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J. R. Drugowich de Felício RESUMO Linearizar o comportamento dos sistemas investigados é uma atitude que acompanha os homens desde a antiguidade. Esse procedimento, porém, pode ser fatal quando mal utilizado, conforme mostraremos neste artigo. O assunto é muito popular (trata-se de jogos com dados) e as conclusões são surpreendentes. O problema reveste-se de importância histórica quando lembramos que foi através dele que Pascal, brilhante cientista francês, deu as suas primeiras contribuições àquela que ficaria conhecida como a teoria das probabilidades.
O início da abertura das fronteiras entre os países do sul da América (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) reacende a polêmica em torno da legalização dos cassinos. Tema proibido depois que eles foram proscritos pelo presidente Dutra, voltou à baila nos anos 90 quando todo o mundo percebeu que a loteria esportiva, a loto, os bingos, a raspadinha, a loteria federal e principalmente o jogo do bicho podem ser alternativas viáveis para se tomar o dinheiro do povo mas jamais substituirão o "frisson" de um cassino. Para complicar ainda mais a situação, você tem agora total liberdade de dar uma esticada até Mar del Plata, ou mesmo Punta del Este, e ficar "borracho" de tanto olhar para aquele pano verde e tentar adivinhar em que raios vai parar aquela roleta. Não é nosso objetivo discutir se os cassinos devem ser reabertos, mas sim mostrar que eles já prestaram relevantes serviços ao desenvolvimento da ciência, colaborando de forma especial para o surgimento da teoria das probabilidades. Saiba por quê. Blaise Pascal vivia na França no século XVII e já fazia parte de um time de gente famosa por seus trabalhos científicos. Era contemporâneo de Isaac Newton, Pierre Fermat, René Descartes e Gottfried Leibniz. Ocorre que Pascal perdeu seu pai ainda jovem e se viu de repente em excelente situação financeira. Aí a estória é um pouco delicada. Embora alguns de seus biógrafos discordem, outros afirmam que essa fase coincidiu com o início de um de seus períodos mundanos. Ao que tudo indica, não se sabe bem se por tristeza ou por deslumbramento, Pascal teria começado a freqüentar a noite parisiense de forma intensa. Foi assim que ele encontrou Antoine Gombaud (conhecido como Chevalier de Méré), que talvez injustamente acabou passando para a história apenas como um jogador inveterado. Ninguém duvida que foi Chevalier que chamou a atenção de Pascal para os dois problemas que pretendemos discutir. O que se questiona é se eles de fato tiveram origem em desafios propostos a freqüentadores de cassinos. Mas a lenda é interessante e pode servir de motivação para uma aula introdutória sobre a Teoria das Probabilidades.
Segundo a lenda, Chevalier de Méré estava acostumado a desafiar os freqüentadores da casa com uma aposta fulminante. Ao lançar um dado quatro vezes seguidas, ele teria que conseguir "pelo menos" uma vez a face 6. Se não conseguisse, perdia a aposta. Você deve estar pensando que isso é "mole" e que o Chevalier ganhava tranqüilo. Se esse não for o seu caso, experimente fazer uma pesquisa de opinião entre seus alunos. É quase certo que muitos farão uma "regra de 3" e chegarão à conclusão de que em 66% das vezes o profissional sairá ganhando. A seguir, você pode sugerir a eles que façam ciência experimental. Aconselha-se arrumar muitos dados para que vários eventos possam ser colecionados rapidamente. Para servir de guia vamos colocar na Tabela I os resultados obtidos por simulação em computador e na Figura I uma representação do que acontece ao longo de 10 000 apostas, "fotografadas " a cada 200 passos. TABELA I
Estimativa, por meio de simulação com números aleatórios, da probabilidade de obter pelo menos uma vez a face seis em quatro lançamentos de um dado. Em cada linha estão indicados, pela ordem, o número de apostas, o número de vezes em que Chevalier é vencedor e a porcentagem de vitórias.
