Renate G. Watanabe
São Paulo, SP

     Introdução

Acontecem fatos estranhos quando se ensina Trigonometria:

  Observe as tabelas abaixo contendo alguns valores de duas funções f e g

x

f(x)

 

x

g(x)

0,1

0,00174

 

0,1

0,099

0,2

0,00349

 

0,2

0,198

0,3

0,00524

 

0,3

0,295

0,5

0,00873

 

0,5

0,479

1,0

0.01745

 

1,0

0,841

As duas funções não são iguais; no entanto, em nossas aulas, chama­mos ambas de seno.

Sempre medimos ângulos e arcos em graus. Por que, de repente, no 2.° grau, resolvemos medir arcos em radianos?... e, fora da trigonometria, continuamos usando graus?

Se numa calculadora apertarmos os botões " ", "seno", " = " e, depois, "l 80", "seno", " = ", os dois resultados não deveriam ser "zero"? Pois não são

E sen l vale quanto?

Este artigo vai tentar esclarecer essas questões. Falaremos apenas do "seno", mas o que for dito se estende às demais funções trigonométricas.


 
     TRIGONOMETRIA NO 1.° GRAU (e um pouco da sua história)

A Trigonometria é uma parte bem antiga da Matemática. Já antes de Cristo, o interesse pela astronomia, agrimensura e navegação provocou o aparecimento das razões trigonométricas e sua tabulação. A primeira "tabela trigonométrica" de que se tem conhecimento foi compilada por Hiparco, no século II a. C.

Desde a sua origem e, certamente, até a Renascença, a Trigonometria foi usada para resolver problemas de natureza geométrica.

E nesse contexto que, na 8.ª série, definimos, pela primeira vez, a função Seno (aqui denotada com um S maiúsculo):

No triângulo retângulo ABC, se for um dos ângulos agudos,

  Sen =1, se for um ângulo reto,

  Sen = Sen , se e forem suplementares.

Como a medida de ângulos, em Geometria, varia de 0 a 180 graus, o Seno acima definido pode ser visto como uma função cujo domínio é o conjunto dos números reais entre 0 e 180 (acrescentando na definição que Sen 0 = 0).

E, enquanto usamos a Trigonometria para resolver problemas de Geometria, essa função Seno - e suas companheiras Cosseno e Tangente -atendem a todas as necessidades.
 

 
     TRIGONOMETRIA NO 2° GRAU

A transição das razões trigonométricas para funções periódicas de domínio IR, de aplicações mais amplas, começou com Viète, no século XVI, e culminou nos trabalhos de Euler, no século XVIII.

Nós fazemos essa transição no 2.° grau, quando apresentamos, as "funções circulares".

Com pequenas variações na linguagem, procedemos da seguinte maneira para "ampliar" a função Seno.

No plano cartesiano, considera-se a circunferência de centro na origem e raio unitário.

Dado um número x entre 0 e 360, associa-se a esse número um ponto P da circunferência tal que a medida em graus do arco orientado que começa em A = (l ,0) e termina em  P seja x. (Arco orientado e x > 0 significa que o percurso de A até P deve ser feito no sentido anti-horário.)

Sen x = ordenada de P.

Se x for negativo, ou maior do que 360, então Sen x = Sen r, onde x=360q+ r, com q Z e 0 r < 360.

Essa função Seno (denotada por f (x) no inicio do artigo), de domínio IR, periódica, atendeu às necessidades da Física, mas apresenta um grande inconveniente na parte referente a cálculos O estudo de fenômenos físicos quase sempre requer o uso de equações diferenciais, isto é,

Eis por que:

x Sen x (Sen x) / x

1,0

0,5

0,3

0,2

0,1

0,0174524

0,0087265

0,0052360

0,0034907

0,0017453

0,017452

0,017453

0,017453

0,017453

0,017453

A tabela ao lado mostra que os valores de (Sen x) / x, para x próximo de 0, ficam próximos de 0,01745. Pode-se demonstrar que:

Lembrando a definição de derivada, temos:

Teria sido muita sorte mesmo se a função Seno tivesse uma derivada "agradável". Afinal, sua definição depende da de grau, e essa unidade foi criada (~ 400 a.C.) pelos babilônios, que, por razões até hoje não totalmente esclarecidas, usavam o sistema sexagésimal.

