O Princípio da Descida Infinita de FERMAT

José Paulo Q. Carneiro
Universidade S. Úrsula
 

Pierre de Fermat (1601-1665), o mais famoso matemático amador de todos os tempos, não se limitou a resolver problemas importantes e difíceis em Aritmética. Fez mais do que isso: para resolvê-los, criou um método, por ele mesmo chamado de  o método da descida infinita.

Para entendermos o espírito do método, consideremos primeiramente um número racional positivo, por exemplo o número 3. Tomemos a sua metade  3/2 = 1,5.  Podemos tomar de novo a metade desse resultado, obtendo  3/4 = 0,75,  e assim por diante. Com isso, conseguimos achar uma infinidade de números racionais positivos, cada um menor do que o anterior, a saber:  3; 3/2; 3/4; ...; 3/2n; ... . Isto é, obtemos assim uma  descida infinita.

Agora, argumentava Fermat, se estivéssemos no domínio dos números naturais (inteiros positivos), não seria possível fabricar uma descida infinita. De fato, se começarmos um processo semelhante, calculando sempre a metade de um número anterior, mas nos restringindo aos números naturais, a descida terá que parar em algum ponto. Por exemplo, se iniciarmos com o número 40, a descida ficará:  40; 20; 10; 5,  e pára, porque a metade de 5 já não é mais um número natural.

Na realidade, por trás desse método, está um fato básico sobre os números naturais, a saber, o:

Princípio da Descida Infinita (PDI):  se um processo gerar, em cada passo, um número natural, e se em cada passo o natural obtido for menor do que o do passo anterior, então essa descida não poderá ser infinita, ou seja, o processo terá que parar.

Esse princípio é intuitivamente plausível: se a descida começar, por exemplo, no natural 100, e em cada passo gerar um natural menor, então, no máximo, em 99 passos esgotaremos todos os naturais disponíveis.

Um processo que pára é justamente um algoritmo. Vamos ilustrar o PDI com o muito conhecido e importante algoritmo de Euclides para a determinação do máximo divisor comum (m.d.c.) de dois naturais  a e b:

PASSO 1: Divide-se  a  por  b,  obtendo o quociente  q  e o resto  r. Se  r = 0,  então  FIM.  Se r 0, vá par o passo 2

PASSO 2: Coloque  b  no lugar de  a,  r  no lugar de  b,  e volte  ao  PASSO 1.

Por que o processo termina? Simples. Se o resto encontrado em algum passo for zero, o processo termina, pela regra enunciada no Passo 1. Por outro lado, quando se divide  a  por  b, o resto é necessariamente menor que  b.  Como esse resto vai ser colocado no lugar de  b  no passo seguinte, se o resto nunca fosse zero estaria formada uma descida infinita, contrariando o PDI. Logo, o processo tem que parar, chegando-se a um resto zero.

Atenção! O PDI justifica apenas por que o processo tem que parar, chegando-se a um resto zero. Para mostrar que o último resto não nulo obtido é de fato o m.d.c. de  a  e  b,  precisamos usar argumentos envolvendo divisibilidade  de números inteiros (ver [6]).

Na maioria das apresentações dos inteiros, hoje em dia, o PDI aparece em uma forma ligeiramente diferente, mas equivalente, a saber, o:

Princípio da Boa Ordenação (PBO): Todo conjunto não vazio de números naturais possui um menor elemento.

Observe que uma tal propriedade não seria válida, por exemplo, para  números racionais positivos: o conjunto  que surgiu no início deste artigo, não tem elemento mínimo.

Repare também como se justificaria o algoritmo do m.d.c. pelo PBO. Se nenhum resto fosse zero, o conjunto dos restos positivos que apareceriam ao longo do processo teria um elemento mínimo, que ocorreria, digamos, no passo  m, ou seja: r m-2 = qm rm + rm (veja [6]). O processo poderia ser prolongado dividindo-se  rm - 1 por  rm. Se o novo resto obtido não fosse zero, teríamos  r m-1 = q m+1 rm + rm+1 ,  com  rm+1 < rm, o que seria absurdo, já que rm era o elemento mínimo do conjunto dos restos positivos do processo.

