Seiji Hariki
  IME-USP

As médias mais conhecidas pelos estudantes e professores de Matemática são a aritmética e a geométrica. Neste artigo, apresento aos leitores uma outra média, a média harmônica.

Vejamos primeiro como a média harmônica aparece naturalmente acoplada às médias aritmética e geométrica. Consideremos as relações seguintes envolvendo os números reais  a, b  e  c,  positivos e distintos:

(a – b) / (b – c) = a / a      (1)

(ab) / (bc) = a / b      (2)

(a b) / (b c) = a / c      (3)

Notemos que essas equações diferem apenas nos segundos membros: na equação (1) o denominador do quociente é  a, na (2) é  b, e na (3) é  c.

Isolando  b  na equação (1), obtemos  b = (a + c)/2,  ou seja,  b  é a média aritmética de  a  e  c;  isolando  b  na equação (2), obtemos   b = ,  ou seja,  b  é a  média geométrica  de  a e c; isolando  b em (3), obtemos  b = 2ac/(a + c),  ou seja,  b  é a  média harmônica de  a e c.

 

     O QUE É MÉDIA HARMÔNICA

Um outro modo de introduzir a média harmônica é pela definição formal. Sejam  a e b  dois números reais positivos. A média harmônica MH de  a e b  é o inverso da média aritmética dos inversos desses números:

1/MH = (1/a + 1/b) /2    ou    MH = 2ab / (a + b) .      

Substituindo  (a + b)/2  por MA  e  a · b  por  (MG) 2, obtemos as relações:

MH · MA = a · b   e    MH · MA = (MG) 2 .

A última igualdade diz que a média geométrica de  a e b  é igual à média geométrica das suas médias aritmética e harmônica. Reescrevendo essa equação na forma de proporção, obtemos:

MA/MG = MG/MH,

relação essa que será utilizada logo a seguir na representação geométrica da média harmônica. 

 

   COMO SURGIU A MÉDIA HARMÔNICA

Exploremos um pouco mais a equação  MH · MA = a · b.  Dela obtemos a / MH = MA / b.  Essa proporção pode ser reescrita à moda de Euclides:

a : MH : : MA : b    (*)

que se lê  a  está para  MH  assim como  MA  está para  b”, ou, utilizando-se propriedades de proporções,

b : MA : : MH : a .

Por exemplo, consideremos os valores  a = 6  e  b = 12.  Nesse caso, MH  e  MA  são também inteiros:  MH = 8  e  MA = 9.  Logo, vale a proporção

12 : 9 : : 8 : 6 .

Segundo o historiador português Almeida Vasconcellos, a proporção (*) já era conhecida pelos babilônios. No entanto, coube ao matemático grego Pitágoras, que viveu por volta do ano 550 antes de Cristo, a descoberta de que essa proporção tinha algo a ver com a música.

Pitágoras descobriu que os comprimentos  x, y, z, w  de uma corda vibrante, correspondentes a uma nota (digamos dó), à sua quarta (fá), à sua quinta (sol) e à sua oitava (dó), estão entre si assim como os números 12, 9, 8, 6.  Na notação de Euclides,

x : 12 : : y : 9 : : z : 8 : : w : 6  ou,  em razões,  x/12 = y/9 = z/8 = w/6.

Quanto à origem do nome, parece que foi Arquitas, que viveu por volta do ano 400 antes de Cristo, o primeiro a chamar de harmônica a média que antes dele era conhecida como subcontrária.

 

    COMO DESENHAR A MÉDIA HARMÔNICA

A representação geométrica da média harmônica apareceu bem depois de sua definição. Sabe-se por exemplo que, por volta do século IV depois de Cristo, o matemático grego Pappus representava num único desenho as três médias - a aritmética, a geométrica e a harmônica. Na figura 1, AD = a  e  DB = b.  Podemos ver que o raio  OC  é a média aritmética de  a e b  e a altura  CD  do  OCD  é a sua média geométrica. Traçando-se DE  perpendicular ao lado  OC,  obtemos um  DCE que é semelhante ao OCD.  Daí, utilizando a proporção (*), concluímos que  CE  é a média harmônica de  a  e  b.

A figura 1 sugere que a média harmônica é sempre menor que a média geométrica e que esta, por sua vez, é menor que a média aritmética, exceto no caso-limite  a = b,  quando as três médias coincidem. Os leitores estão convidados a dar uma demonstração analítica desses fatos.

 

    OUTRO DESENHO DA MÉDIA HARMÔNICA

Existe uma construção alternativa da média harmônica, bem pouco conhecida e que, a meu ver, é muito mais sugestiva do que a de Pappus.