FIGURA
I Para ilustrar o que ocorre com a primeira aposta de Chevalier, fizemos 10 000 experiências numéricas e guardamos o número de vezes em que a face seis foi obtida, pelo menos uma vez, em quatro lançamentos de um dado. Na figura está representada a razão (P) entre o número de sucessos e o número total de tentativas, medida de forma cumulativa a cada 200 apostas. Observe como a razão oscila em torno do valor teórico 0,518 (indicado pela linha contínua horizontal) e fica cada vez mais próxima desse valor quando N (o número de experiências) cresce. (Para obter resultados por simulação basta pedir ao computador que gere números aleatórios (a função "rnd" na linguagem Basic, por exemplo, fornece números entre 0 e 1). Para que esses números sejam "bons", eles devem preencher o intervalo [0,1) de maneira uniforme, isto é, não deve haver preferência por nenhuma região. Sendo assim, basta multiplicar todos os números da seqüência por seis, somar um (para transformar o 0 em 1) e tomar o maior inteiro contido no resultado. Esse é o número que estaria na face do seu "dado eletrônico".) Os alunos ficarão espantados ao ver que Chevalier vence por uma margem tão estreita. O resultado experimental não confirma, de maneira nenhuma, aquele cálculo simples, que prevê, em média, duas vitórias a cada três apostas. A única expectativa que se confirma é a da vitória (em média). O profissional apostava daquela forma porque sabia que depois de uma grande série de jogos sairia ganhando. A nossa experiência mostra isso e a da sua classe também (a menos que a classe tenha executado um número pequeno de lançamentos). A margem, porém, é muito apertada e isso exige uma explicação. Mas, como não queremos perder o raciocínio, vamos deixar a solução para mais tarde. No momento, é mais importante mostrar que a linearização equivocada pode não só distorcer quantitativamente a resposta como também torná-la qualitativamente incorreta. Acompanhe o próximo problema.
O apostador já não encontrava mais ninguém disposto a desafiá-lo na tarefa de obter um seis jogando o dado quatro vezes. Resolveu então usar o seu raciocínio "esperto" para inventar um outro jogo. Propunha-se a lançar dois dados, simultaneamente, e obter um "duplo seis". Para continuar ganhando, calculou ele, precisaria agora de vinte e quatro oportunidades [1]. O seu raciocínio simplista foi que, se o conjunto de resultados possíveis era seis vezes maior que o anterior, ele deveria multiplicar por seis o número de lançamentos. Depois das preliminares, passou à experiência. Curiosamente, a clientela para essa aposta aumentou de forma brusca e já começava a prejudicar insuportavelmente o profissional quando o abençoado Pascal apareceu. O que será que estava acontecendo? "A Matemática está furada", argumentava Chevalier [2] ao seu novo amigo. E Pascal não só resolveu o problema como também iniciou uma extensa e proveitosa correspondência com Fermat [3] sobre o tema. Antes de passar à explicação, vamos, outra vez, fazer a experiência. A nossa está resumida na Tabela II e na Figura II. TABELA II
Estimativa da probabilidade de obter pelo menos um duplo seis em vinte e quatro lançamentos de dois dados. O conteúdo das linhas é semelhante ao da tabela anterior.
FIGURA II
No caso da
segunda aposta de Chevalier, fizemos 20 000 experiências numéricas e
guardamos o número de vezes em que o duplo seis foi obtido, pelo menos uma
vez, em
vinte e quatro lançamentos. Nessa figura está representada a razão (P)
entre o número de sucessos
e o número total de tentativas, medida de forma cumulativa a cada 200 apostas. Observe como a razão oscila en torno do valor teórico
0,491 (indicado pela linha contínua horizontal) e fica cada vez mais
próxima desse valor quando N
(o número de experiências) cresce.
Veja que, de fato, dessa vez não acertamos nem o lado que sairia
vencedor. O procedimento ingênuo da seção anterior (a regra de três) dirá
novamente que o profissional será o vitorioso em 66% das ocasiões.
Mas isso definitivamente não é verdade. Chevalier tinha que se cuidar,
caso contrário ele perderia até sua própria reputação.
E você, o que pensa sobre esses resultados tão estranhos?
Ao contrário do que a intuição indica, a chance de obter pelo menos uma
vez a face seis, em quatro lançamentos de um dado, não é quatro vezes
maior do que a chance de obtê-lo em apenas uma jogada. Essa é a falha do
argumento que sustenta o cálculo simplista da seção 2 e ilude tanta gente.
Para tornar essa falha mais visível, vamos examinar o caso mais simples de
dois lançamentos (lembrando que os resultados também são válidos para o
lançamento simultâneo de dois dados). É simples exibir todas as 36 saídas
possíveis (6
x
6) e marcar quais delas são aceitáveis para quem esteja querendo obter
"pelo menos" um seis em dois lançamentos.
