Elon Lages Lima IMPA,
Rio de Janeiro, RJ

Os jornais publicaram recentemente notícias de um estudo feito pelo MEC, segundo o qual o ensino de Matemática nas escolas brasileiras foi o que pior desempenho teve entre todas as matérias do currículo normal nos últimos anos.

Por conta disso, fui entrevistado pelo Jornal do Brasil (duas vezes) e pela TV Educativa do Rio de Janeiro. No que segue, tentarei resumir algumas coisas que disse naquelas ocasiões, ou penso que disse, ou que deveria ter dito. Pouco importa se o registro não é exato. Estas são minhas opiniões, hoje como ontem.

P. são as perguntas que me fizeram e R. são minhas respostas.

P. Por que o ensino da Matemática vai tão mal?

R. Todo o ensino vai mal.

P. Mas o da Matemática vai pior.

R. Entre muitas coisas más, uma delas é sempre pior do que as outras.

P. Há algum motivo para a Matemática ir pior?

R. Há vários.

P. Um dos motivos seria o fato de a Matemática ser mais difícil?

R. Não. Qualquer criança cuja capacidade mental lhe permita aprender a ler e escrever é também capaz de aprender a Matemática que se ensina no primário (1 à 4 série). Mais geralmente, todas as matérias que se ensinam no primeiro grau (até a 8ª série) apresentam essencialmente o mesmo grau de dificuldade e nenhuma delas exige pendores, habilidades ou talentos especiais para aprendê-la.

P. Então todo jovem normal é, em princípio, capaz de aprender toda a Matemática que deve ser ensinada até a 8 série?

R. Absolutamente, sim. Sem dúvida.

P. E isso, de fato, acontece?

R. No Brasil, não. Noutros países (como, por exemplo, o Japão), sim.

P. Isso quer dizer que os jovens desses países são mais inteligentes do que os nossos?

R. De maneira nenhuma. Nem mais nem menos. Há, por exemplo, brasileiros de descendência japonesa em número suficiente para vermos que não é assim.

P. Você disse que são vários os motivos para o baixo rendimento no ensino da Matemática. Quais são eles?

R. Antes disso, eu havia dito que todo o ensino vai mal. Por isso acho melhor começar por aí. Os países ricos, aqueles onde o povo tem uma vida mais confortável, são precisamente aqueles em que as pessoas têm acesso a uma educação de melhor qualidade. Isso significa escolas bem-equipadas e professores competentes. Esse quadro resulta da conscientização, arraigada na cultura nacional, de que a educação, além de ser a única porta para o bem-estar, é um direito do cidadão e um dever do Estado.

P. Como poderíamos esperar professores competentes no Brasil, com salários tão baixos?

R. Os salários dos professores brasileiros que atuam no primeiro e segundo graus são simplesmente vergonhosos. Humilhantes. Por isso as escolas têm tanta dificuldade para recrutar professores capazes e os cursos de licenciatura estão vazios. Entretanto, os baixos salários não são, em si, a causa primordial do problema. São antes uma consequência de não ter o nosso povo a noção exata do valor da educação e daí seus representantes eleitos padecerem do mesmo mal. Se houvesse entre nós a conscientização a que me referi acima, haveria o reconhecimento da importância dos professores e isso se refletiria nos seus salários, como ocorre nos países civilizados.

P. Podemos agora focalizar a Matemática?

R. Sim. Ao contrário das demais matérias que se estudam na escola, que se referem a objetos e situações concretas, a Matemática trata de noções e verdades de natureza abstrata. Aliás, essa é uma das razões da sua força e sua importância. A afirmação 2 x 5 = 10 tanto se aplica aos dedos de duas mãos quanto aos jogadores que disputam um jogo de basquete. A generalidade com que valem as proposições matemáticas exige precisão, proíbe ambiguidades e por isso requer mais concentração e cuidado por parte do estudante. Por outro lado, o exercício dessas virtudes durante os anos de escola ajuda a formar hábitos que serão úteis no futuro. A perseverança, a dedicação e a ordem no trabalho são qualidades indispensáveis para o estudo da Matemática. Note-se que não se trata de talentos e que não se nasce dotado delas.

P. Então, afinal de contas, a Matemática é mais difícil.

R. Se o fato de exigir empenho, atenção e ordem significasse ser mais difícil, a resposta (relutante) seria sim. As ideias e regras matemáticas no nível que estamos considerando são, porém, todas extremamente simples e claras, bem mais simples e claras, por exemplo, do que as regras da crase (ou mesmo do que a lei do impedimento no futebol). Por isso, continuo afirmando que toda pessoa de inteligência média, sem talentos ou pendores especiais, pode aprender toda a Matemática do ginásio, desde que esteja disposta a trabalhar e tenha uma orientação adequada. Aqui já vão dois dos motivos que você me pediu para o mau resultado no ensino da Matemática: pouca dedicação aos estudos por parte dos alunos (e da sociedade que os cerca, a começar pela própria família) e despreparo dos seus professores nas escolas que frequenta.

