Geraldo Ávila,
Instituto de Matemática e Física, UFG
74001-970 Goiânia, GO

         Introdução

Acho que quase todo professor de Matemática já teve a experiência de ser questionado por seus alunos sobre a importância da Matemática e sua utilidade. Eles costumam fazer perguntas deste tipo:

  Professor, para que serve toda essa Matemática que estamos estudando?

  Por que a gente tem de estudar todas essas coisas sobre triângulos, polinômios, equações, trigonometria?   Afinal, de que vai me adiantar tudo isso na vida?

E o professor frequentemente se vê em dificuldades para dar respostas satisfatórias. Na verdade, essas perguntas não têm mesmo respostas fáceis nem breves. Então, como responder a elas?

Nosso objetivo, neste artigo, é o de abordar esse tema, procurando ajudar o professor, primeiro, a bem entender toda a riqueza da Matemática e seu verdadeiro papel na formação do aluno; e, depois, como lidar com essas perguntas sobre o porquê da Matemática.

 

     Justificativas Parciais

As razões mais frequentemente mencionadas para justificar o ensino da Matemática são as seguintes:

1) A Matemática é necessária em atividades práticas que envolvem aspectos quantitativos da realidade.

2) A Matemática é importante  porque desenvolve o raciocínio lógico.

Essas razões, embora legítimas, não são a justificativa mais importante para o ensino da Matemática. A primeira delas, por exemplo, é praticamente irrelevante para uma pessoa interessada em estudos na área de humanidades. De fato, basta um conhecimento elementar de operações com números para atender razoavelmente bem às diversas necessidades do dia-a-dia. Aliás, ironicamente até, o avanço tecnológico criou uma situação curiosa: hoje em dia o cidadão comum necessita de menos Matemática — pelo menos no que diz respeito a "cálculos com números" — do que décadas atrás, quando não dispúnhamos, como hoje, desses instrumentos tão eficazes, que são as calculadoras de bolso.

Como se vê, as técnicas matemáticas de que necessitamos em nosso dia-a-dia são tão modestas que podem ser plenamente atendidas no ensino das primeiras 5 ou 6 séries do 1 grau. Por que, então, ensinar Matemática até a última série do 2 grau? Será que a segunda das razões acima citada justifica esse ensino? A nosso ver, ela também é insuficiente, e vamos explicar por quê.

 

     As Várias Faces do Pensamento Matemático

A idéia de que o pensamento matemático se reduz a seus aspectos lógico-dedutivos — uma idéia muito difundida, mesmo entre professores de Matemática — é incompleta e exclui o que há de mais rico nos processos de invenção e descoberta nesse domínio do conhecimento. A verdade é que o pensamento matemático vai muito além do raciocínio lógico.

Em seus aspectos mais criativos, a Matemática está ligada muito mais à intuição e à imaginação do que ao raciocínio lógico-dedutivo, como procuramos explicar a seguir.

A intuição é a faculdade mental que nos permite obter o conhecimento de maneira direta, sem a interveniência do raciocínio. Os matemáticos frequentemente referem-se a algum fato como "intuitivo", querendo com isso dizer que se trata de algo cuja veracidade é facimente reconhecível. Mas é bom lembrar que "intuitivo" não é sinônimo de "fácil". Há muitas verdades profundas e difíceis que são apreendidas pela intuição.

A intuição é, na verdade, uma faculdade mental mais poderosa que o próprio raciocínio. É através dela que ocorrem as grandes criações do homem, nas artes, na filosofia e nas ciências. HENRI POINCARÉ (1854-1912), um dos mais eminentes matemáticos dos últimos 150 anos, testemunhou bem isso, num artigo que escreveu sobre Criação Matemática, onde ele conta várias de suas experiências como pesquisador. Uma dessas experiências ocorreu em suas tentativas de demonstrar um certo teorema. Depois de vários dias de trabalho sem sucesso, interrompeu suas pesquisas para fazer uma excursão geológica com várias outras pessoas. Foi como se estivesse tirando umas férias da Matemática, passando dias distraído com outras coisas. Num dos momentos da viagem, segundo ele conta, veio-lhe à mente, assim de súbito, a idéia de utilizar, na demonstração de seu teorema, certos recursos matemáticos que ele já havia empregado tempos antes numa outra situação. E ao voltar para casa, examinando detidamente essa idéia, pôde verificar que ela era realmente a chave da solução que procurava. A "idéia", de fato, tinha seu "mérito".

Idéias são coisas que nos vêm por intuição. Uma idéia não se deduz, "se intui". ALBERT EINSTEIN (1879-1955) concebeu sua Teoria da Relatividade com base na idéia da relatividade do espaço e do tempo, idéia essa que lhe veio por intuição, não por dedução. Exemplos como esse e o de Poincaré existem em abundância na História da Ciência, não apenas em Matemática ou em ciências exatas.

