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Em um intervalo de pouco mais de um século, a Universidade da pequena cidade alemã de Göttingen desfrutou a colaboração de matemáticos como Gauss, Diríchlet, Riemann, Dedekind, Hilbert e Klein. Felix Klein (1849-1925) é citado no trabalho diário dos matemáticos, graças ao grupo de Klein, ou à garrafa de Klein [2], ou ainda a outras criações suas que nem levam seu nome, corno o grupo diédrico, porém é mais lembrado por sua célebre aula inaugural em Erlangen, em 1872 — conhecida como o Programa de Erlangen —, na qual exibiu uma espécie de classificação dos diversos ramos da Matemática, usando para isso a então recente Teoria dos Grupos, da qual ele mesmo foi um dos fundadores [3]. Mas o que muita gente talvez não saiba — e que se reveste de especial importância para nós, professores — é que sua ativa vida de matemático não impediu Klein de interessar-se profundamente pelo ensino da Matemática elementar. Dentre os legados que Klein nos deixou desse interesse, podemos citar duas obras, escritas entre 1906 e 1908: Sobre o ensino da Matemática nas escolas secundárias e Matemática elementar de um ponto de vista avançado [1]. No Prefácio desse segundo livro, Klein diz que procurou "... combinar a intuição geométrica com a precisão das fórmulas aritméticas". Todo professor sabe como é importante utilizar argumentos geométricos para motivar, descobrir, entender e até - por que não? demonstrar fatos de natureza algébrica. Porém, a verdade é que estamos mais acostumados a usar esse expediente na álgebra dos números reais (visualizados na reta) ou dos complexos (visualizados no plano). Mais raro, e até mesmo surpreendente, é que possamos também fazê-lo na aritmética, isto é, no estudo das propriedades específicas dos números inteiros. É dentro desse espírito que pretendemos resumir e adaptar aqui uma luminosa página do livro citado, na qual Klein utiliza argumentos geométricos para estabelecer a célebre caracterização dos trios pitagóricos, que já foram, do ponto de vista da álgebra dos inteiros, abordados mais de uma vez na RPM (ver os números 7 e 18). A idéia inicial é que procurar números inteiros positivos que satisfaçam a equação b2 + c2 = a2 equivale a pesquisar números racionais positivos que satisfaçam x2+ y2 = 1, como se pode ver dividindo a primeira equação por a2 e substituindo b/a por x e c/a por y, e, reciprocamente, escrevendo x e y como quocientes de inteiros e eliminando os denominadores. Com isso, já passamos dos inteiros para os racionais.
No plano, os pontos (x,y)
de coordenadas racionais positivas e que satisfazem x2
+
y2 = 1 são justamente os pontos do círculo unitário
(centro na origem e raio 1) que estão no primeiro quadrante e possuem ambas
as coordenadas racionais. Para cada ponto P = (x,y) desse tipo, tracemos a reta r que une P ao ponto Q = (-1,0). A inclinação dessa reta é, então, t = SP/QS = y/(x + 1), que será também um racional positivo (já que x e y o são), tal que 0 < t < 1, como se vê geometricamente pelas posições-limite de r. Reciprocamente, cada reta r que passa por Q e tem inclinação t terá uma equação da forma y = t(x +1), e vai portanto interceptar o círculo x2+ y2 = 1 no ponto que se obtém substituindo y = t(x + 1) na equação do círculo, encontrando (1 + t2)x2 + 2t2x + (t2 1) = 0 Essa equação do segundo grau tem uma raiz igual a 1 (correspondente ao ponto Q, e que não nos serve), enquanto a outra raíz (a que procuramos) é x = (1 — <2)/(l + í)2, de onde obtemos y através da equação y = t(x + 1), ficando pois com:
Daí vemos, algebricamente, de modo imediato que, se t for racional, x e y também o serão. Menos imediato — do ponto de vista algébrico — é ver que, quando t varia entre 0 e 1, o ponto P percorre o primeiro quadrante. A conclusão é portanto que, através das fórmulas (*) e da equação t = y/(x + 1), fica estabelecida uma correspondência biunívoca entre os valores racionais de t (entre 0 e 1) e os pontos de coordenadas racionais do círculo unitário (no primeiro quadrante). Pondo, então, t = n/m, com 0 < n < m, onde m e n são naturais primos entre si, obtém-se:
Portanto, nossa equação x2 + y2 = 1 passa a ficar:
ou, nos inteiros:
Só isso já sugere a forma geral dos trios pitagóricos. Podemos acrescentar — agora não mais por um raciocínio geométrico — que, se escolhermos m e n não ambos ímpares (além de primos entre si), então obteremos todos os trios pitagóricos primitivos, isto é, sem fatores comuns não triviais. Mas aí já é aritmética (ver RPM 7). Para concluir, queremos observar que desde o início poderíamos também ter raciocinado que o ponto P = (x,y), genérico no círculo trigonométrico, é da forma (cos , sen ); utilizando então as fórmulas da "tangente do arco-metade", chega-se as fórmulas (*). Dependendo do contexto onde esteja sendo ventilado o assunto, esse argumento pode ser usado e é mais rápido. Porém, fizemos questão de reproduzir a dedução de Klein, pois ela é mais primitiva, não dependendo de maiores conhecimentos trigonométricos. Alternativamente, podemos interpretar esse caminho como uma forma de deduzir as fórmulas do seno e do cosseno em função da tangente do arco-metade.
Referêrncias Bibliográficas [1] KLEIN, F. Elementary Mathematics from an Advanced Standpoint. New York, Dover, 1939. [2] COURANT, R; ROBBINS, H. Qué es la Matemática?. Madrid, Aguilar, 1970. [3] STRUIK, D.J. A Concise History of Mathematics. London, G. Bell and Sons Ltd., 1954.
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