Geraldo Ávila
Departamento de Matemática
Universidade de Brasília
70910 – Brasília – DF

A idéia de que a importância da Matemática reside no raciocínio lógico-dedutivo que ela emprega é uma noção bastante generalizada; e não apenas os leigos pensam assim, pois muitos professores de Matemática também, acreditam ser o encadeamento lógico das demonstrações a essência do pensamento matemático.

Isto, todavia, é uma visão parcial, já que o pensamento matemático vai muito além do raciocínio lógico-dedutivo. Em seus aspectos mais criativos ele repousa sobretudo na intuição, no raciocínio plausível e nos recursos heurísticos, na imaginação e na visualização geométrica. Muito freqüentemente, o raciocínio demonstrativo apenas legitima o conhecimento já adquirido através desses outros recursos – os mais férteis da criatividade intelectual.

Há muitos exemplos que podem ser aduzidos para ilustrar esse fato, alguns até célebres na Historia da Matemática, como várias das descobertas feitas por Arquimedes, notadamente a da fórmula do volume da esfera. Entretanto, deixando de lado esses exemplos, vamos descrever e comentar aqui um episódio interessante e pitoresco, referente a um problema de Geometria, proposto numa prova para mais de um milhão de alunos. Um deles resolveu corretamente o problema, precisamente porque soube usar sua imaginação, enquanto seus professores e  colegas, caíram em erro por que não se valeram da visualização.

Tudo se passou nos Estados Unidos, no ano 1981, quando uma organização chamada Serviço de Testes Educacionais (Educational Testing Service) ministrou um exame para cerca de 1,3 milhão de estudantes do 2º grau. O interesse de um aluno em fazer tal exame, que é oferecido anualmente, reside em que a classificação nele obtida é usada para pleitear certas bolsas de estudos distribuídas em todo o país. Nesse exame foi proposto o equivalente à seguinte questão:

Seja ABCDE uma pirâmide de base quadrada, cujas laterais são triângulos eqüiláteros; e seja FGHI um tetraedro regular cujas faces sejam (triângulos eqüiláteros) congruentes às faces laterais da pirâmide (Fig. 1). Suponhamos que se juntem os sólidos de maneira que a face ADE da pirâmide coincida com a face GIH do tetraedro, o resultado sendo o poliedro ABCDEF (Fig. 2) Quantas faces tem este poliedro?

Fig.1Fig.2

Ao proporem esta questão os organizadores da prova usaram  de raciocínio puramente lógico: “a pirâmide tem 5 faces e o  tetraedro 4, num total de 9 faces; ao se juntarem os dois sólidos, 2 faces desaparecem, logo o poliedro restante terá 7 faces. Esta  a resposta que eles julgavam correta e que esperavam dos alunos que fizeram a prova.

Entretanto, um dos alunos, Daniel Lowen, de 17 anos, da Escola “Cocoa Beach”(Cocoa Beach High School), na Flórida, respondeu que o novo sólido tinha 5 faces. Mais tarde ele explicou que a questão lhe pareceu a principio extremamente simples, envolvendo apenas contagem de faces, uma soma, uma subtração e nenhuma fórmula. Refletindo um pouco mais e considerando a justaposição dos dois sólidos, através da visualização espacial, ocorreu-lhe a idéia de que não apenas duas faces desapareceriam, mas as faces ACD e FGI ficariam num mesmo plano, o mesmo devendo acontecer com as faces ABE e FGH. Desta maneira, no sólido resultante, ABEF seria uma única face e não duas ocorrendo com ACDF.