TABELA
III
(1,1)
(1,2)
(1,3)
(1,4)
(1.5)
(1,6)
(2,1)
(2,2)
(2,3)
(2,4)
(2,5)
(2,6)
(3,1)
(3,2)
(3,3)
(3,4)
(3,5)
(3,6)
(4,1)
(4,2)
(4,3)
(4,4)
(4,5)
(4,6)
(5,1)
(5,2)
(5,3)
(5,4)
(5,5)
(5,6)
(6,1)
(6,2)
(6,3)
(6,4)
(6,5)
(6,6)
Dessa tabela
é possível concluir que a probabilidade de obter um duplo seis é 1/36,
enquanto a probabilidade de não obter nenhuma face seis é 25/36. A
chance de obter pelo menos uma face seis é dada por 11/36, enquanto a probabilidade de tirar "apenas uma" vez a face seis é
igual a 10/36.
A Tabela
III
mostra que, das 36 saídas possíveis, 25 não contêm o 6 (elas são formadas por dois números diferentes, cada um deles podendo
variar entre 1 e 5, resultando em 5
x
5 = 25 pares possíveis). As outras 11 saídas contêm
necessariamente o número 6 (pelo menos uma vez). Há portanto uma chance de 11/36 de conseguir pelo menos
um seis em dois lançamentos de um dado e 25/36 de não obter nenhum seis. E qual seria o resultado da
"regra de três"? Bem, se em um
lançamento tenho uma chance em seis de acertar, em dois
lançamentos
terei o dobro de chance (2/6 = 1/3). Perceba como o procedimento equivocado conduz, mesmo
nesse caso simples, a um
resultado incorreto (1/3 é igual a 12/36
11/36).
Nós poderíamos continuar esse trabalho e construir uma grande tabela para
o caso dos quatro lançamentos. É alguma coisa que pode ser classificada
de chata mas ainda está dentro daquilo que um curioso
faz, até com um certo prazer, quando quer entender direitinho o assunto. Mas desenvolver esse
trabalho para os vinte e quatro
lançamentos de dois dados está definitivamente fora do que se possa classificar de razoável. Por isso mesmo vamos ter que construir uma forma mais amena para examinar
essas situações. Que tal então
começar pelo caso dos dois lançamentos?
As duas regras básicas para se resolver esse tipo de problema são
as seguintes:
1) Quando
temos dois ou mais eventos mutuamente exclusivos
(isto
é, eventos que não podem ocorrer simultaneamente), a probabilidade de
que pelo menos um deles ocorra é igual à soma das probabilidades dos eventos considerados. Exemplo: a probabilidade de
sair a face 1 é 1/6, a de sair 3 também,
o mesmo ocorrendo com a
probabilidade de sair o 5. Para obter a probabilidade de obter um
número ímpar no
lançamento de um dado, basta somar as três probabilidades individuais, uma vez que qualquer um dos três números (1
ou 3 ou 5) satisfaz o nosso interesse
e esses eventos são mutuamente
exclusivos. Portanto,
É possível confirmar a veracidade desse resultado, lembrando-se que o dado só tem seis
faces e qualquer uma das três ímpares (portanto, metade delas) nos serve.
2) Considere uma seqüência
de repetições independentes de um mesmo experimento (o que se deve entender por independentes, intuitivamente, é que o resultado de um deles não tem nenhuma influência
sobre os resultados dos outros).Para obter a probabilidade de que um
dado evento ocorra várias vezes nessa seqüência, multiplicamos as
probabilidades de que ele ocorra em cada uma das realizações desseexperimento. Exemplo: a
probabilidade de obter um seis em um lançamento
é 1/6. A probabilidade de obter duas vezes seguidas a
face seis ao lançar um dado duas vezes é o produto das probabilidades
individuais:
Confirme esse resultado usando a Tabela
III.
Há 36 saídas possíveis
e apenas uma delas nos interessa, (6,6), logo a probabilidade
é 1/36.
De posse desses resultados, vamos ao que interessa. Primeiro,
nós podemos utilizar a primeira regra para descobrir a probabilidade
de obter, no lançamento de um dado, qualquer número que não seja
0 6. Como vimos, é
preciso somar as probabilidades individuais
OK, está tudo certo, mas existe um jeito ainda mais fácil de obter
esse número. É sim, basta lembrar que a soma das probabilidades deve ser igual a
1
e dividir o espaço amostral
em duas partes: o seis e o resto. Isso basta para exaurir o
espaço amostral
Como a chance de obter
o seis é 1/6, a chance de obter qualquer outro número é
1 1/6 = 5/6. Gostaram? Então
passemos à segunda etapa do
raciocínio
de Pascal.