Vejamos algumas aplicações do PDI (ou, o que é o mesmo, do PBO):

Aplicação 1: Propriedade arquimediana dos naturais. Zenão de Eléia (nascido por volta de 490 a.C.) gostava de apontar aparentes contradições na idéia do movimento. Uma de suas célebres argumentações usava uma hipotética corrida entre Aquiles (o mais veloz dos gregos, segundo a lenda) e uma tartaruga. Aquiles dá uma vantagem à tartaruga, e partem os dois, Aquiles do ponto A, e a tartaruga do ponto T. Por mais lenta que seja a tartaruga (desde que sua velocidade seja positiva), quando Aquiles chegar ao ponto T, a tartaruga já estará no ponto , além de T. Podemos agora “parar a câmera” e imaginar que aí começa uma nova corrida, com Aquiles partindo de T e a tartaruga de. Pelo mesmo argumento, quando Aquiles chegar no ponto , a tartaruga já estará no ponto , e assim por diante (reparem que se forma uma descida infinita, como diria Fermat). Portanto, concluía Zenão, Aquiles jamais alcançará a tartaruga. Arquimedes (287-212 a.C.) era mais prático, e estava cansado de ver gente muito menos veloz do que Aquiles ultrapassar a tartaruga. Então postulou: “Aquiles alcança a tartaruga, e pronto!”, ou seja: “dadas as distâncias  a  e  b  (com  b < a ), existe um natural  n  tal que  nb a.  Essa propriedade é chamada  propriedade arquimediana.

Evidentemente, estamos simplificando a história. Na realidade, essa propriedade já aparece nos Elementos de Euclides, e é, em geral, atribuída a Eudoxo (355 a.C.).

O PDI permite demonstrar que a propriedade arquimediana é válida para os naturais. De fato, se  a  e  b  forem naturais, com  b < a  , então a descida  a - b,  a - 2b,  ...,  a - nb, ... não pode ser infinita. Logo, algum desses números não pode mais ser positivo,  ou seja,  existirá  n  tal que    a - nb 0,  isto é,  nb a.
 

Aplicação 2: O próprio processo básico de divisão (com resto) de dois naturais pode ser justificado pelo PDI. Como temos certeza de que, ao dividir  a  por  b  (com  a > b ), chegaremos a um resto  r, tal que   ?  Simples: a mesma descida,  ,  ,  da aplicação anterior resolve a questão. Ou então, na forma equivalente do PBO:  se  , para algum  n,  ótimo, o resto é  0;  caso contrário, o conjunto de naturais   é não vazio (pois  a > b), e portanto tem que ter um elemento mínimo, digamos,  .  Mas, então,    não pode mais ser positivo (estaria no conjunto e seria menor que o mínimo), nem nulo (já excluímos esse caso), e portanto  ,  ou seja: 

Sugerimos, em todas aplicações, que o leitor, como exercício, elabore a justificativa, tanto na forma do PDI quanto do PBO.
 

Aplicação 3: Todo natural maior que 1 tem algum fator primo. De fato, se  n  for primo, o fator será ele próprio. Se  n  não for primo,  n = ab, com  1 < a < n.  Se  a  for primo, estará aí o fator primo procurado; caso contrário,  a  poderá ser novamente decomposto em  , e assim por diante. Se nunca chegássemos a um fator primo, a descida continuaria indefinidamente, o que é vedado pelo PDI.  Logo,  n  tem que ter um fator primo.
 

Aplicação 4: O grande teorema de Fermat. Fermat aplicou seu PDI não só a questões elementares e básicas, como as que citamos, mas também em seu mais célebre teorema (ver [3] e [7]), segundo o qual a equação  só tem solução nos naturais no caso  n = 2. O leitor da RPM já sabe que a demonstração desse teorema, no caso geral, é uma tarefa hercúlea, e só foi conseguida em 1993, após mais de 300 anos de pesquisas de um sem-número de matemáticos. Mas os casos  n = 3  e   n = 4  já haviam sido provados pelo próprio Fermat, de modo elementar. A idéia, por exemplo, para  n = 3  é a seguinte: supõe-se que seja possível encontrar naturais  x,  y  e  z, tais que , e a partir daí constrói-se outra solução, digamos,  ,    e  , tal que  < z  (não vamos reproduzir essas contas aqui; o leitor interessado pode consultar, por exemplo, [8]). Mas isso produziria uma descida infinita, o que é absurdo.