Ao chegar em casa, após o exame, Daniel Lowen construiu modelos dos sólidos para certificar-se que tinha acertado a resposta. No entanto, quando recebeu o resultado do exame, ele constatou que sua resposta fora marcada como errada! Face a isto e considerando que seus examinadores não tivessem cometido qualquer engano, seu pai (que é engenheiro mecânico da empresa Rockwell) começou a estudar o problema, tentando descobrir o erro do filho. Não o conseguindo, acabou encontrando duas demonstrações, diferentes de que o filho estava certo!. Os organizadores do exame foram notificados e tiveram que aceder às provas apresentadas, após submeterem a questão a  uma comissão de professores, os quais, antes de saberem da solução do aluno Daniel Lowen, acharam, todos eles,  que a resposta devia mesmo ser 7!

Toda essa historia foi contada pelo jornal “The New York Times”, num artigo reproduzido  pelo jornal “San Francisco Chronicle” em sua edição de 18.03.81, que nos chegou às mãos pelo Prof. Said Siddki. Ainda um dado pitoresco dessa historia: a Educacional Testing Service gastou um adicional de 110.000 dólares para comunicar a todos os alunos que fizeram o exame o novo resultado, após o reajuste que se fez necessário (sem prejudicar os que deram a resposta como sendo 7, o que é correto, pois podemos considerar faces num mesmo plano, embora seja mais natural, ao referirmos às faces de um poliedro, entendermos faces em planos distintos). Um dos organizadores do exame disse também que no futuro eles terão o cuidado de construir modelos físicos de questões semelhantes ou fazer simulações em computadores.

O leitor deve atentar bem para o processo de descoberta usado por Daniel Lowen, todo ele baseado na imaginação e na visualização geométrica. Procedimentos como esse são freqüentes nas atividades de pesquisa dos matemáticos, cujas descobertas quase sempre se processam dessa maneira. Os grandes matemáticos, quando tratam de Pedagogia, insistem sempre na importância  de se estimular a imaginação do aluno, de se valer o professor do raciocínio heurístico, dos argumentos de plausibilidade e das analogias que possam eventualmente ser exploradas nos  processos de aprendizado e descoberta. O raciocínio lógico-dedutivo é, como já dissemos, apenas um dos aspectos do pensamento matemático.

David Hilbert (1862-1943), considerado,  ao lado de Henri Poincaré (1854-1912), um dos maiores matemáticos dos últimos cem anos, produziu uma obra matemática extraordinária, com resultados notáveis e profundos - em  Álgebra, Análise, Geometria, Física, Matemática, Fundamentos e Filosofia da Matemática. Em 1920 esse grande matemático deu um curso de Geometria na sua Universidade (de Göttingen, na Alemanha) e, mais tarde, as notas desse curso foram buriladas e publicadas em forma de livro (em 1932) em co-autoria com H. Colin-Vossen. Esse livro, que existe em tradução inglesa, chama-se “Geometria e Imaginação” (donde tiramos o titulo do presente artigo) e nele Hilbert nos ensina, com sua autoridade de grande mestre, a riqueza dos fatos geométricos vistos intuitivamente e com imaginação.

É claro, todavia, que só imaginação também não basta para estabelecer verdades matemáticas. Os examinadores de Daniel Lowen certamente não iriam mudar de opinião, enquanto não vissem uma demonstração conclusiva do teorema  por ele imaginado. Mas, como dissemos no início, a  atividade matemática, longe de se resumir nos encadeamentos lógicos das demonstrações, é o resultado de uma dosagem equilibrada dos vários recursos do raciocínio.

Vamos agora concluir este artigo com uma demonstração do resultado de Daniel Lowen. O leitor poderá descobrir outras, talvez até mais simples que esta que encontramos.