Em Matemática, particularmente, é muito comum um pesquisador, em conversa com colegas, tecer comentários sobre algum resultado novo que ele acredita ser verdadeiro, embora não disponha ainda de uma demonstração. O pesquisador, com sua experiência e familiaridade em determinada área de investigação, valendo-se das várias modalidades do raciocínio (indução, analogia de uma situação com outra, argumentos de plausibilidade) e da intuição, é levado a suspeitar da validade de um novo resultado ou teorema. A demonstração, em geral, é a etapa final, que completa o trabalho de investigação. E muitas vezes, por não conseguir encontrar uma demonstração, o teorema, tendo já adquirido credibilidade na comunidade matemática, impõe-se com o nome de "conjectura", "hipótese" ou mesmo "teorema". Há assim várias conjecturas na literatura matemática, ou seja, resultados ainda não demonstrados, mas que os matemáticos acreditam serem verdadeiros. De vez em quando uma dessas conjecturas é demonstrada, geralmente por algum matemático jovem, que se torna, então, bastante conhecido entre seus pares. Uma das mais famosas conjecturas pendentes é a chamada "Hipótese de Riemann" formulada pelo matemático alemão BERNARD RIEMANN (1826-1856) em meados do século passado; outra é o chamado último teorema de Fermat (veja RPM 15, p. 14), de formulação muito simples, mas que vem desafiando os matemáticos por mais de três séculos, e que, nos últimos anos, vem sendo resolvida no contexto de uma ampla teoria pertencente a duas importantes e difíceis disciplinas matemáticas, a Teoria dos Números e a Geometria Algébrica. Dizemos "vem sendo resolvida" porque, de fato, várias vezes a solução foi anunciada para, logo em seguida, revelar falhas. O "teorema" parece finalmente demonstrado, mas, no momento em que escrevemos, está ainda sob verificação dos especialistas.

Essas considerações mostram o quanto de riqueza existe no pensamento matemático para além de seus aspectos lógico-dedutivos. Imaginação e intuição são instrumentos tão importantes na invenção matemática como o são para o pintor que concebe um quadro, para o escritor que planeja uma obra literária ou para o músico em suas criações artísticas.

 

     O Principal Motivo para o Ensino da  Matemática

Certamente que o ensino da Matemática é justificado, em larga medida, pela riqueza dos diferentes processos de criatividade que ele exibe, proporcionando ao educando excelentes oportunidades de exercitar e desenvolver suas faculdades intelectuais. Mas

a razão mais importante para justificar o ensino da Matemática é o relevante papel que essa disciplina desempenha na construção de todo o edifício do conhecimento humano.

Desde os primórdios da civilização, o homem, como "ser pensante" , sempre quis entender o mundo em que vive. Será que a Terra é plana?    Como se suporta?    Como são seus limites últimos?  A abóbada celeste é uma fronteira última, com as estrelas nela incrustadas? Por que e como alguns corpos celestes — os planetas — se deslocam erraticamente? O que existe para além dessa abóbada? Como explicar os movimentos do Sol e da Lua?

Perguntas como essas certamente atormentaram o espírito humano por muitos milênios, até que, a partir do século VI a.C, começaram a ser respondidas, e com muito sucesso. Foram idéias matemáticas simples de semelhança de figuras geométricas e proporcionalidade que permitiram aos astrónomos, já no século III a.C, calcular o tamanho da Terra (veja nosso artigo na RPM l), do Sol e da Lua e as distâncias a que se encontram esses astros da Terra. E a solução desses problemas mudou radicalmente a ideia do homem a respeito do mundo em que vivia.

As idéias de COPÉRNICO, GALILEU e KEPLER sobre o sistema solar, bem como os dados de observação de TYCHO BRAHE, culminaram, no século XVII, com a teoria da gravitação de Newton, que dava ao homem um novo e poderoso instrumento de interpretação do universo. Os desenvolvimentos que se seguiram, sobretudo com os trabalhos de LAPLACE (1749-1827), iriam resgatar a antiga idéia de PITÁGORAS de que "o número é a chave para a compreensão dos fenômenos", pois ficava agora evidente que os movimentos dos planetas obedeciam a leis matemáticas precisas. Isso teve influência decisiva no pensamento racionalista do século XVIII, portanto, nas próprias concepções filosóficas dessa época.

Idéias sobre a constituição da matéria ocorreram na antiguidade, sendo bem conhecidas as de LEUCIPO e DEMÓCRITO, cuja eficácia só pode ser comprovada com o desenvolvimento da Química no século XIX. E novamente aqui o instrumental matemático está na base da solução dos problemas.

