ZOROASTRO
e a Equação da  Circunferência

Elon Lages Lima
IMPA, Rio de Janeiro, RJ

Esta é apenas uma pequena parte da longa conversa que tivemos outro dia. Muito mais foi dito, mas não disponho de tempo nem espaço para contar agora.

Ele chegou sem avisar, num sábado à tarde. Recebi-o surpreso.

   Zoroastro! Há quanto tempo! Cheguei até a ouvir rumores de que você morrera.

  São exagerados. Vim aqui pelo assunto do seu artigo-entrevista. De um modo geral, concordo com a sua posição. Mas você omitiu alguns pontos cruciais.

  Não se pode dizer tudo em cinco páginas. A Renate não me deixa escrever muito. Além disso é melhor que os leitores fiquem querendo mais.

  Desculpas. Até que você começou bem. A Matemática da primeira à oitava série não requer mesmo talento especial. Para aprendê-la basta um nível normal de inteligência, o mesmo necessário para as demais matérias. Mas a escola não acaba na oitava série. Por que parou aí? Que me diz sobre o segundo grau?

   Está lá na RPM. Endossei a separação: acadêmico e profissional.

   No fim do artigo, sem muita firmeza.   Não deu ao tema o destaque merecido.  O ensino da Matemática no segundo grau é um problema muito sério.

   Vim defender o professor do segundo grau, essa criatura desamparada.

   Nem tanto. O projeto IMPA-VITAE, por exemplo...

   Foi bom mas durou pouco e alcançou apenas uma minoria A massa dos professores continua valendo-se somente do duvidoso socorro dos livros-texto para ajudá-los na preparação das suas aulas.

   Você não está sendo injusto? Tenho visto livros muito atraentes e coloridos. Parecem interessantes.

   Uma mesmice. Repetem os defeitos uns dos outros. Sem falar nos erros que todos cometem.

   Todos? Dê-me exemplos.

   Darei um, que constatei em todos os livros do segundo grau que possuo (e são muitos). Trata-se da equação da circunferência.

    Ora, Zoroastro!   Não me diga que ela está deduzida erradamente nos seus livros.

   Não é isso.   Todos eles a deduzem de forma correta.   Mas depois se confundem ao concluírem que a equação

Ax2 + By2 + Cxy + Dx + Ey + F = 0

representa uma circunferência se. e somente se,   A = B 0,   C = 0 e   D2 + E2 > 4AF.

   Espere aí. Isso é absolutamente certo!

   A afirmação é verdadeira. O argumento que os autores usam para chegar a essa conclusão é que não convence A parte "se" está bem, como já disse. O "somente se" é onde a turma toda escorrega.

   Como assim? Supondo que a equação acima seja satisfeita pelas coordenadas (x,y) dos pontos de uma circunferência, prova se que  A = B 0, C = 0   e  D2 + E2 > 4AF.   Em todos os livros que você viu essa demonstração é insatisfatória?

   Ninguém raciocina certo.   Alguns cometem o erro de admitir que o "somente se" decorre do "se":   fazem a afirmação e. des preocupadamente, vão adiante, confundindo uma proposição com sua recíproca.   Outros, mais corajosos, tentam demonstrar e se atrapalham.

   Confesso que estou curioso.   Um assunto tã<> simples p tão

— Todas são mais ou menos iguais. Os autores escrevem por extenso a equação da circunferência de raio r e centro no ponto de coordenadas   (a,b):

x2 + y2 2ax 2by + (a2 + b2 r2) = 0

Em seguida, reescrevem a equação dada sob a forma

Aqui, naturalmente, dizem que estão supondo A 0. Para começar, não tinham o direito de fazer essa hipótese porque A 0 faz parte da tese a ser provada.

   Um momento.   Esse erro não é grave.   A condição   A 0 pode perfeitamente ser incluída na hipótese, provando-se apenas as demais afirmações.

   É verdade, embora eu ache impróprio tomar como hipótese uma coisa que pode ser facilmente provada.   Mas não vou insistir sobre isso. O defeito mais sério vem a seguir. Todas as demonstrações que vi usam um suposto resultado da Álgebra que simplesmente não existe. Refiro-me à seguinte afirmação, da qual resulta imediatamente o teorema que se quer provar:

"Se dois polinómios  p(x,y)  e  q(x,y)  se anulam para os mesmos pares ordenados (x,y), ou seja, se as equações  p(x,y) = 0 e  q(x,y) = 0   têm as mesmas raízes, então os coeficientes dos termos semelhantes em  p e são proporcionais".