A chance de não tirar seis, em dois lançamentos seguidos, é o produto de 5/6 por
5/6 (lembre-se que para isso é preciso não tirar 6 no primeiro lançamento e não tirar 6
também no segundo). Temos,
então,
Agora ficou fácil! Se 25/36 é a chance de jogar o dado duas
vezes e não tirar nenhum seis, a chance de aparecer algum seis é o
complemento: 1
25/36 = 11/36. Essa foi a resposta que obtivemos
ao fazer os cálculos com a Tabela
III,
só que desta vez chegamos a ela de uma forma mais elegante e fácil de
generalizar.
Vamos então aplicar a técnica ao caso dos quatro lançamentos. Comece
perguntando: qual é a probabilidade de lançar o dado quatro
vezes seguidas e não tirar o seis sequer uma vez? Fácil: pelo raciocínio
anterior é só multiplicar a probabilidade de não tirar o seis quatro
vezes:
Logo, a probabilidade de obter pelo menos um seis é o complementar
disso:
Chevalier ganhava porque a sua aposta tinha mais de 50% de chance (na verdade
51,77%) de ser a vencedora. Compare com a Tabela
I
e experimente o prazer que levou Pascal a abandonar a
noite parisiense e voltar para a Matemática.
Resta ainda
responder à outra pergunta: porque Chevalier passou
a perder quando mudou o jogo? Bem, aqui a generalização exige um pouco mais de cuidado. Na segunda
aposta, Chevalier lançava dois dados de cada vez. A discussão era em torno de sair ou não um "duplo seis" em lançamentos
sucessivos de dois dados. Como vimos a probabilidade de obtê-lo (o duplo
seis) em um lançamento de dois
dados é igual a 1/36. O complemento, 1
1/36 = 35/36, é a chance de encontrar qualquer outra saída que não seja o duplo seis. Se Chevalier pudesse jogar
apenas quatro vezes, como antes, ele estaria perdido. Mas lembre-se que ele
agora dispunha de 24 oportunidades
e a probabilidade de não sair o duplo seis, 24 vezes seguidas, é dada pelo produto:
Como o número que está sendo multiplicado por ele mesmo, (35/36),
é menor do que um, o resultado das multiplicações vai diminuindo, diminuindo ..., ao
mesmo tempo em que cresce a possibilidade de vitória de Chevalier, medida
pelo complementar disso. Logo,
(Veja
na RPM 26, p. 18, como calcular (35/36) usando uma "calculadora de
feirante".)
Peça aos seus alunos para pensarem em um jeito de tornar Chevalier
vitorioso (será que vinte e cinco oportunidades seriam suficientes?).
Como vocês puderam observar ao longo deste artigo, Pascal tinha
grande atração pelos números (quem não conhece o triângulo de Pascal?) e
não sentia vergonha de fazer essas continhas. Os métodos que
ele empregava nem sempre eram os mais formais e, por isso mesmo,
inspiraram certa revolta em Descartes. Seus trabalhos, no entanto,
tiveram grande influência sobre Leibniz, um dos pais do Cálculo Diferencial
e Integral.
Referências
Bibliográficas
[1] FELER, W.
An introduction to probability theory and its applícations.
J. Wiley & Sons,
1968. O autor propõe a questão na página 56 e comenta a existência de uma
controvérsia sobre a verdadeira origem da polêmica.
Veja também ORE,
O., Amer. Math. Monthly, Vol. 67, 409 (1960).
[2] VILLARS,
F., BENEDEK, G. Sutistical Physics with examples
from
medicine
and biology. Addison-Wesley, 1977.
[3] DAVID, N. F. Games, gods and gambling. London, Grimn, 1962.
Este livro
contém a correspondência entre Pascal e Fermat, menos a primeira carta.
Antônio Carlos da Silva Filho,
doutor em Física pelo
IFUSP-São Paulo, com pós-doutoramento no Imperial College of Science,
Technology and Medicine, Londres,
é professor da Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras da USP em Ribeirão Preto.
José Roberto
Drugowich de Felício
é professor associado da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de
Ribeirão Preto e do Instituto de Física da USP em
São Carlos. |