Já no século XX, e graças a eficazes idéias matemáticas, novamente o homem alargou as fronteiras do mundo em que vive, calculando distâncias astronômicas fantásticas e formulando teorias cosmológicas que indicam que o universo em que vivemos teve origem há uns 15 ou 20 bilhões de anos.

Mais recentemente, os avanços da Biologia Molecular, alicerçados em idéias matemáticas, abrem perspectivas de progressos até há algumas décadas nem sequer sonhados sobre os mistérios da vida, a diversidade das espécies e a engenharia genética.

Até mesmo em vários domínios da Arte, a Matemática tem tido uma influência substancial e direta, como na Arquitetura, na Escultura, na Pintura e na Música.

Na Pintura, particularmente, foi graças a idéias matemáticas de paralelismo e projeção que os pintores da Renascença criaram a ciência da Perspectiva, que lhes tornou possível retratar em suas telas uma realidade marcada por intenso humanismo.

A descoberta de que Matemática e Música estão intimamente relacionadas remonta a Pitágoras. Mas foi só no século XVIII que a teoria musical encontrou bases seguras para se estruturar cientificamente; e aqui, novamente, foram ideias matemáticas que permitiram uma interpretação científica dos fenómenos sonoros.

Há um importante campo de estudos, que é domínio próprio da Matemática, conhecido como Lógica e Fundamentos, onde foram realizadas, há pouco mais de seis décadas, notáveis descobertas, que estabelecem ser inalcançável o objetivo de organizar logicamente a Matemática de forma a garantir que todas as suas proposições possam ser testadas como verdadeiras ou falsas. Em outras palavras, o edifício matemático, como resultado do trabalho humano, não tem, nem pode ter, garantida sua consistência. Isso se reflete em todo o conhecimento humano, já que a Matemática é, direta ou indiretamente, instrumento do qual dependem, para sua organização, as demais ciências, como a Física, a Química, a Biologia, a Cosmologia, etc. Em consequência, todo o conhecimento construído pelo homem está necessariamente marcado pelas limitações da própria intelectualidade. E é o próprio conhecimento humano que revela essas limitações. Em outras palavras, o homem descobre as limitações de seu intelecto, através do exercício desse mesmo intelecto!

Esse rápido apanhado de vários exemplos serve para mostrar o quanto as "idéias matemáticas" têm estado presentes na construção de todo o edifício do conhecimento, influindo também, de maneira profunda e marcante, nas próprias concepções filosóficas do homem diante de sua existência e do mundo em que vive.

 

     Justificativas e Objetivos do  Ensino da Matemática

Tendo em conta essas várias considerações, vemos que o ensino da. Matemática tem justificativas mais amplas e abrangentes que apenas aquelas duas citadas no início deste artigo. Cremos poder assim sintetizar essas justificativas e objetivos que o ensino deve atingir:

A Matemática deve ser ensinada nas escolas porque é parte substancial de todo o património cognitivo da Humanidade. Se o currículo escolar deve levar a uma boa formação humanística, então o ensino da Matemática é indispensável para que essa formação seja completa.

O ensino da Matemática se justifica ainda pelos elementos enriquecedores do pensamento matemático na formação intelectual do aluno, seja pela exatidão do pensamento lógico-demonstrativo que ela exibe, seja pelo exercício criativo da intuição, da imaginação e dos raciocínios por indução e analogia.

O ensino da Matemática é também importante para dotar o aluno do instrumental necessário no estudo das outras ciências e capacitá-lo no trato das atividades práticas que envolvem aspectos quantitativos da realidade.

E claro que uma pessoa pode prescindir de conhecimento matemático e mesmo assim ser um grande ator, escritor, estadista, enfim, um profissional realizado em muitos domínios do conhecimento. Mas certamente seus horizontes culturais serão mais restritos. A situação é análoga à de uma pessoa que, mesmo possuindo competência matemática, tenha poucos conhecimentos humanísticos; seus horizontes culturais também serão mais limitados.

 

     Ensino Orgânico e Integrado

Para atingir plenamente seus objetivos, o ensino da Matemática deve ser feito de maneira a atender a certos requisitos básicos, que enumeramos a seguir:

1)     O ensino deve sempre enfatizar as ideias da Matemática e seu papel no desenvolvimento da disciplina.

2)  Os diferentes tópicos da Matemática devem ser tratados de maneira a exibir sua interdependência e organicidade.

3)     O ensino da Matemática deve ser feito de maneira bem articulada com o ensino de outras ciências, sobretudo a Física.