   Parece uma afirmação razoável.    Você tem algum contra-exemplo para ela?

   Sim. As equações  x2 + y2 xy = 0  e  x2 + y2 + xy =  são satisfeitas apenas quando   x = y = 0   mas os coeficientes   (1,1,-1)  e   (1,1,1)   não são proporcionais.  Se você quiser um exemplo com uma infinidade de soluções, basta considerar os polinômios p(x, y) = (x y)2(x + y)   e   q(x,y) = (x y)(x + y)2.    Eles se anulam no mesmo conjunto infinito de pontos   y = ± x,   mas seus coeficientes  (1,1,-1,-1)   e  (1,-1,1,-1)  não são proporcionais.

—  Mas o teorema enunciado,  ensinando como reconhecer equação da circunferência, é verdadeiros. Você deve possuir livros, inclusive estrangeiros, que tratam desse assunto em nível de universidade. Em algum deles viu aquele teorema demonstrado satisfatoriamente?

  A bem da verdade, não.  As críticas que fiz aos autores dos nossos livros-texto se estendem literalmente aos que escrevem livros para a universidade, inclusive estrangeiros.

  Menos mal. Isso atenua consideravelmente a culpa dos nossos colegas.  Mas... e agora?  Você tem alguma demonstração correta e elementar para sugerir?

  Tenho. Estamos com uma circunferência  ,  de raio  r, e sabemos que um ponto pertence a se, e somente se, suas coordenadas (x,y)  satisfazem a equação:

Ax2 + By2 + Cxy + Dx + Ey + F = 0.

Queremos provar que   A = B 0,   C = 0  e   D2 + E2 > 4AF.

Suponhamos, inicialmente, que o centro da circunferência seja a origem do sistema de coordenadas. Então os pontos de coordenadas (r, 0) e (r, 0) pertencem a . Substituindo sucessivamente esses valores na equação dada, obtemos:

Ar2 - Dr + F = 0         e         Ar2 + Dr + F = 0.

Dessas duas igualdades resulta que D = 0 e Ar2 + F = 0, ou seja, A = F/r2. Além disso, como a origem não pertence a , o par (0,0) não satisfaz a equação dada, logo F 0 e daí segue se que   A 0.

De modo análogo, levando em conta que os pontos de coordena das  (0, r)  e  (0, r)  também estão sobre  ,  concluímos que   E = 0  e   B = F/r2.

Portanto,   A = B 0 e D = E = 0. A equação dada se reduz a

Ax2 + Ay2 +Cxy+ F = 0.

Como o centro da nossa circunferência de raio r é a origem do sistema de coordenadas, vemos que as coordenadas (x, y) de todos os seus pontos cumprem a relação x2 + y2 = r2, logo a  equação acima significa

Ar2 + Cxy + F = 0.

Se fosse C 0, daí tiraríamos xy = (F + Ar2)/C e concluiríamos que o produto xy das coordenadas de um ponto qualquer de      seria constante, o que não é verdade. Logo  C = 0.

Resumindo: se  Ax2 + By2 + Cxy + Dx + Ey + F = 0  é a equação de uma circunferência com centro na origem do sistema de coordenadas, então A = B 0 e C = 0. (Nesse caso, tem-se ainda D = E = 0,   mas isso não vale sempre.)

Passemos ao caso geral, em que o centro da circunferência é um ponto arbitrário, de coordenadas (a, b). Então consideramos a circunferência   ',  de mesmo raio  r,  com centro na origem.


 

Um ponto de coordenadas   (x,y)  pertence a   '  se, e somente se, o ponto de coordenadas  (x + a,  y + b) pertence a   ,   isto é, se, e somente se,

A(x + a)2 + B( y + b)2 + C(x + a)( y + b) + D(x + a) + E(y + b) + F = 0,

ou

Ax2 + By2 + Cxy + D'x + E'y + F' = 0.

Esta última equação, portanto, representa a circunferência '. Note que os coeficientes A, B e C são os mesmos da equação de . (Os demais coeficientes D', E' e F' não nos interessam.) Como o centro de ' é a origem do sistema de coordenadas, segue-se do que vimos acima que   A = B 0  e  C = 0.

Assim, a equação da circunferência    se reduz a:

Ax2 + Ay2 + Dx + Ey + F = 0       ou

 

Completando os quadrados, essa última equação se escreve como:  

e daí resulta imediatamente que   D2 + E2 > 4AF.