Fig 3

Provaremos numa única face ACD e ADF se fundem numa única face ACDF (Fig. 2). Para isto basta mostrar que o ponto F está no mesmo plano que A, C e D. Seja J o ponto médio do segmento AD (Fig. 3). Vamos estabelecer o resultado desejado provando que C, J e F são pontos da mesma reta. Os segmentos FJ, EJ e CJ são perpendiculares ao segmento AD, pois cada um desses três segmentos é mediatriz de um triangulo eqüilátero de base AD. Isto mostra que os pontos C, E, F e J estão no mesmo plano, precisamente o plano perpendicular ao segmento AD, passando pelo ponto médio deste segmento. Então ECJF é um quadrilátero plano, cujos lados podem ser calculados facilmente em termos da aresta a das faces triangulares dos poliedros dados inicialmente (Fig. 4) Da lei dos senos aplicada aos triângulos EJF e EJC obtemos,  respectivamente,

  Fig. 4

Por outro lado, o triangulo isósceles EJF nos mostra que 2a e x são ângulos suplementares, de sorte que sen 2a = sen x. Analogamente, sen 2b = sen y. Então,

 

2 sen a cos a = sen x  e  

2 sen b cos b = sen y.

(2)

Levando (1) em (2) obtemos


Isso mostra que os ângulos a e b são complementares, logo o triangulo CEF é retângulo em E. Portanto,

 

Concluímos daqui que o ponto J está alinhado com C e F, como queríamos demonstrar.

A demonstração de que as faces ABE e AEF (Fig. 3) se fundem numa única face ABEF é inteiramente análoga.

 

Testes em que um gênio pode falhar  

Henri Poincaré (1854-1912) foi um dos homens a dominar toda a Matemática do seu tempo, proeza inteiramente impossível nos dias de hoje. Ele possuía uma memória prodigiosa. Quando era aluno, não tomava notas de aula: gravava fórmulas, definições, enunciados e demonstrações na cabeça. Se lia um artigo ou um livro, era capaz de se lembrar da página, da linha e das exatas palavras com as quais certa afirmação estava escrita. Elaborava mentalmente seus trabalhos de pesquisa matemática, mesmo os que envolviam laboriosos cálculos. Quando se sentava para redigí-los, já estavam acabados; escrevia sem apagar, consertar ou revisar nada, tudo num só jato. Nessas ocasiões, não o incomodava o barulho em volta,  nada perturbava sua concentração.

Certa feita, no auge da sua carreira matemática e de sua extraordinária vocação literária, que o permitia escrever belos livros de divulgação cientifica, os quais lhes asseguraram um lugar na Academia Francesa de Letras (além da Academia de Ciências, de que fazia parte), Poincaré se submeteu a uma bateria de testes de inteligência do tipo Binet. Seu desempenho nesses testes foi considerado como o de um débil mental. Evidentemente, isto diz mais sobre os testes do que sobre o imortal Poincaré.

Mas como pode um gênio ser reprovado num teste de inteligência? Em parte porque esses testes são elaborados por pessoas de inteligência média, as quais não percebem certas possibilidades que são óbvias para os super-dotados. Mas a razão principal é que as maioria das questões nesses testes exigem intuição e não dedução, palpites em vez de raciocínio lógico. Ilustremos estes pontos com dois exemplos. Consideremos as questões abaixo:

a)   Que número está faltando na seqüência  1, 2, 4, 5?

b)   Um relógio marca 8 horas e 20 minutos. Que hora marcará se trocarmos a posição do ponteiro grande com a do pequeno?

A maioria das pessoas responderá “3” para a primeira pergunta e “4 horas e 40 minutos” para a segunda. Mas, do ponto de vista lógico, as respostas certas são “não sei”e “hora nenhuma”, respectivamente. Com efeito, a pergunta a) apenas “induz”uma resposta mas não contém elementos que nos permitam concluir que esta é a única resposta possível. A partir do seu enunciado, qualquer maneira de completar a serie é aceitável, logo a única resposta logicamente adequada é  “não sei”. A pergunta b) contém um erro grosseiro. Trocando as posições dos ponteiros, o menor ficará exatamente sobre o número 4 e aí o ponteiro grande só poderia  estar sobre o 12. Em hora nenhuma teremos o ponteiro pequeno sobre o 4 e o grande sobre o 8. (Na realidade, esta pergunta chegou a fazer parte dos testes Binet durante algum tempo.)