 

     Em Classe

Neste ponto voltamos à questão inicial, que motivou todo este artigo: como deve o professor lidar com as perguntas dos alunos sobre a relevância da Matemática?

Dissemos, no início, que essas perguntas não têm respostas fáceis nem breves. O ideal é que o ensino proceda de maneira a justificar, a cada passo, a relevância daquilo que se ensina. Cada novo tópico a ser tratado deve ser devidamente motivado, o que pode ser feito com a formulação de problemas práticos interessantes; ou pequenas histórias que ajudem a despertar a curiosidade dos alunos (veja, por exemplo, RPM 25, pp. 10 a 14); ou, ainda, estimulando a participação ativa dos alunos (veja, por exemplo, a RPM 26, pp. 8 a 11). Mas isso nem sempre é possível, pois há questões puramente teóricas, que exibem belas idéias, como aquela de provar que existem infinitos números primos (RPM 19, pp. 26 a 28); então é preciso ter o cuidado de fazer uma boa exposição, de preferência que não dure muito tempo, para cativar e manter os alunos atentos. Nos casos que envolvem demonstrações, é de suma importância ressaltar as idéias envolvidas, pois são elas que despertarão o interesse do aluno. E esse último exemplo que citamos, da RPM 19, ilustra muito bem esse ponto.

Trazendo freqüentemente a suas aulas histórias, problemas e questões interessantes, o professor desperta no aluno uma crescente admiração pelo largo alcance da Matemática, estimulando seu interesse pela disciplina.

Assim procedendo, o professor se antecipa às perguntas do aluno sobre a relevância da Matemática; o aluno nem terá necessidade de fazê-las. Aliás, se faz tais perguntas com certa freqüência, isso já é, em si, um sintoma de que algo deve ser feito para motivar o aluno. Talvez o ensino esteja se desenvolvendo muito abstratamente, sem exibir a relevância dos conceitos introduzidos. É o que pode acontecer, por exemplo, com o ensino de funções a partir do produto cartesiano de conjuntos, seguido de relações, a função sendo definida como um tipo particular de relação; depois funções injetoras, sobrejetoras, bijetoras, etc. É natural que o aluno pergunte: — Mas para que tudo isso? E ele tem razão. Aqui o professor deve questionar o seu próprio ensino, procurando ver o que está deficiente e pode ser melhorado. Mas nunca deve deixar essas perguntas sem respostas ou descartá-las como impertinentes ou extemporâneas.

E, se não estiver preparado para uma resposta satisfatória — o que acontece até mesmo com as pessoas mais experientes —, o certo é dar alguma resposta parcial ou provisória, sem rodeios ou evasivas, por exemplo, dizendo ao aluno: "vou pensar mais nesse assunto" ou "vou procurar mais elementos para melhor esclarecer sua curiosidade".

Não queira também o professor apresentar todas as justificativas e motivações do ensino da Matemática de uma só vez, nem despejar sobre os alunos todas as histórias sobre a relação da Matemática com outras ciências. Tudo deve ser feito aos poucos, em pequenas doses. O ideal é que o professor esteja sempre preparado com algumas historinhas e exemplos de aplicações para serem apresentados nos momentos mais oportunos.

E é importante que as aplicações sejam interessantes e sem artificialismos. Assim, calcular o tamanho da Terra, como fez Eratóstenes na antiguidade, certamente é uma aplicação de grande relevância que, devidamente apresentada, há de motivar os alunos e estimular seu interesse e admiração pela Matemática. Indo a outro extremo, seria contraprodutivo propor o problema de calcular a quantidade de tecido necessária para fazer uma toalha na forma de um trapézio de bases 180 e 240 centímetros e altura 120, pois não se costumam fazer toalhas assim... Melhor seria calcular a área de um terreno com a mesma forma trapezoidal (trocando centímetros por metros, evidentemente); ou, simplesmente, calcular a área do trapézio.

Embora motivação e aplicações sejam importantes, não se pode ir a extremos, querendo que toda a Matemática seja sempre ensinada com aplicações. A apresentação freqüente de aplicações leva o aluno a adquirir entusiasmo e admiração pela Matemática, a ponto de se interessar por questões puramente matemáticas, que exibam idéias ou fatos interessantes, como as que são tratadas na RPM 21, pp. 19 a 25; ou a da distância Rio-São Paulo (RPM 22, pp. 1 a 3), só para mencionar algumas dentre as muitas discutidas nos vários fascículos da RPM.

Para concluir, deve-se ter sempre em mente que nenhuma receita sobre ensino pode ter sucesso se faltar ao professor amor e devotamento à profissão, e um esforço continuado de sempre aprender mais e aprimorar seus conhecimentos de Matemática para melhor motivar e despertar o interesse de seus alunos.