Assinalam-se dois pontos quaisquer  A e B  de uma reta (figura 2). Por eles levantam-se segmentos de reta  AC e BD,  com comprimentos  a e b, perpendiculares à reta. Ligam-se as extremidades de um segmento com as extremidades do outro. Pelo ponto de interseção E dos segmentos internos, levanta-se a paralela aos segmentos  AC e BD,  que determinará o segmento  FG  entre os segmentos externos. Os leitores poderão mostrar que o comprimento desse segmento é a média harmônica de  a  e  b.

Ao refletir um pouco sobre essa construção geométrica da média harmônica, podemos observar alguns fatos interessantes.

Primeiro, a média harmônica não depende dos pontos  A e B  que assinalamos na reta; se tomarmos outros pontos  e   sobre a reta e fizermos as mesmas construções, obteremos um segmento cujo comprimento é a média harmônica de  a  e  b.

Segundo, a média harmônica não depende da inclinação dos segmentos iniciais em relação à reta-base; a única coisa que importa é o paralelismo dos segmentos  AC  e  BD  (figura 3).

 

 

 

Terceiro, se aumentarmos indefinidamente o valor de  a,  mantendo fixo o valor de  b,  a MH de  a e b  permanecerá sempre menor que o dobro de  b.  Em outras palavras, a MH é limitada superiormente pelo dobro do mínimo entre  a e b;  ela não “explode” (isto é, não cresce além de qualquer limite) quando só um dos números “explode”, contrariamente ao que acontece com as médias aritmética e geométrica.

E por último, quando fazemos o valor de  a  tender a zero, mantendo o valor de  b  fixo, a MH também tende a zero, enquanto a média aritmética permanecerá sempre maior que a metade de  b.  Nesse caso, a média geométrica tem o mesmo comportamento que a média harmônica.

 

    ONDE APARECE A MÉDIA HARMÔNICA 

São inevitáveis as perguntas pragmáticas que alunos e professores costumam fazer: Para que serve o estudo da média harmônica? Onde se aplica a média harmônica?

Sem a pretensão de responder cabalmente a essas perguntas, vou apenas salientar a importância da média harmônica, assinalando a sua presença em alguns problemas da vida prática.

O problema das velocidades

O sr. Mário, um imprudente vendedor de filtros de água, costuma acordar cedo e viajar de carro, da cidade  A  até a cidade  B,  com a velocidade média de  120 km/h.  Depois de visitar seus clientes e tomar com eles algumas garrafas de cerveja, ele volta de  B  para  A,  com a velocidade média de  60 km/h.  Qual é a velocidade média que o sr. Mário desenvolve no percurso todo?

A resposta mais imediata que surge em nosso cérebro é que a velocidade média no percurso todo é a média aritmética das velocidades na ida e na volta, o que daria  90 km/h.  Essa resposta, embora “intuitiva”, está errada! Temos que estar sempre alertas, à maneira dos escoteiros, para não deixar a razão Matemática ser desgovernada por falsas “intuições”.

A resolução correta do problema é a seguinte. Sejam:  

Temos então que   d = v1 t1 = v2 t2.  Se  v  é a velocidade média no percurso todo, temos:   
2d = v (t1 + t2).  Logo,  2d = v (d/v1 + d/v2).   Simplificando:

v = 2v1v2 /(v1 + v2).

Substituindo os valores  v1 = 120 km/h  e  v2 = 60 km/h,  obtemos       v = 80 km/h.

Moral da história: a velocidade média no percurso todo é a média harmônica das velocidades na ida e na volta.

A média harmônica geralmente aparece em problemas que envolvem velocidades, vazões, freqüências e taxas. O exemplo seguinte é uma versão simples de um problema de vazão bastante conhecido.

O problema das torneiras

Se uma torneira enche um tanque em  60  minutos e uma outra torneira enche o mesmo tanque em  30  minutos, em quanto tempo as duas torneiras juntas enchem o tanque?

Os leitores estão convidados a resolver mais esse problema, e para isso damos uma pequena “dica”: a resposta não é a média harmônica de 60 min e  30 min, mas está relacionada a ela.

Problemas de torneiras são antiqüíssimos. Uma de suas versões aparece por exemplo na Antologia grega organizada por Metrodoro, um matemático grego que vivia por volta do ano 500 depois de Cristo. A tradução para o português seria mais ou menos a seguinte:

Eu sou um leão de bronze; de meus olhos, boca e pé direito jorra água. Meu olho direito enche uma jarra em dois dias, meu olho esquerdo em três dias, e meu pé direito em quatro dias. Minha boca é capaz de enchê-la em seis horas, diga-me quanto tempo os quatro juntos levarão para enchê-la?