   Muito bem, Zoroastro.   Demonstração elegante e elementar    Bem que os nossos autores poderiam usá-la em seus livros   (Citando você como fonte, naturalmente.) Mas continuo intrigado.  Não consigo entender como tantos autores, em países diferentes e durante tantos anos, fazem a mesma afirmação incorreta, sem tentar prová-la nem testar sua validade com exemplos.

   Também me ocorreu o mesmo pensamento e até discuti o assunto com um jovem ex-aluno meu, o Gugu, que você deve conhecer.   Minhas conversas com ele ajudaram bastante a esclarecer as idéias.   Tenho uma  hipotética explicação, que passo a propor.

__________
*
Ver, por exemplo. Álgebra, um curso de introdução, de A . Garcia  e  Y. Lequain, IMPA, 1988.

Existe uma proposição clássica, chamada Teorema de Bézout, cuja demonstração não é acessível aos alunos do segundo grau* Segundo o Teorema de Bézout, se um polinómio p(x,y), de grau m, e um polinômio q(x,y) de grau n, são primos entre si (isto é, não possuem fator comum não-constante), então existem no máximo mn soluções (x,y) para o sistema de equações simultâneas  p(x, y) = 0,  q(r, y) = 0.  Por conseguinte, se infinitos pares (x,y) satisfazem simultaneamente essas duas equações, então os polinómios   p e q   tem um fator comum não-constante.

No caso particular em que p e q são ambos do segundo grau, só restam duas alternativas. A primeira é que esse fator comum seja do primeiro grau Nesse caso, tem-se

p(x, y) = (ax + by + c)(dx + ey +f )    e    q(x , y) = (ax + by + c)(mx + ny + ).

Então a equação p(x, y) = 0 define um par de retas  r,  s,  enquanto a equação q(x, y) = 0 define outro par de retas  r, t  (mesma reta r). Como estamos supondo que os polinômios p e q se anulam sobre o mesmo conjunto infinito de pares (x,y), deve-se ter   s = t,  logo (m,n, é proporcional a   (d, e, f )   e os coeficientes de   q   são proporcionais aos de  p.

A segunda alternativa é que o fator comum   r(x,y)   seja do segundo grau. Neste caso, tem-se:

p(x, y) = a . r(x, y)         e         q(x, y) = b . r(x , y) ,

com   a e b   constantes.   Então, obviamente, os coeficientes de   p e q   são proporcionais.

—  O que você está propondo é uma justificativa plausível para as afirmações que os autores fazem mas não provam. Mas há duas ressalvas a fazer. A primeira é que esse último argumento se baseia no Teorema de Bézout, um resultado altamente não-trivial, como você mesmo admitiu. A demonstração que você me expôs antes, e que espero seja adotada pelos nossos autores, é bem mais simples e compreensível. A segunda ressalva tem, na realidade, a forma de uma dúvida. Será que esses autores tinham em mente uma explicação como a que você acabou de dar, quando fizeram suas afirmações?

—  Para ser franco, acho que não.   Você pode ver por que tenho essa opinião se consultar os livros de Sonnet e Frontera, ou então de Salmon.

[Na segunda feira seguinte fui direto à biblioteca do IMPA. Comecei com G. Saimon, prestigioso autor inglês.  Em seu livro A treatise on conic sections, sexta edição, li o seguinte:

It will be observed that the equation of the circle, to rectangular axis, does not contain the term xy, and that the coefficients of x2 and y2 are equal. The general equation

ax2 + by2 + 2hxy + 2gx + 2fy + c = 0

cannot therefore represent a circle, unless we have   h = 0  and  a = b.

Está claro que o venerando Salmon confundiu uma proposição com sua recíproca. Quem diria...

Em seguida fui em busca de Sonnet e Frontera. (Puxa! O Zoroastro é chegado a antigüidades.) Aqui está: Eléments de Géométríe Analytique décima primeira edição. Um livro bem-sucedido no começo do século Pude ler

On démontre en Algèbre que pour que deux équations à deux variablec aient les mêmes Solutions, ii faul et il suffit que leurs coefficients soient proportionels.

Evidentemente, quem escreveu isso não sabia o que estava dizendo. O Zó tem razão.]

Voltando à conversa original, depois disso só me restou comentar:

—  Você demora a aparecer, mas quando vem traz sempre uma surpresa Ainda tem outra bomba?

Bomba mesmo, não.    Mas tenho outros assuntos que gostaria de

discutir.

—  Está bem, mas acho que está na hora de fazermos uma pausa.

E abri uma cerveja para assinalar o fim da primeira parte de nossa conversa.