Maria Cristina Costa Ferreira
Maria Laura Magalhães Gomes
UFMG - Minas Gerais

  Introdução

A partir de 1992, Belo Horizonte foi um dos pólos do Programa de Aperfeiçoamento de Professores do 2o grau de Física, Matemática e Português patrocinado por Vitae - Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social. A realização do Programa foi viabilizada por um convênio entre Vitae, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais e a Universidade Federal de Minas Gerais. O Subprograma de Matemática ficou sob a responsabilidade de uma equipe de professores do Departamento de Matemática da UFMG.

Dentre as várias atividades realizadas nesse período achamos interessante narrar a experiência ocorrida em 1994 com o assunto “Coordenadas no espaço”, com ênfase especial na discussão de sistema de equações lineares 2 x 3 e 3 x 3.

Utilizamos no curso o livro Coordenadas no espaço, escrito pelo professor Elon Lages Lima para o Programa Vitae.

O estudo dos sistemas lineares está sempre presente nos programas de Matemática do 2o grau. Entretanto, como considera o professor Elon, “as exposições elementares do assunto costumam deixar de lado seu significado geométrico”. [1]

Através de nossas observações e dos depoimentos de alguns participantes do curso, pretendemos mostrar como a interpretação geométrica de um tópico de Matemática pode contribuir para uma melhor compreensão de alguns de seus aspectos.         

No que segue procuramos mostrar algumas percepções dos professores a partir da experiência do curso, com base em observações feitas em sala de aula e nos trabalhos por eles apresentados.

 

    A análise feita pelos professores

Dois aspectos destacaram-se: a interpretação geométrica dos sistemas lineares 3 x 3  e a opção  a ser feita entre os métodos de resolução desses sistemas — regra de Cramer ou escalonamento? A seguir comentamos cada um desses aspectos separadamente.  

1 - Interpretação geométricas dos sistemas lineares 3 x 3

Segundo os professores, não é de fato usual interpretar geometricamente os sistemas lineares
equações e duas incógnitas, quando se faz o seu estudo na 7a série do 1o grau. Nesse caso, cada equação do sistema

a1x + b1y = c1

a2x + b2y = c2

representa uma reta do plano e as posições relativas de duas retas no plano são somente três:

a) retas concorrentes     b) retas paralelas     c) retas coincidentes

Nos casos a), b) e c) o sistema tem solução única, não tem solução ou tem infinitas soluções, respectivamente.

Já para sistemas lineares 3 x 3 da forma

                                          a1x + b1y + c1z = d1                  (1)

a2x + b2y + c2z = d2                  (2)

a3x + b3y + c3z = d3                  (3)

as equações (1), (2), (3) representam planos 1, 2 e 3 no espaço tridimensional.

Agora, entretanto, as possibilidades para as posições dos três planos são oito (ver [1]). Quatro delas correspondem a sistemas impossíveis (nenhuma solução), três, a sistemas indeterminados(*) (infinitas soluções) e uma, a sistemas que têm uma única solução.

Os depoimentos abaixo mostram que essa abordagem geométrica torna o assunto mais interessante e dá maior segurança para quem o ensina.

Professor A:

“Trabalho com uma turma do 2o ano do 2o grau muito interessada em estudar. Quando ia introduzir Sistemas Lineares, fiz uma revisão de sistemas do 1o grau com duas variáveis vistos na  7a  série do 1o grau. Os alunos fizeram várias perguntas sobre os tipos de solução. Fiz os gráficos das equações e mostrei as retas paralelas, coincidentes e concorrentes para justificar as soluções. Se não tivesse feito esse curso, teria ficado em “apuro”, pois, quando comecei os sistemas com 3 variáveis e 3 equações, eles também me perguntaram como representá-los graficamente.”

 

Professor B:

“Estou sabendo fazer a interpretação geométrica dos problemas e isso me deixa mais à vontade. Antigamente, sabia fazer algebricamente, mas ficava uma lacuna, um vazio, faltava a interpretação.”

Os comentários feitos podem ser sistematizados assim: ao associar um plano a cada equação sistema linear 3 x 3, a abordagem geométrica permite distingüir tipos diferentes de sistemas  indeterminados e impossíveis. Analisando as possibilidades para as posições relativas de três planos no espaço, os professores perceberam que:

(1) No caso dos sistemas indeterminados, as infinitas soluções podem ser os pontos de um plano ou de uma reta.

____________
(*) NR: Embora esse seja o nome usual, na verdade o conjunto solução desses sistemas está completamente determinado, apesar de ter infinitos elementos.  

(2) No caso dos sistemas impossíveis, a inexistência de soluções pode ocorrer de maneiras distintas: dois ou três planos podem ser paralelos entre si ou os três planos podem se interceptar dois a dois segundo retas paralelas.

Ilustremos essas situações com alguns exemplos.

Exemplo 1: O sistema

    x - y +  z = 1      (1)

2x - 2y + 2z = 2     (2)

3x - 3y + 3z = 3     (3)

 

tem infinitas soluções, pois todos os ternos ordenados de números reais da forma  
(a, b, 1 - a + b )   satisfazem as suas três equações. Vemos imediatamente que cada equação pode ser obtida de qualquer outra por meio da multiplicação por uma constante. Geométricamente, portanto, (1), (2) e (3) representam o mesmo plano , e as infinitas soluções nesse caso são os pontos de .

Fig. 1:

Exemplo 2: O sistema

x +   y +   z = 1     (1)

2x + 2y + 2z = 2     (2)

                    z  = 0     (3)

real, satisfazem as três equações. Contudo, a interpretação geométrica é diferente da do exemplo 1. De fato, (1) e (2) representam o mesmo plano anterior, mas (3) representa um outro plano, 3, que intersecta V segundo a reta r. No espaço, dois plano não coincidentes e não paralelos têm como interseção uma reta.) Ao fazer variar no conjunto dos números reais, obtemos todos os pontos dessa reta.