Para finalizar esta seção, mais um problema.

 

O problema do uísque 

Durante 4 meses consecutivos, o sr. Mário comprou uísque para o bar de sua casa aos preços, respectivamente, de 16, 18, 21 e 25 reais por garrafa. Qual foi o custo médio do uísque para o sr. Mário nesse período todo?

Esse é um daqueles problemas que nos deixam frustrados, pois só depois de muita batalha notamos que faltam dados; temos necessariamente que introduzir alguma hipótese para poder resolver o problema.

(i) Uma hipótese plausível é que, talvez por ser um bebedor regular, o sr. Mário tenha comprado a mesma quantidade  x  de uísque a cada mês.

Logo, ele despendeu  16x + 18x + 21x  + 25x = 80x reais  para comprar uísque no período. Daí, o custo médio no período de 4 meses foi de 80x/4x = 20 reais  por garrafa. Portanto, caso essa hipótese seja verdadeira, o custo médio no período é a média aritmética dos custos mensais.

(ii) Uma outra hipótese plausível é que, talvez por não ter tido aumento de salário nesse período, o sr. Mário tenha gasto a mesma quantia y de reais a cada mês.

Logo, ele consumiu  y/16 + y/18 + y/21 + y/28  garrafas no período. Assim, o custo médio nesse período foi, aproximadamente:

4y/ (y/16 + y/18 + y/21 + y/28) = 19,5 reais por garrafa.

Portanto, neste caso, o custo médio no período é a média harmônica dos custos mensais.

 

    CONCLUSÃO

Nosso passeio termina com um mergulho no mundo imaginário, através de um problema-narrativa, isto é, um problema de Matemática que, pela forma de sua apresentação, se configura também como uma narrativa, um conto, uma fantasia.

Há muito tempo, na Lemúria, um país que, por descuido dos cartógrafos, não aparece em atlas nenhum, a moeda oficial era o xelim. E, como nessa época havia uma inflação galopante, seus habitantes tinham o hábito de comprar e vender dólares, quase todos os dias.

Robson comprou dólares em três dias consecutivos: no primeiro dia, ao câmbio de 16 xelins por dólar; no dia seguinte, ao câmbio de 20 xelins por dólar e no terceiro dia, ao câmbio de 25 xelins por dólar. Isso quer dizer que nesses três dias o doleiro vendeu dólares para Robson ao câmbio de 1/16 de dólar por xelim, 1/20 de dólar por xelim e 1/25 de dólar por xelim, respectivamente.

No quarto dia, Robson, já se sentindo um cliente especial, propôs ao doleiro que ele vendesse dólares, não no câmbio do dia, mas na média aritmética dos câmbios dos três dias anteriores. Ele disse para o doleiro:

— Você faz a média aritmética das suas taxas de câmbio e me diz quantos dólares você me dá para cada xelim. Aí eu inverto e sei quantos xelins lhe pago para cada dólar que você me der.

O doleiro respondeu:

— Vamos simplificar as contas, Robson. Você comprou dólares nas taxas de 16, 20 e 25 xelins por dólar. Aí você tem que me pagar 61/3 xelins por dólar, isto é, para cada lote de 61 xelins lhe dou 3 dólares.

Aí Robson contestou: — Espere aí, eu faço as contas. Para cada xelim você me deu 1/16 de dólar no primeiro dia, 1/20 de dólar anteontem e 1/25 de dólar ontem. Logo, você tem que me dar para cada xelim a média aritmética: (1/16 + 1/20 + 1/25)/3 = 61/1200 de dólar. Pago então 1200/61 xelins por dólar, ou seja, pago 1200 xelins para cada lote de 61 dólares.

O doleiro retrucou: — Não é possível, você se enganou nas contas!

E ficaram discutindo um longo tempo, porque um não concordava com os cálculos do outro. E continuam discutindo até hoje, aguardando ansiosamente a passagem do Homem que Calculava ..

 

Referências Bibliográficas

[1]  BOYER, C.B. História da Matemática.São Paulo: Editora Edgard Blucher, 1974.

[2] MORTARA, G. Curso elementar de Estatística Aplicada à Administração, vol. I.   Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1949.

[3]  SPIEGEL, M.R. Estatística. São Paulo: Editora McGraw-Hill do Brasil, 1976.

[4]  The Greek anthology, vol. V. Londres: William Heinemann Ltd., 1953.

[5]  VASCONCELLOS, F.A. História das Matemáticas na Antiguidade. Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925.