O Sol apareceu curioso naquela manhã. Seus raios perpassavam as folhagens do bosque e iluminavam em feixes a área onde se daria a contenda. Pierre, o desafiante, já aguardava com as testemunhas, todos homens distintos, a presença de Galois.

Não era a primeira vez que Pierre se apresentava no campo da “honra”. Habilidoso com as armas, detinha um cadebal de nomes que tombaram na ponta de seu orgulho. E Galois, homem de livros que nunca empunhara a mais inofensiva das ferramentas para o malefício alheio, era, por certo, um candidato a aumentar tal macabro cabedal.

Na noite anterior, durante o intervalo de uma apresentação teatral, Galois ofereceu uma rosa à noiva de Pierre, menina que conhecia desde a infância. Mais por vaidade que por ofensa, Pierre ruborizou a face de Galois com pelica e marcou o duelo para a manhã seguinte.

Era direito do desafiado a escolha das armas que deveriam ser oferecidas pelo desafiante.

Galois chega ao bosque.

— Acreditei que não viesses por temor de tua sorte – disse Pierre.

— Como poderia um homem fugir de seu destino?

Vendo que Pierre trazia um jogo de floretes e outro de pistolas, Galois assentou:

— Ofereces-me a escolha: floretes ou pistolas. Todos bem sabemos que não há quem o supere nos floretes e não menor é tua habilidade com as pistolas. Sei, então, que não escolherei a arma com a qual duelaremos, mas sim aquela com a qual tombarei. Sinto-me incapaz de escolher minha morte. Se, por outro lado, permitisse que escolhesses as armas, quebraríamos as regras de um duelo e poderia alguém dizer que tivestes vantagens extras nessa contenda. Permita-me, pois, que faça a escolha de modo indireto. Assim, não abrirei mão do direito à escolha e, ao mesmo tempo, terei a sensação de ter sido o destino que determinou a forma de minha morte.

— Não me enfastie com teu conformismo. Terminemos logo com isso. Faze a escolha da forma que bem te aprouver.

— Não consegui entender qual tal grande ofensa te fiz que me trouxe a esse campo. Não sei se quero entender. Mas não quero morrer com uma dúvida que desde ontem me consome. Assim, te farei uma pergunta direta. Se a resposta for afirmativa, matar-me-ás com o florete e, se a resposta for negativa, matar-me-ás com a pistola. Dás tua palavra de honra que assim procederás?

— Todos sabem que em muito prezo minha palavra. Perante as testemunhas aqui presentes a empenho: assim procederei. Vamos. Qual pergunta selará tua sorte?

E Galois, com um sorriso vitorioso, perguntou:

— Morrerei pela pistola?

Todos ficaram atônitos. Com o mesmo sorriso, Galois virou-se e foi-se embora.

No campo, a empáfia da força jazia tombada pela astúcia. 

 

Ledo Vaccaro Machado
Professor dos colégios Franco Brasileiro e Sion no Rio de Janeiro, RJ.

 

 

     RPM: NOTA BIOGRÁFICA SOBRE GALOIS  

Galois é capaz de inspirar textos como esse, por ter sido, sem dúvida, a figura mais romântica da história da Matemática. Rebelde na escola, “gênio incompreendido” pelos colegas e professores e pelos próprios matemáticos de seu tempo, revolucionário perseguido pelo “sistema”, morreu aos 20 anos em um duelo, durante as tumultuadas tentativas de restauração da monarquia na França, logo após a derrota de Napoleão.

Évariste Galois nasceu em 25 de outubro de 1811 em Bourg-la-Reine, pequena cidade perto de Paris. Aos 12 anos, entrou para o Liceu Louis-le-Grand em Paris, onde, logo cedo, começou a enjoar dos estudos clássicos e a devorar textos de matemáticos, como Legendre e Lagrange, com prejuízo de seus estudos regulares. Aos 16 anos, começou a se dedicar ao célebre problema da resolução da equação do 5o grau por meio de radicais, problema que só ele iria resolver completamente. Foi reprovado duas vezes no exame vestibular para a famosa Escola Politécnica, seu grande sonho; na segunda, agrediu o examinador, durante a prova oral.

Publicou seu primeiro artigo aos 18 anos, sobre frações continuadas. Submeteu à Academia de Ciências três importantes “memórias” (como se chamavam os artigos então) sobre a Teoria das Equações. Cauchy perdeu o manuscrito da primeira. A segunda foi entregue ao secretário da Academia, que morreu com o documento, o qual nunca mais foi encontrado. A terceira foi qualificada por Poisson de “incompreensível”.

Além dessas decepções, teve que enterrar seu pai, um típico filho do iluminismo do séc. XVIII, prefeito de Bourg-la-Reine, que se suicidou, em meio a uma tumultuada desavença com o clero. Passou, então, a engajar-se como ativista republicano e foi expulso da Universidade, após participar de várias manifestações políticas.

Em maio de 1831, a Guarda Nacional, para a qual Galois tinha entrado, foi dissolvida pelo rei Luís Filipe. Durante uma manifestação de protesto, Galois foi acusado de ameaçar a vida do rei, tendo sido preso, julgado e absolvido. Um mês depois, foi preso de novo, e agora condenado a seis meses de prisão, por usar o uniforme da extinta Guarda.

Menos de uma semana após ter sido libertado, foi desafiado para o fatídico duelo com pistolas. Os historiadores se dividem sobre se o motivo do duelo era passional ou político. Aceitou, sabendo que iria morrer, e passou duas noites escrevendo textos matemáticos, para tentar, preservar o que sabia ser importante para a posteridade, ou seja, tudo aquilo que hoje é conhecido como Teoria de Galois.

Diversas vezes escrevia na margem: “não tenho tempo para desenvolver este detalhe, ...”.

Decepcionado com os acadêmicos franceses, entregou seus manuscritos matemáticos a um amigo, pedindo que os encaminhasse a Jacobi e Gauss, para que opinassem “não sobre sua correção, mas sobre sua importância”. Nada disso ocorreu.

Morreu no duelo em 30 de maio de 1832, antes de completar 21 anos. Somente 14 anos mais tarde, Liouville editou alguns manuscritos de Galois no Journal de Mathématiques, com comentários explicativos e elogiosos, mostrando sua importância. Embora suas obras completas encham apenas 60 páginas, Galois é considerado um dos maiores gênios matemáticos de todos os tempos e, entre outras coisas, um dos criadores da Teoria dos Grupos.

José Paulo Q. Carneiro
Universidade Santa Úrsula