  3/4, dividindo-se 3 por 4, obtém-se 0,75. Mas qual a lógica desse processo? Por que ele funciona? Para responder a essas perguntas é conveniente pensarmos antes na fração como resultado de uma divisão.

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(*) Adam Riese publica em 1522, na Alemanha, uma tabela de raízes quadradas na qual aparece a parte fracionária de cada raiz (uma aproximação, no caso das raízes não inteiras) expressa em notação decimal. É provável que o uso de um ponto para separar a parte inteira da decimal tenha ocorrido pela primeira vez na Aritmética de Pellos, de 1492. Em 1530 Rudolf usa, na Alemanha, um traço vertical para separar a parte inteira da parte decimal. Em 1585, Stevin, flamengo, apresenta um tratado sistemático sobre as frações decimais, em notação, contudo, pouco prática. Napier, num trabalho de 1617, usa o ponto amplamente, estendendo seu uso às operações.


 

     Comparação entre dois usos do número racional

Os livros didáticos comumente apresentam a utilização do número racional escrito na forma de fração no caso em que uma unidade é dividida em partes iguais (cujo número é indicado pelo denominador), das quais se toma um certo número (o numerador). Logo após, usam a fração como resultado da divisão do numerador pelo denominador, muitas vezes sem mostrar a equivalência das duas situações.

Vale a pena mostrar essa equivalência. Por exemplo, se consideramos o número racional 3/4. Tanto ele se aplica ao caso em que se têm 3 partes de 1 bolo que foi dividido em 4 partes iguais, como ao caso em que se pretenda dividir 3 bolos igualmente por 4 crianças. Com efeito, nessa segunda situação, um bom método é dividirmos 1 bolo de cada vez em 4 partes iguais e darmos 1 parte a cada criança. Ao final, cada uma terá recebido 1 quarto de cada bolo, portanto 3 quartos no total.

 

     A lógica da divisão “continuada”

Consideremos a divisão:  

Analisando o processo, vemos que, ao dividir 3 por 4, não obtemos nenhuma unidade, mas podemos pensar nesse 3 como 30 décimos, que, divididos por 4, dão 7 décimos e ainda sobram 2 (décimos). Esses, por sua vez, podem ser pensados como 20 centésimos, que, divididos por 4, dão 5 centésimos, sem deixar resto. Ou seja, nesse sistema, se uma divisão não tem quociente expresso por um número natural com resto nulo e queremos continuá-la após a vírgula, o que estamos buscando é a quantidade de décimos, centésimos, etc. que ainda podemos obter no resultado.

Na comparação entre o sistema decimal e um outro sistema posicional, surge a indagação: como é o processo de divisão para escrevermos uma fração, digamos, 3/4 , no sistema de base 6, por exemplo?

 

    Passagem da notação fracionária para a notação posicional de base 6

Na base 6 precisamos só dos algarismos de 0 a 5. Como vai funcionar aqui o método da divisão continuada? A fração 3/4 continua sendo o resultado da divisão de 3 por 4 mesmo nesse novo sistema. Se efetuamos a divisão nesse sistema, devemos obter o desenvolvimento procurado. Mas o que significa dividir nesse sistema?

Analogamente ao caso da divisão no sistema decimal, também no caso da base 6 poderemos continuar uma divisão após a vírgula, buscando a quantidade de sextos, de trinta e seis avos (62 avos), etc. Ou seja:  

Isto é, na base 6, a fração 3/4 se escreve como 0,43, ou seja: 4 sextos e 3 trinta e seis avos. E, de fato,  .

No caso da fração imprópria, o processo é análogo, sendo que a parte inteira não é 0 e também vai escrita na base 6. Em qualquer outra base, o processo é o mesmo, mas o resultado pode surpreender. Essa mesma fração, por exemplo, na base 7 teria um desenvolvimento infinito periódico: .

Isso nos leva a procurar novas comparações entre sistemas de bases diferentes. Na base 10, desenvolvimento decimal infinito periódico só ocorre para frações que apresentam, em sua forma reduzida, algum fator diferente de 2 ou 5 no denominador. Numa outra base, também ocorre o mesmo: a presença, no denominador de uma fração em sua forma reduzida, de um fator primo que não seja divisor da base implica que essa fração terá um desenvolvimento infinito periódico. Verificar isso para algumas frações e algumas bases poderá ser uma tarefa interessante. (Ver RPM 10,  págs. 23-28, e RPM 12,  pág. 14).

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NR. Quanto a sistemas de numeração em outras bases, acreditamos que o aluno deva conhecer a sua existência histórica, bem como o princípio que os rege. Não achamos, entretanto, que valha a pena expor os alunos a suas técnicas. Para os professores, porém, concordamos com a autora que o trabalho com outras bases ajuda a distinguir o porquê de técnicas já automatizadas no sistema decimal, além de propiciar o conhecimento necessário para atender a dúvidas de alunos curiosos que gostem de “brincar” com números.