P. Ainda há outros?

R. Não se esqueça do motivo primordial, a que aludi acima: a falta de um reconhecimento nacional de que sem educação não há progresso e o consequente descaso oficial pelo sistema escolar. Mas há outros, sim. O conhecimento matemático é, por natureza, encadeado e cumulativo. Um aluno pode, por exemplo, saber praticamente tudo sobre a proclamação da república brasileira e ignorar completamente as capitanias hereditárias. Mas não será capaz de estudar Trigonometria se não conhecer os fundamentos da Álgebra, nem entenderá essa última se não souber as operações aritméticas, etc. Esse aspecto de dependência acumulada dos assuntos matemáticos leva a uma sequência necessária, que torna difícil pegar o bonde andando e muitas vezes provoca uma síndrome conhecida como "ansiedade matemática".

P. Que é isso?

R. É o medo que algumas pessoas têm da Matemática. No passado, ele era repartido com o medo do Latim, mas este foi abolido, juntamente com quase tudo que requeria trabalho no currículo escolar. Restou a Matemática, mas as pessoas costumam disfarçar sua ansiedade matemática com um aparente (e curioso) orgulho que as leva a vangloriarem-se de que são péssimas nessa matéria, que sempre a detestaram, etc. É engraçado que muitas dessas pessoas escrevem mal mas não admitem isso. Ninguém se orgulha de dizer que escreve chuva com "x", que não emprega corretamente a crase ou que diz "aluga-se bicicletas".

P. Qual é a origem da ansiedade matemática?

R. São várias. Uma das mais freqüentes é a tentativa de aprender um assunto sem estar preparado para ele. Outra é passar os anos escolares nas mãos de professores incapazes, que muitas vezes usam a arrogância, a ironia e a humilhação como disfarces para sua ignorância e com isso provocam aversão à matéria que deviam ensinar. Há também a mera preguiça de pensar.

P. Aos poucos você vai revelando os motivos para o pouco êxito no ensino da Matemática: Em primeiro lugar, o sentimento de que a educação é o caminho para o bem-estar não é suficientemente forte no espírito do nosso povo. Esse é o motivo fundamental, no seu entendimento. Os demais são: 1°) A Matemática, por ser exata, requer atenção, cuidado e ordem. 2) O conhecimento matemático é cumulativo; cada passo precisa dos anteriores. 3) Raramente a Matemática é bem ensinada. Você tem alguma proposta para melhorar esse estado de coisas?

R. Quanto ao motivo primordial, ele tem muito a ver com o amor-próprio nacional. Em 1806, depois da batalha de Jena, onde o exército prussiano teve seu orgulho esmagado por Napoleão, os alemães concluíram que desenvolvimento (e, em última análise, força) depende substancialmente de educação. E processaram uma reforma radical. O sistema educacional tornou-se central na sociedade. As universidades foram modificadas e os professores secundários ganha­ram alto prestígio social. O progresso do país, a partir daí, foi notável. Exemplos mais recentes de ressurgimento das cinzas com base na educação podem ser vistos no Japão e na Coreia. No nosso caso, que se pode fazer? Talvez gritarmos bem alto: "Brasileiros, criem vergonha na cara!".

Quanto as peculiaridades da Matemática, ela é importante por­que é exata, geral e se ocupa das noções mais básicas da vida humana: número e espaço. Deixemo-la assim e amemo-la por isso.

Finalmente, quanto ao ensino, não há mistério nem milagre. 0 bom professor é aquele que vibra com a matéria que ensina, conhece muito bem o assunto e tem um desejo autêntico de transmitir esse conhecimento, portanto se interessa pelas dificuldades de seus alunos e procura se colocar no lugar deles, entender seus problemas e ajudar a resolvê-los. Não há fórmulas mágicas para ensinar Matemática. Não há caminhos reais, como Euclides já dizia a Ptolomeu. A única saída é o esforço honesto e o trabalho persistente. Não só para aprender Matemática, mas para tudo na vida.

P. Devo entender que você não tem proposta a fazer?

R. Pelo contrário, tenho algumas.

Diante do exposto, a única ação viável deve ser dirigida ao professor, visando melhorar a qualidade do seu trabalho. O problema é bem menor nas escolas particulares, onde é possível manter os bons professores melhorando seus salários e se livrar dos piores demitindo-os. (É possível, mas nem sempre isso é feito.) Na escola pública, que abriga a vasta maioria dos alunos (e que deveria abrigar todos), a situação é mais complicada. Aumentar simplesmente os salários não resolve nada porque a qualidade dos professores que nela trabalham não vai melhorar por isso. Se o problema do professorado consiste em mau preparo e baixos salários, as duas coisas devem ser atacadas simultaneamente.

Acho que deveria haver todo ano um exame nacional para habilitação de professores, feito em três níveis: 1 a 4 séries, 5 a 8 e segundo grau.

Acho que deveria haver uma tabela salarial especial para professores aprovados nesse exame.

Acho que o ensino até a 8 série deveria ser obrigatório, com o mesmo currículo para todos os estados do país.

Acho que o poder público deveria instituir programas de reciclagem para preparar os professores para os exames de habilitação.

Acho que o ensino do segundo grau deve continuar sendo bifurcado, não em clássico e científico, como era antigamente, mas em acadêmico e profissional, devendo este último preparar diretarnente o jovem para o mercado de trabalho.

Estas são, em resumo, minhas propostas.