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Pierre de Fermat (1601-1665), o mais famoso matemático amador de todos os tempos, não
se limitou a resolver problemas importantes e difíceis em Aritmética.
Fez mais do que isso: para resolvê-los, criou um método, por ele mesmo
chamado de o
método da descida infinita. Para
entendermos o espírito do método, consideremos primeiramente um número
racional positivo, por exemplo o número 3. Tomemos a sua metade
3/2 = 1,5. Podemos
tomar de novo a metade desse resultado, obtendo
3/4 = 0,75, e assim
por diante. Com isso, conseguimos achar uma infinidade de números
racionais positivos, cada um menor do que o anterior, a saber:
3; 3/2; 3/4; ...; 3/2n; ... . Isto é, obtemos assim uma
descida
infinita. Agora, argumentava
Fermat, se estivéssemos no domínio dos números naturais (inteiros
positivos), não seria possível fabricar uma descida infinita. De fato,
se começarmos um processo semelhante, calculando sempre a metade de um número
anterior, mas nos restringindo aos números naturais, a descida terá que
parar em algum ponto. Por exemplo, se iniciarmos com o número 40, a
descida ficará: 40; 20; 10;
5, e pára, porque a metade
de 5 já não é mais um número natural. Na realidade, por trás desse método, está um fato básico sobre os números naturais, a saber, o: Princípio
da Descida Infinita (PDI):
se um processo gerar, em
cada passo, um número natural, e se em cada passo o natural obtido for
menor do que o do passo anterior, então essa descida não poderá ser
infinita, ou seja, o processo terá que parar. Esse princípio
é intuitivamente plausível: se a descida começar, por exemplo, no
natural 100, e em cada passo gerar um natural menor, então, no máximo,
em 99 passos esgotaremos todos os naturais disponíveis. Um processo que
pára é justamente um algoritmo.
Vamos ilustrar o PDI com o muito conhecido e importante algoritmo de Euclides para a determinação do máximo divisor comum
(m.d.c.) de dois naturais a
e b: PASSO 1: Divide-se a por b, obtendo o quociente q e o resto r. Se r = 0, então FIM. Se r 0, vá par o passo 2
PASSO
2:
Coloque b no lugar de
a,
r
no lugar de b, e volte ao
PASSO 1. Por que o processo termina? Simples. Se o resto encontrado em algum passo for zero, o processo termina, pela regra enunciada no Passo 1. Por outro lado, quando se divide a por b, o resto é necessariamente menor que b. Como esse resto vai ser colocado no lugar de b no passo seguinte, se o resto nunca fosse zero estaria formada uma descida infinita, contrariando o PDI. Logo, o processo tem que parar, chegando-se a um resto zero. Atenção! O PDI justifica apenas por que o processo tem que parar, chegando-se a
um resto zero. Para mostrar que o último resto não nulo obtido é de
fato o m.d.c. de a e
b,
precisamos usar argumentos envolvendo divisibilidade
de números inteiros (ver [6]). Na maioria das
apresentações dos inteiros, hoje em dia, o PDI aparece em uma forma
ligeiramente diferente, mas equivalente, a saber, o: Princípio
da Boa Ordenação (PBO): Todo conjunto não vazio de números
naturais possui um menor elemento. Observe que uma
tal propriedade não seria válida, por exemplo, para
números racionais positivos: o conjunto
que surgiu no início deste
artigo, não tem elemento mínimo.
Repare também
como se justificaria o algoritmo do m.d.c. pelo PBO. Se nenhum resto fosse
zero, o conjunto dos restos positivos que apareceriam ao longo do processo
teria um elemento mínimo, que ocorreria, digamos, no passo m, ou seja: r
m-2 = qm rm + rm
(veja [6]). O processo
poderia ser prolongado dividindo-se rm
- 1
por rm. Se o novo resto obtido não fosse zero, teríamos
r m-1 = q m+1 rm
+ rm+1
, com
rm+1 < rm, o que seria absurdo, já
que
rm
era o elemento mínimo do
conjunto dos restos positivos do processo. Vejamos algumas
aplicações do PDI (ou, o que é o mesmo, do PBO): Aplicação
1:
Propriedade arquimediana dos
naturais.