A inconveniência de se carregar essa constante /180 nos cálculos propiciou a criação de uma nova função seno, com as mesmas propriedades da anterior, e cuja derivada é a função cosseno. Designaremos essa função por seno com s minúsculo.

No 2.° grau essa nova função pode ser assim definida:

  No plano cartesiano, considera-se a circunferência de centro na origem e raio unitário (isto é, a circunferência passa pelo ponto (1,0) e o seu raio passa a ser a unidade de medida).

  Dado um número x, efetua-se sobre a circunferência, a partir de A = (1,0), um percurso de comprimento  x   (no sentido anti-horário se x > 0 e no sentido horário se x < 0). Seja P o ponto de chegada.

sen x = ordenada de P.

Essa função seno (denotada por g (x) no inicio do artigo) tem todas as propriedades da anterior e a seguinte vantagem, que pode ser vista tanto na figura acima como na tabela a seguir:

x sen x sen x / x

0,5

0,3

0,2

0,1

0,47943

0,29552

0,19867

0,09983

0,9588

0,985

0,993

0,998

quando P se aproxima de A, os comprimentos do segmento CP e do arco AP tomam-se praticamente iguais.

Pode-se provar que:

E é esse o motivo por que, fora da Geometria, apenas essa função seno é usada.

Aqui cabem algumas observações:

l. Na definição dada, para 0 < x < 2,  x é a medida em radiamos do arco orientado AP. Mas, como se viu, não foi necessário introduzir o radiano para definir a função seno. A palavra radiano data de 1873, e é uma criação posterior à da função seno. Aparentemente, veio da fusão das palavras radial angle, que deu radiem em inglês e radiano em português.

2. Pode-se definir a função seno (e as demais funções trigonométricas) sem fazer alusão a arcos, ângulos ou percursos (ver, por exemplo, Análise real, de Elon Lages Lima, IMPA, vol. l, p. 162).

3. Já que a função Seno, de domínio IR, não tem utilidade, pode-se definir Seno de um ângulo e, daí, passar diretamente para a função seno (ver, por exemplo. Cálculo, de Serge Lang, vol. l, p. 81).

 

     Em Resumo

Para definir seno de um número x, no 2.° grau, efetua-se, na verdade, a composição de duas funções:

  uma, que ao número x associa um ponto P da circunferência,

  e outra, que a esse ponto P associa sua ordenada.

O problema está na associação (l), que costuma ser feita de dois modos:

  a x associa-se P tal que o arco AP mede x graus;

  a x associa-se P tal que o arco AP mede x radianos.

No primeiro caso fica definida a função Seno e, no segundo caso, a função seno.

 
     E na Sala de Aula?

Alguns livros didáticos, lançados em outros países, reconhecem a existência das duas funções seno e usam símbolos diferentes para representá-las.

No Brasil há uma espécie de "acordo de cavalheiros". Quando a palavra seno aparece na frente de números como 30, 45, 180, etc., assumimos tratar-se da função Seno Se essa mesma palavra aparece na frente de números como , 2/3, /6, etc., assumimos tratar-se da função seno... e evitamos perguntar quanto vale o seno de l para não criar confusão.

Quando pedimos aos nossos alunos que resolvam a equação sen x = 0, aceitamos como corretas as soluções  x = k  ou  x = k 180, mas  reclamamos, é claro, se o aluno disser que = 180.

Uma possível saída é usar sempre o símbolo "grau" quando se trata da função Seno, isto é, escrever sen 30°, sen 45°, sen 500°, sen 1°, (embora Seno seja uma função de domínio IR), e reservar o símbolo "sen" para a função seno. sen n, sen 34, sen 1, etc.