Fig. 2: 1 = 2 =         3  = r

Os exemplos acima mostram duas possibilidades de “indeterminação”.

Vejamos agora dois exemplos distintos de sistemas impossíveis.

Exemplo 3: O sistema

x + y + z = 0                 (1)

x + y + z = 1                 (2)

x + y + z = 2                 (3)

claramente não possui solução.

A situação geométrica corresponde ao caso em que os três planos 1, 2 e 3 são paralelos, já que não existe um terno ordenado real (x, y, z) que satisfaça simultaneamente quaisquer duas dessas equações.

Exemplo 4: O sistema

2x - 3y + 2z = 2            (1)

3x - 2y + 4z = 2              (2)

4x -   y + 6z = 3            (3)

também não tem solução.

Uma maneira simples de verificarmos esse fato é, por exemplo, somar as equações (1) e (3) e comparar o resultado com a equação (2).

Considerando agora os sistemas formados por (1) e (2), (1) e (3) e por (2) e (3), podemos Concluir e que 1 1 é uma reta r, 1 1 é uma reta s e 1   é uma reta t.

Verifiquemos que r, s e t são paralelas.

Os pontos de r satisfazem (1) e (2), logo não satisfazem (3), pois o sistema é impossível. Portanto, temo r paralela a 3. Como s está contida em 3, temos que r e s não se cortam, logo são paralelas já que ambas estão contidas em 1. De modo análogo vemos que s é paralela a t.

Portanto, a interpretação geométrica do sistema em foco é: o sistema é impossível porque os planos representados por suas equações se intersectam dois a dois segundo três retas paralelas.

2 - Regra de Cramer x escalonamento

Os professores também demonstraram interesse na questão da opção pelo método de resolução de sistemas lineres 3 x 3.

A regra de Cramer para resolver sistemas lineares só pode ser aplicada no caso em que o determinante da matriz dos coeficientes do sistema é não nulo: essa situação corresponde ao caso em que os três planos se intersectam num ponto e o sistema tem solução única. Entretanto vários livros afirmam erroneamente que um sistema que tem nulos todos os determinantes da regra de Cramer é indeterminado (ver [2]). 

Com relação à discussão sobre a utilização incorreta da regra de Cramer, os professores também se manifestaram. Vários deles citaram livros em que aparece a afirmativa acima e admitiram que já haviam cometido tal erro ao ensinar. A interpretação geométrica dos sistemas lineares possibilitou-lhes perceber claramente a falsidade dessa afirmativa através de exemplos que eles mesmos souberam construir. Vejamos um desses exemplos.

Exemplo 5: O sistema

x + y + z = 0                 (1)

x + y + z = 1                 (2)

x + y + z = 2                 (3)

considerado no exemplo 3 claramente não possui solução (os três planos são paralelos). Entretanto, os determinantes utilizados na regra de Cramer

                         

são todos nulos, pois as matrizes possuem pelo menos duas colunas iguais.

A partir do curso, os professores passaram então a dar mais ênfase ao método de escalonamento, mais geral, tendo adotado essa prática em suas salas de aula, como mostram os seguintes relatos.

Professor C:

“Este curso me ajudou muito, principalmente na resolução de sistemas lineares , que antes eu trabalhava usando determinantes e quando encontrava todos os determinantes iguais a zero classificava o sistema como indeterminado, cometendo o mesmo erro de alguns autores. Após o curso passei a resolver sistemas com meus alunos usando o escalonamento. Tenho mais clareza e segurança ao abordar o assunto.”

Professor D:

“Apesar de não ter mencionado a resolução de sistemas por Cramer quando D = 0, alguns alunos repetentes apresentaram soluções com a teoria errada. A referência ao assunto que vi no curso ajudou-me a perceber e comentar o erro. Acredito que no próximo ano eu apresentarei esse assunto de forma melhor.”

Por esses depoimentos, podemos perceber que o enfoque dado aos sistemas lineares durante o curso foi importante para os professores se posicionarem com segurança em relação ao assunto dentro de sua prática profissional.

 

     Conclusão

A associação dos sistemas lineares 2 x 3 e 3 x 3  com a Geometria Espacial foi, como vimos, uma surpresa para os professores, que logo pensaram um modo de adaptar tal interpretação à realidade da sala de aula.

Alguns ponderaram que, apesar do estudo de retas e planos no espaço ser feito após o de sistemas lineares, é possível apresentar aos alunos a associação acima de maneira simples. Consideraram importante a analogia com o estudo de sistemas lineares 2 x 2 , que é feito no 1o grau. Esse exemplo é, a nosso ver, uma boa ilustração de como se pode enriquecer o trabalho com a Matemática, evitando-se uma visão compartimentada da Matemática, presente muitas vezes entre os professores.

Aproveitamos a idéia da associação de um tópico, abordado tradicionalmente de modo algébrico, com a Geometria para enfatizar que o enfoque geométrico é um instrumento poderoso que merece ser usado sempre que possível. Para terminar, salientamos que o tema Coordenadas no espaço foi adequado para atender às expectativas dos professores, tendo tido reflexos positivos em sua atuação na sala de aula.

 

Referências Bibliográficas

[1] LIMA, E. L. Coordenadas no espaço. Rio de Janeiro: SBM, 1993.

[2] LIMA, E. L. Sobre o ensino de sistemas lineares. RPM. São Paulo: SBM, no 23: 8-18, 1993.