Zenão de Eléia (nascido por volta de 490 a.C.) gostava de apontar
aparentes contradições na idéia do movimento. Uma de suas célebres
argumentações usava uma hipotética corrida entre Aquiles (o mais veloz
dos gregos, segundo a lenda) e uma tartaruga. Aquiles dá uma vantagem à
tartaruga, e partem os dois, Aquiles do ponto A,
e a tartaruga do ponto T. Por
mais lenta que seja a tartaruga (desde que sua velocidade seja positiva),
quando Aquiles chegar ao ponto T,
a tartaruga já estará no ponto
, além de T. Podemos agora
“parar a câmera” e imaginar que aí começa uma nova corrida, com
Aquiles partindo de T e a
tartaruga de. Pelo mesmo argumento, quando Aquiles chegar no ponto
, a tartaruga já estará no ponto
, e assim por diante (reparem
que se forma uma descida infinita, como diria Fermat). Portanto, concluía
Zenão, Aquiles jamais alcançará a tartaruga. Arquimedes (287-212 a.C.)
era mais prático, e estava cansado de ver gente muito menos veloz do que
Aquiles ultrapassar a tartaruga. Então postulou: “Aquiles alcança a
tartaruga, e pronto!”, ou seja: “dadas as distâncias
a
e b
(com b < a ), existe um
natural n tal que
nb
a”.
Essa propriedade é chamada propriedade
arquimediana. Evidentemente, estamos simplificando a história. Na
realidade, essa propriedade já aparece nos Elementos
de Euclides, e é, em geral, atribuída a Eudoxo (355 a.C.). O PDI permite
demonstrar que a propriedade arquimediana é válida para os naturais. De
fato, se a
e b
forem naturais, com b
< a , então a descida
a - b,
a - 2b,
..., a
- nb, ... não pode ser infinita. Logo, algum desses números não
pode mais ser positivo, ou
seja, existirá
n tal que
a - nb
0, isto é,
nb
a. Aplicação 2: O próprio processo básico de divisão (com resto) de dois naturais pode ser justificado pelo PDI. Como temos certeza de que, ao dividir a por b (com a > b ), chegaremos a um resto r, tal que ? Simples: a mesma descida, , , da aplicação anterior resolve a questão. Ou então, na forma equivalente do PBO: se , para algum n, ótimo, o resto é 0; caso contrário, o conjunto de naturais é não vazio (pois a > b), e portanto tem que ter um elemento mínimo, digamos, . Mas, então, não pode mais ser positivo (estaria no conjunto e seria menor que o mínimo), nem nulo (já excluímos esse caso), e portanto , ou seja: Sugerimos, em todas aplicações, que o leitor, como
exercício, elabore a justificativa, tanto na forma
do PDI quanto do PBO. Aplicação 3: Todo
natural maior que 1 tem algum fator primo. De fato, se
n for primo, o fator será ele próprio. Se n
não for primo, n
= ab, com
1 < a < n.
Se a for primo, estará aí
o fator primo procurado; caso contrário,
a
poderá ser novamente decomposto em
, e assim por diante. Se nunca
chegássemos a um fator primo, a descida continuaria indefinidamente, o
que é vedado pelo PDI. Logo,
n tem que ter um fator
primo. Aplicação 4: O grande teorema de Fermat.
Fermat aplicou seu PDI não só a questões elementares e básicas, como
as que citamos, mas também em seu mais célebre teorema (ver [3] e [7]),
segundo o qual a equação
só tem solução nos
naturais no caso n = 2. O leitor da RPM
já sabe que a demonstração desse teorema, no caso geral, é uma tarefa
hercúlea, e só foi conseguida em 1993, após mais de 300 anos de
pesquisas de um sem-número de matemáticos. Mas os casos
n = 3
e n = 4
já haviam sido provados pelo próprio Fermat, de modo elementar. A
idéia, por exemplo, para n
= 3 é a seguinte: supõe-se
que seja possível encontrar naturais
x, y e
z, tais que , e a partir daí constrói-se outra solução, digamos,
x´,
y´
e z´
, tal que z´ < z
(não vamos reproduzir essas contas aqui; o leitor interessado pode
consultar, por exemplo, [8]). Mas isso produziria uma descida infinita, o
que é absurdo. Ao estudar as
propriedades dos números inteiros, encontramos diversos princípios, como o Princípio
da Indução Finita (PIF), o Princípio
da Boa Ordenação (PBO), e o (talvez menos badalado) Princípio da Descida Infinita
(PDI). Os dois últimos já enunciamos. Quanto ao primeiro, vamos repetir
seu conhecido enunciado (ver [9]): Princípio
da Indução Finita (PIF): Se P(n)
for uma propriedade associada ao natural
n, tal que
P(1)
é verdadeira, e tal que a veracidade de
P(n)
acarreta a veracidade de P(n
+ 1), então conclui-se que P(n)
é verdadeira para todo Antes de
qualquer coisa, o que é um princípio?