Ao estudar as propriedades dos números inteiros, encontramos diversos princípios, como o Princípio da Indução Finita (PIF), o Princípio da Boa Ordenação (PBO), e o (talvez menos badalado) Princípio da Descida Infinita (PDI). Os dois últimos já enunciamos. Quanto ao primeiro, vamos repetir seu conhecido enunciado (ver [9]):

Princípio da Indução Finita (PIF): Se  P(n)  for uma propriedade associada ao natural  n,  tal que  P(1)  é verdadeira, e tal que a veracidade de  P(n)  acarreta a veracidade de  P(n + 1), então conclui-se que  P(n)  é verdadeira para todo 
natural
 n.

Antes de qualquer coisa, o que é um  princípio?  Do ponto de vista puramente lógico, só existem duas espécies de proposições matemáticas: os axiomas, que são admitidos preliminarmente como verdadeiros, e os teoremas, que são demonstrados a partir dos axiomas, ou a partir de outros teoremas já demonstrados. No entanto, estamos sempre encontrando por aí corolários, lemas, princípios, etc. Na realidade, cada uma dessas proposições é    dependendo da arrumação escolhida pelo expositor    um teorema, ou um axioma, enquanto esses outros nomes (lemas, etc.) estão ligados à posição que essas sentenças ocupam dentro de uma determinada exposição do assunto. Portanto, esses nomes têm um caráter eminentemente subjetivo e arbitrário. Um lema, por exemplo, significa uma proposição que (na intenção do expositor) serve apenas para demonstrar outra mais importante, e que poderá logo em seguida ser esquecido.

Dentro desse espírito, um princípio é um teorema (ou axioma) que ocupa um papel básico e central numa teoria, constituindo um ponto de apoio para demonstrar um grande número de propriedades importantes, e uma arma-chave para resolver uma série de problemas. Um exemplo típico é o do PIF. Em algumas exposições sobre os inteiros, ele aparece como um dos axiomas, e em outras, como teorema. De qualquer forma, porém, o PIF tem que aparecer logo cedo em qualquer apresentação dos inteiros, e é uma arma poderosíssima para provar propriedades importantes dos inteiros. O mesmo se dá com o PBO e o PDI.

E, agora, a última surpresa: o PDI, PBO e o PIF são equivalentes entre si! Isso explica por que Fermat falava tanto do primeiro, e é considerado o inventor do segundo (ver [1]), enquanto a maioria dos expositores modernos usam o terceiro. O leitor que tiver trabalhado as aplicações acima já deve ter-se convencido da equivalência entre o PDI e o PBO. Em [4] há uma demonstração de que o PBO e o PIF são equivalentes.

Para concluir, uma última aplicação do PDO. Em [2] Gardner conta que, certa vez, o grande matemático inglês Hardy foi visitar, em Londres, o célebre matemático indiano Ramanujan. Ao chegar Hardy comentou que o táxi em que viera ostentava um número completamente desinteressante, a saber, 1729. Ramanujan imediatamente replicou:  “Mas como assim, desinteressante?  1729 é o menor natural que pode ser escrito de duas maneiras diferentes como soma de dois cubos!”  De fato,  1729 = =13 + 123 = 93 + 103

Este epsódio mostra que não é fácil afirmar que um determinado número não é interessante. Na verdade podemos demonstrar o:

 

Teorema: Todo número  natural é interessante.

Demonstração: Se houvesse um natural não interessante, seria não vazio o conjunto  D  dos naturais desinteressantes. Mas, pelo PDO, o conjunto  D  teria um elemento mínimo  m,  o qual seria desinteressante, por pertencer a  D.  Mas, ao mesmo tempo,  m  seria interessantíssimo, por ser o menor dos desinteressantes! Essa contradição prova o teorema.

(pano rápido!).

 

Referências Bibliográficas

[1] BOYER, C.B. História da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1974.

[2] GARDNER, M. Mathematical puzzles and diversions. Pelican, 1965.

[3] GOUVEA, F.Q. Em busca da “demonstração maravilhosa”. RPM 15, 14-17.

[4] LIMA, E.L. Curso de análise, Vol. I. Rio de Janeiro: IMPA, 1976.

[5] ORE, O. Number Theory and its history. New York: Mc-Graw Hill, 1948.

[6] PITOMBEIRA DE CARVALHO, J.B. Euclides, Fibonacci e Lamé. RPM 24, 32-40.

[7] RODRIGUES, F.W. Finalmente Fermat descansa em paz. RPM, 29, 27.

[8] USPENSKI, J.V. & HEASLET, M.A. Elementary Number Theory. New York:Mc-GrawHill, 1939.

[9] WATANABE, R. Vale para 1, para 2, para 3, ..., vale sempre?. RPM, 9, 32-38.