Do ponto de vista puramente lógico, só existem duas espécies de
proposições matemáticas: os axiomas, que são admitidos
preliminarmente como verdadeiros, e os teoremas,
que são demonstrados a partir dos axiomas, ou a partir de outros teoremas
já demonstrados. No entanto, estamos sempre encontrando por aí corolários,
lemas, princípios, etc. Na realidade, cada uma dessas proposições é
— dependendo da
arrumação escolhida pelo expositor
— um teorema, ou um axioma, enquanto esses outros nomes (lemas,
etc.) estão ligados à posição que essas sentenças ocupam dentro de
uma determinada exposição do assunto. Portanto, esses nomes têm um caráter
eminentemente subjetivo e arbitrário. Um lema, por exemplo, significa uma
proposição que (na intenção do expositor) serve apenas para demonstrar
outra mais importante, e que poderá logo em seguida ser esquecido. Dentro desse
espírito, um princípio
é um teorema (ou axioma) que ocupa um papel básico e central numa
teoria, constituindo um ponto de apoio para demonstrar um grande número
de propriedades importantes, e uma arma-chave para resolver uma série de
problemas. Um exemplo típico é o do PIF. Em algumas exposições sobre
os inteiros, ele aparece como um dos axiomas, e em outras, como teorema.
De qualquer forma, porém, o PIF tem que aparecer logo cedo em qualquer
apresentação dos inteiros, e é uma arma poderosíssima para provar
propriedades importantes dos inteiros. O mesmo se dá com o PBO e o PDI. E, agora, a última
surpresa: o PDI, PBO
e o PIF
são equivalentes entre si!
Isso explica por que Fermat falava tanto do primeiro, e é considerado o
inventor do segundo (ver [1]), enquanto a maioria dos expositores modernos
usam o terceiro. O leitor que tiver trabalhado as aplicações acima já
deve ter-se convencido da equivalência entre o PDI e o PBO. Em [4] há
uma demonstração de que o PBO e o PIF são equivalentes. Para concluir,
uma última aplicação do PDO. Em [2] Gardner
conta que, certa vez, o grande matemático inglês Hardy foi visitar, em Londres, o célebre matemático indiano Ramanujan.
Ao chegar Hardy comentou que o táxi em que viera ostentava um número
completamente desinteressante, a saber, 1729. Ramanujan imediatamente
replicou: “Mas como assim,
desinteressante? 1729 é o
menor natural que pode ser escrito de duas maneiras diferentes como soma
de dois cubos!” De fato,
1729 = =13 + 123 = 93 + 103
Este epsódio
mostra que não é fácil afirmar que um determinado número não é
interessante. Na verdade podemos demonstrar o: Teorema: Todo número
natural é interessante. Demonstração: Se houvesse um natural não interessante, seria não vazio o conjunto
D dos naturais
desinteressantes. Mas, pelo PDO, o conjunto
D teria um elemento mínimo
m,
o qual seria desinteressante, por pertencer a D.
Mas, ao mesmo tempo, m
seria interessantíssimo, por ser o menor dos desinteressantes!
Essa contradição prova o teorema. (pano
rápido!). Referências Bibliográficas[1] BOYER, C.B. História
da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1974.
[2]
GARDNER, M. Mathematical puzzles and
diversions.
Pelican,
1965. [3] GOUVEA, F.Q.
Em busca da “demonstração maravilhosa”.
RPM 15,
14-17. [4] LIMA, E.L. Curso
de análise, Vol. I. Rio de Janeiro: IMPA, 1976. [5]
ORE, O. Number Theory and its
history. New York: Mc-Graw Hill, 1948. [6] PITOMBEIRA DE CARVALHO, J.B. Euclides, Fibonacci e Lamé. RPM
24, 32-40. [7] RODRIGUES, F.W. Finalmente Fermat descansa em paz.
RPM,
29, 27. [8] USPENSKI, J.V. & HEASLET, M.A. Elementary
Number Theory. New York:Mc-GrawHill,
1939.
[9]
WATANABE, R. Vale para 1, para 2,
para 3, ..., vale sempre?. RPM,
9, 32-38.
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